Reduzir a incerteza fiscal

  • Vítor Loureiro e Silva
  • 16:24

É possível melhorar o dia-a-dia dos operadores económicos sem alterações legislativas. Ajustar práticas e orientações administrativas pode fazer a diferença.

Não sendo um exclusivo do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”), a verdade é que, no âmbito deste imposto, suscitam-se, frequentemente, dúvidas relacionadas com a interpretação de normas e com a qualificação de operações, que “alimentam” a produção de doutrina administrativa da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) sob as mais variadas formas (circulares, ofícios-circulados, informações vinculativas), mas também, o desenvolvimento da jurisprudência.

Sendo o IVA um imposto de matriz europeia, codificado numa Diretiva que visa harmonizar as regras e a aplicação concreta deste imposto na União Europeia (UE), é relativamente comum os tribunais nacionais, no âmbito da apreciação de um litígio, recorrerem à figura do reenvio prejudicial, convocando o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) para se pronunciar sobre a interpretação de normas da Diretiva IVA que, na sua essência, se encontram transpostas no Código do IVA português.

O TJUE constitui, assim, garantia de uma aplicação uniforme do Direito da UE nos diversos Estados membros, sendo vinculativa para os tribunais nacionais quanto à interpretação do Direito da UE. Já as instruções administrativas emanadas pela AT vinculam somente os seus órgãos e funcionários, sem prejuízo da utilidade da sua publicitação, para que tais entendimentos possam ser tomados em consideração pela generalidade dos contribuintes.

Com uma frequência maior do que a desejável, os contribuintes confrontam-se com posições da AT distintas das que se encontram vertidas na jurisprudência. Apontam-se dois exemplos para ilustrar esta realidade.

Ancorada num ofício-circulado que remonta ao ano de 2000, a AT considera que a cedência de pessoal não se encontra sujeita a IVA se a remuneração dessa prestação de serviços corresponder ao reembolso exato de despesas com ordenados ou vencimentos, quotizações para a segurança social e quaisquer outras importâncias obrigatoriamente suportadas pela empresa a que pertence o trabalhador.

Diferentemente, a jurisprudência europeia e nacional admite que a cedência de pessoal consubstancie uma prestação de serviços tributada em IVA, ainda que o serviço em causa seja remunerado pelo exato montante dos custos incorridos.

Outro exemplo: baseada num Despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 2002, entende a AT que uma atividade de investigação sem que existam objetivos comerciais imediatos nem um destinatário concreto para os resultados dos projetos em desenvolvimento, não constitui atividade económica para efeitos de IVA, ainda que, tendencialmente, os resultados dessa investigação tenham aplicações comerciais ou industriais (conclusão que comporta limitações no direito à dedução do IVA suportado pelas entidades que desenvolvem essas atividades de investigação).

Diversamente, encontra-se estabilizado na jurisprudência o entendimento de que, para existir atividade económica, não é exigível que as entidades de I&D tenham, à partida, encomendas e destinatários definidos e contratados para os seus projetos, existindo projetos que não têm aptidão comercial direta, mas cujo know-how serve, posteriormente, para projetos geradores de rendimentos tributados em IVA, ou em que os conhecimentos obtidos na investigação são utilizados para criar patentes que são vendidas ou servem de base a licenças de utilização, enquadrando-se tais situações, independentemente dos resultados imediatos, no conceito de atividade económica.

Perante esta dicotomia de posições, facilmente se percebe a incerteza com que se deparam os contribuintes, obrigados a escolher entre a posição sufragada pela AT – na esperança de evitar o calvário de um contencioso prolongado – ou a solução acolhida pela jurisprudência que, em coerência com o nosso sistema jurídico, deverá sempre ser tida como a solução correta. Ao invés de procurar aplicar corretamente a lei, o contribuinte confronta-se com a necessidade de ponderar fatores como o risco de as suas escolhas serem questionadas no âmbito de inspeções tributárias futuras, perspetivas de litigância e os custos associados não ao incumprimento da lei, mas da interpretação que a AT faz das normas em causa. A perspetiva de sucesso em sede de contencioso tem levado, cada vez mais, à ponderação de soluções para a externalização destes riscos, através dos denominados “tax insurance” (seguros que têm por objeto a cobertura de riscos fiscais).

Porque a todos interessa a boa aplicação da lei, os tax insurances deveriam ter uma função residual para questões de elevada complexidade, e não para matérias em que apenas se verifica uma desatualização (crónica) da interpretação adotada pela AT. Assim, uma maior adequação das instruções administrativas às orientações da jurisprudência – em particular quanto estejamos perante acórdãos uniformizadores de jurisprudência, ou perante matérias em que há um conjunto abundante de decisões em idêntico sentido – seria, seguramente, um contributo relevante para a melhoria do dia-a-dia dos contribuintes, para a redução do volume de contencioso e também para uma melhor afetação dos recursos da AT para o combate a situações de verdadeiro incumprimento.

  • Vítor Loureiro e Silva
  • Associado sénior da Vieira de Almeida

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