Programas partidários para a reforma da Justiça

  • António Cluny
  • 7 Março 2024

Cremos estarem reunidos os pressupostos para estabelecer um amplo consenso democrático fundado nos princípios e valores da Constituição para melhorar e acelerar os métodos de funcionamento da Justiça.

1. Reforma da Justiça, propostas partidárias e o necessário consenso

Da análise dos programas dos partidos – à exceção do programa do Chega, que fere a minha sensibilidade jurídica e de cidadão e que, por isso, não quero comentar – resulta, em meu entender, uma conclusão óbvia e positiva.

À exceção da duvidosa proposta da legalização do “lobbyinge da extensão do enquadramento e competência dos tribunais arbitrais – designadamente daqueles que se destinam a julgar casos em que o Estado Português intervém – nada, em tais programas, impede a busca de um amplo consenso democrático sobre medidas necessárias a uma maior eficiência e clareza na intervenção da Justiça.

Tal aumento de eficiência, sendo fundamental para todos os cidadãos que a ela recorram, torna-se absolutamente imprescindível para aqueles que, pela sua débil situação social, mais dela precisam quando querem efetivar direitos que a Constituição e a lei reconhecem; referimo-nos aos mais necessitados e expostos, por isso, aos maiores abusos.

Ora, um tal consenso político para introduzir alterações que, sem diminuir garantias, possibilitem maior rapidez e segurança jurídica, pode vir a assegurar para Justiça uma renovada legitimidade democrática e um indispensável prestígio institucional, características que, nos últimos anos, têm vindo, por uma conjunção de fatores internos e externos, a ser fortemente erodidas.

A sua renovada legitimidade institucional é tão mais necessária (e hoje, em tempos de apreciação mediática e relativismo científico, difícil de manter), quanto as concretas apreciações e decisões judiciais sobre os casos levados à resolução do sistema de Justiça escapam, naturalmente, ao escrutínio plebiscitário, fundando-se e validando-se, antes, num juízo racional e lógico e, só nessa medida, metodologicamente controlável.

Feitas estas considerações de caráter geral, passemos, então, à análise dos pontos mais explícitos e mais sensíveis dos programas partidários, nos aspetos que melhor conheço e de que, por isso, posso falar mais à vontade.

2. Reforma da Justiça e pontos de dissenso: tribunais arbitrais

No que se refere aos tribunais arbitrais, coincidimos com a opinião e proposta da CDU de excluir o Estado da possibilidade de poder, em qualquer circunstância, optar por participar em tal jurisdição.

Os limites estabelecidos nos artigos 180.º a 185.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, sendo fundamentais e já muito restritivos, não sido, afinal, suficientes para obstar a que o Estado ou os organismos por ele tutelados, recorreram a tais tribunais.

De um lado, acontece que a Administração Pública se gere, por imposição constitucional, pelo “princípio da legalidade” e, na maior parte dos casos, tais tribunais julgam de acordo com o princípio da “equidade”.

Esse é, aliás, o principal e mais atrativo motivo da sua escolha pelas partes que acordam na sua constituição.

De outro lado, e mesmo mantendo-se, ou ampliando-se aquele desenvolvido quadro de exceções no que se refere à participação do Estado em tais tribunais, importa, ainda, tomar em consideração os injustificáveis custos que para este resultam, se anuir ou optar por tal jurisdição.

No mais, no que respeita às partes verdadeiramente privadas, nada deve obstar a que estas, gozando ou não do mesmo ou de semelhante poder económico, acordem, entre si, a utilização de tal jurisdição e meio de resolução de conflitos.

Não é, todavia, por acaso que, no que respeita, por exemplo, à justiça laboral, a diferença de poder entre uma e a outra parte, nunca aconselhou o possível uso de tribunais arbitrais.

Mesmo o sistema próprio de mediação já existente – exatamente pelos mesmos motivos sobre o desequilíbrio substancial do poder das partes em confronto – tem pouca ou nenhuma aceitação e utilização.

Tal desequilíbrio pode, à partida, favorecer a parte preponderante, mesmo que sem o uso explícito da sua força económica.

Tal desequilíbrio inicial desampara, em regra, quem, por necessidade e urgência, anseia pela compensação a que tem direito, fazendo-a optar pela rapidez do seu recebimento, em detrimento da luta pelo seu justo valor.

Acresce que, como dissemos, o elevado custo da justiça arbitral, se pode ser aceite pelas partes privadas que por ela optam, não o deve ser pelo Estado, pois, neste caso, é o dinheiro do contribuinte que é gasto sem uma justificação pertinente.

3. Reforma da Justiça e possibilidades de consenso político

Afastadas, porém, tais questões de um possível consenso político sobre a reforma da Justiça, resta todo um quadro de problemas que pode e deve ser resolvido com a intervenção de todos os partidos que se reveem na Constituição, como, de resto, aconteceu, sem dificuldades, até fim dos anos oitenta, início dos anos noventa do Século passado.

Lendo, com alguma atenção, o enunciado de tais programas eleitorais, fica, porém, a impressão – porventura errada, admitimos – de que, o conjunto das propostas concretas apresentadas não resulta de uma visão integrada e totalmente coerente do que, com elas, se pretende reformar e para quê.

É certo que as linhas que tais programas dedicam à Justiça não integram, na sua sintética simplicidade, o que, em nosso entender, deve, depois, vir a constar de um mais estruturado e integrado programa de Governo.

Em todo o caso, parecer-nos-ia importante que os eleitores pudessem saber desde já quais as principais linhas mestras e a ambição das reformas propostas.

4. Proposta mais ampla e combinada de reforma do Código de Processo Penal, da Lei de Organização Judiciária e da Organização das Procuradorias

Em relação a alguns temas politicamente mais sensíveis, como, por exemplo, o do funcionamento do MP, seria, assim, indispensável, enquadrar o pouco que, em tais programas se diz – ou deixa antever – numa proposta mais ampla e combinada de reforma do Código de Processo Penal e da Lei de Organização Judiciária e, ainda, de uma eventual – e cremos nós, que necessária e urgente – regulamentação funcional das procuradorias, departamentos e serviços desta magistratura.

Na verdade, não se podem continuar a reformar leis de processo sem adequar e enquadrar devidamente os meios humanos e organizativos que hão-de aplicar tais reformas; muitas das anteriores reformas morreram, exatamente, pela dificuldade sentida na sua execução pelos sistemas judicial existente.

No que respeita à Justiça penal, todo o capítulo alusivo à concretização dos princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais tem, por isso, de ser revisitado de forma a tornar verdadeiramente conformes e exequíveis as propostas de reformas.

Referimo-nos, claro, a um diferente enquadramento penal e processual penal das novas formas de criminalidade e ao dos tipos legais dos crimes que mais afetam a sociedade.

E não; não estamos só a falar de terrorismo, droga, criminalidade violenta e burlas digitais ou outros crimes graves cometidos por essa via.

Nestas matérias, como, sobretudo, no que se refere à criminalidade económica e financeira, o rigor no desenho dos tipos criminais é fundamental.

Por exemplo, não creio, assim, que seja possível avançar facilmente para a criminalização do enriquecimento ilícito à margem da criação de um dever legal de cooperação do cidadão com o Estado sobre o esclarecimento da origem de certo património por ele adquirido e da consequente punição, como crime de desobediência qualificada.

Em tais situações, caso tal dever de colaboração não fosse cumprido na sequência de uma intimação para o efeito, com a cominação adequada, pela autoridade competente para o fazer, avançar-se-ia para o processo pelo crime de crime de desobediência qualificada.

A efetivação da pena poderia, então, ficar condicionada ao cumprimento, mesmo que tardio, daquela obrigação num prazo a definir pelo juiz.

Ainda neste âmbito de obrigatória colaboração do cidadão com o Estado no esclarecimento da proveniência do seu património, e como meio de concretizar a obrigação de colaboração do cidadão, creio ser de pensar, concomitante e articuladamente, na possibilidade de se avançar, desde logo, com medidas de apreensão e confisco de natureza estritamente civil.

Tal solução existe já em países de cultura jurídica anglo-saxónica e, mesmo, em alguns países nórdicos.

Por outro lado, neste tipo de criminalidade, as decisões judiciais mais recentes provam bem como podem existir leituras substancialmente diferentes dos mesmos normativos.

Tal disparidade impede um maior rigor na sua interpretação e provoca o uso constante de recursos para tribunais superiores.

Tais recursos fazem tardar a decisão final e introduzem espaços desnecessários de dúvida sobre o funcionamento e sentido das diferentes tomadas de posição do MP e dos tribunais.

A necessidade de rigor no desenho dos tipos legais é, assim, necessária.

Isto, para preservar em sede processual as garantias constitucionais de natureza pessoal e patrimonial.

Acresce, também, que uma melhor tipificação dos delitos permitiria aos agentes administrativos e aos agentes económicos privados agirem, no desempenho normal das suas tarefas e negociações, com confiança, quando, respetivamente, decidissem de uma ou de outra maneira, ou optassem, na vida económica, por um ou outro tipo de intervenção e negócio.

Embora entendamos que a criminalidade económica e financeira se previne mais eficazmente do que se consegue perseguir e punir, é óbvio que importa encontrar novas e mais claras formulações de tipos criminais que cubram as realidades diferentes e sempre mutantes que, nesse campo, emergem todos os dias.

Neste caso é, porém, necessário optar por uma de duas estratégias: ou criar tipos penais mais elásticos e abrangentes – deixando, assim, à jurisprudência o papel de desenhar os seus limites – ou, pelo contrário, definir, na lei, com mais detalhe e rigor, os factos e situações que, realmente, se querem proibir e punir.

A primeira alternativa é, de certo modo, a que enforma já o modelo atual de criminalização destas situações e atividades: e o resultado, ou falta dele, é já conhecido.

Em todo o caso, repetimos, mais do que insistir sempre na inovação dos tipos criminais, importaria, porventura, aperfeiçoar e impor mecanismos de compliance que controlem e, simultaneamente, ajudem os agentes económicos – e mesmo os representantes do Governo e da Administração Pública – a agir com acrescida responsabilidade e maior segurança jurídica.

5. MP – Organização das Procuradorias

Além disso, e até por isso, parece-me óbvia a necessidade de regulamentação da organização e funcionamento do MP, das suas procuradorias, seus departamentos e serviços.

Uma tal clarificação permitiria, por exemplo, que se afirmasse e definisse a real (e única) titularidade dos processos de inquérito.

Além disso, clarificar-se-ia a forma como são tomadas decisões e são geridas as equipas de procuradores que acompanham um mesmo processo, bem como o papel aí desempenhado por dirigentes imediatos e diretos de tais serviços do MP e, bem assim, o da sua hierarquia superior.

Um papel que não confine todos os superiores hierárquicos apenas à gestão da vida burocrática de tais circunscrições, mas, também, que os obrigue a uma normal, indispensável e responsabilizante intervenção processual em algumas fases e atos dos processos mais complexos e que, por vários motivos, são causadores de inevitável impacto público.

Tal tipo de intervenção hierárquica, que deve ser comum e só raramente excecional, apenas deve poder acontecer se processualmente assumida e conhecida, não apenas pelos procuradores e juízes intervenientes no caso, mas, também, pelas partes envolvidas: importa saber sempre quem, de facto, decidiu o quê e porquê.

6. JIC – Dois papéis, o mesmo nome

Ainda sobre esta temática, verifica-se nos diversos programas dos partidos uma flagrante menor atenção sobre um importante tema: a necessidade de reequacionar a organização dos tribunais de instrução criminal e a intervenção e competência dos respetivos juízes (JIC).

Existem, nesta área, sobretudo no acompanhamento de inquérito, problemas de respeito, definição e manutenção permanente do juiz natural.

A necessidade de manter um juiz único para toda a fase de inquérito, como de acordo com o Expresso de dia 23.2 2021, parece ser, agora, preocupação do CSM.

Só assim, com uma tal clarificação de quem é juiz que há-de intervir, por norma, no mesmo processo de inquérito, se permitiria que as intervenções do JIC (juiz das liberdades) obedecessem a uma mesma coerência decisória.

Evitar-se-ia, ainda, a necessidade de diferentes JIC terem de tomar conhecimento sucessivo do mesmo alargado e complexo núcleo essencial dos elementos de prova, o que facilitaria a coerência e rapidez das suas sucessivas decisões (buscas, escutas e medidas de coação) e asseguraria ao MP a possibilidade de agir com conhecimento exato dos limites que, em cada caso, lhe são exigidos.

Fruto de muitas destas questões não resolvidas – ou mal resolvidas – existe, uma perceção pública de que, na primeira instância, existem pelo menos, não um, mas três julgamentos.

Nos três se analisam e valorizam, com pormenor idêntico, elementos de prova, indícios e factos e sobre eles se ouvem os arguidos, concretizando-se assim, sucessivamente, em cada caso, três vezes o contraditório sobre os mesmos factos e três juízos sobre a sua legalidade ou ilegalidade e a culpa indiciária dos seus autores.

O primeiro ocorre logo que o JIC – juiz das liberdades – analisa em detalhe as propostas de medidas de coação feitas pelo MP e os elementos de prova que as justificam quando este detém e lhe apresenta os arguidos para primeiro interrogatório e aplicação de medidas de coação.

O segundo, quando outro JIC – juiz da instrução – profere despacho de pronúncia ou não pronúncia no final da fase de instrução e em que também os arguidos são ouvidos no exercício do contraditório.

E o terceiro quando, por fim, depois da audiência de julgamento, o respetivo juiz exara, por fim – anda em primeira instância – uma verdadeira sentença, condenatória ou absolutória.

No que se refere, ainda, aos JIC, creio, também, que seria, ainda, de ponderar os requisitos e critérios de recrutamento destes magistrados para tais funções.

Pareceria lógico que, face aos problemas que têm emergido e são do conhecimento público, fosse aventada a necessidade da sua especialização prévia em criminalidade económica e financeira.

Num plano distinto, mas não menos importante, é necessário definir, na fase de inquérito, uma nova articulação entre os órgãos de polícia criminal – mormente a PJ – o MP e os JIC.

Só assim seria possível situar confortavelmente e sem complexos cada um destes intervenientes no papel que, no processo de inquérito, lhe compete.

7. A reforma da Justiça, o Direito Europeu e a jurisprudência do TJUE

A coerência sistémica das propostas de reforma do sistema de Justiça penal é ainda relevante e urgente, na medida em que, por exemplo, importa dar cumprimento à mais recente jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e ao Direito Europeu.

Tal harmonização é fundamental no que respeita, por exemplo, à competência para a emissão de mandados de detenção europeus (MDE).

Além de que, por esta mesma razão, e na medida que os MDE são, também de acordo com a mesma jurisprudência, a extensão dos mandados de detenção nacionais, importaria revisitar, igualmente, a competência para a emissão destes últimos.

As exigências do TJUE relativamente à competência para emitir MDE não podem, em rigor, deixar de se aplicar à emissão dos mandados de detenção nacionais.

Creio, aliás, que se tal atualização e a reforma da nossa lei processual penal e, consequentemente, da organização judiciária, tivessem já sido feitas – como aconteceu, de resto, na quase totalidade dos países europeus membros da UE – muitos dos problemas que têm sido noticiados sobre as diferentes e incompatíveis leituras das leis feitas pelo MP e por alguns JIC nunca teriam ocorrido.

Ou, tendo acontecido no momento e na fase processual certa, não teriam tido, estamos seguros, as mesmas repercussões negativas para a imagem da Justiça.

8. O papel do MP como magistratura

Nesse sentido, é importante, parece-nos, reverter a uma prática condicente com perfil próprio de uma magistratura que o MP é e deve continuar a ser.

Isto, tendo em vista a sua possibilidade real de articular, controlar e projetar a fase de investigação por si tutelada – mas não necessariamente por si executada – com as exigências que a Constituição e a lei impõem em matéria de legalidade nos procedimentos de recolha dos elementos de prova e, ainda, na valoração da legalidade e suficiência dos mesmos.

Compreendo, por isso, as referências feitas, num dos programas partidários, aos modelos de formação de magistrados.

Estes devem receber uma preparação na análise da prova capaz de ultrapassar uma mais limitada visão da verdade e dos métodos para a ela chegar, mais próprios dos objetivos de outros intervenientes, cuja missão, sendo essencial à manutenção da ordem, à confiança e à paz públicas, não se limita ao apoio à investigação judicializada.

9. Conclusão

Cremos estarem reunidos os pressupostos para estabelecer um amplo consenso democrático fundado nos princípios e valores da Constituição para – sem ruturas que contrariem os princípios humanistas consagrados na lei fundamental – melhorar e acelerar os métodos de funcionamento da Justiça e, renovar, assim, a sua legitimidade pública e, consequentemente, a imagem de retidão e independência que ela deve merecer aos cidadãos portugueses.

Só uma leitura mais exaustiva dos estudos que, por certo, precederam a apresentação de todas as propostas, nos permitiriam, todavia, um exame e comentários mais aprofundados.

  • António Cluny
  • Procurador-geral adjunto jubilado e antigo membro nacional da Eurojust

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