Teletrabalho não é só trabalhar a partir de casa
Mas “teletrabalho” apenas significa, em rigor, “trabalho à distância”, isto é, exercido fora do local habitual: as instalações da empresa.
A pandemia da Covid-19 foi responsável pela explosão do teletrabalho como solução de recurso para manter as empresas em funcionamento durante o confinamento dos trabalhadores. Na realidade, o que aconteceu foi a súbita aceleração de uma tendência que muitos já tinham previsto no âmbito da chamada “transformação digital” mas tardava em adquirir uma dimensão significativa.
Como seria de esperar, o disparo do teletrabalho originou uma cornucópia de informação sobre o tema, sendo raro o dia em que não é publicada opinião ou informação factual sobre ele. A esmagadora maioria do material publicado, porém, tende a concentrar-se sobre as dificuldades que os trabalhadores têm de enfrentar neste regime de trabalho, com destaque para os problemas do isolamento e da ausência de interação com os colegas, do esbatimento de fronteiras entre o horário profissional e a vida pessoal e familiar, etc.. Em contrapartida, aspetos verdadeiramente cruciais do teletrabalho têm sido praticamente ignorados. O primeiro de todos é a confusão existente entre “teletrabalho” e “trabalho a partir de casa”.
Trata-se de um erro de perspetiva que decorre das circunstâncias especiais em que este debate teve início – o confinamento – quando aquela era efetivamente a única possibilidade. Mas “teletrabalho” apenas significa, em rigor, “trabalho à distância”, isto é, exercido fora do local habitual: as instalações da empresa.
O trabalho que realizamos quando nos sentamos com um portátil no Starbucks mais próximo, a bordo de um comboio ou de um avião, no átrio de um hotel ou na lounge de um aeroporto – é tudo teletrabalho. E tão pouco é novo: o vendedor que no final do dia regista as suas vendas e planeia o dia seguinte no quarto do hotel já o faz há décadas!
O que é novo é, no plano quantitativo, a escala maciça a que as circunstâncias obrigaram, e no qualitativo a sua extensão a vastos segmentos de trabalhadores dependentes, muito para além da minoria de “nómadas digitais” pré-existentes, restrita a uns poucos freelancers, consultores, quadros superiores e comerciais.
Esta associação entre teletrabalho e mobilidade, que tende a ser ignorada no debate em curso, é um fator de importância crítica para pensar a organização do trabalho numa “nova normalidade” pós-pandémica, como veremos noutra oportunidade mas não iremos desenvolver aqui.
Naturalmente, o tipo de trabalho a realizar condiciona o local de realização. Uma atividade que se revista de confidencialidade – por exemplo, marcação de consultas, aconselhamento financeiro, negociação de contratos – não pode ter lugar de viva voz num local público onde, mesmo quando feita apenas por escrito, não está isenta de riscos de devassa; atividades deste tipo, aliás, mesmo quando realizadas em casa, devem ser objeto de proteção e resguardo adequados.
Outras estão sujeitas a limitações tecnológicas – e.g. largura de banda, tamanho dos equipamentos – que dificultam a sua execução em “regime ambulatório”: um desenhador em CAD/CAM precisa de ecrãs de grandes dimensões que não pode levar para o café da esquina. Muitos outros exemplos destas limitações poderiam ser apontados.
Um outro equívoco nascido com a explosão do teletrabalho devido ao confinamento consiste em encará-lo na perspetiva do “tudo ou nada”: ou todo o trabalho tem de ser obrigatoriamente executado nas instalações da empresa (o que já vimos ser uma falácia), ou então tem de ser todo desenvolvido fora da empresa (isto é, em casa do trabalhador).
Surpreendentemente, parece haver empresas a tomar decisões com base neste mal-entendido, preparando-se para “deslocalizar” funções inteiras para trabalharem definitiva e permanentemente a partir de casa. Nessa hipótese, evidentemente, poupariam muito dinheiro em metros quadrados, consumo de energia, consumíveis (algumas más línguas insinuam que a corrida ao papel higiénico nos primeiros dias do confinamento teve origem na constatação de que ia deixar de ser possível trazê-lo do escritório…) e outros custos.
É, porém, pouco provável que tal hipótese se concretize: as experiências mais bem-sucedidas de teletrabalho são na realidade soluções híbridas, com um mix entre atividades desenvolvidas nas instalações na empresa e trabalho a partir de casa (ou de outro local, se o tipo de trabalho o permitir), em proporções ditadas pelas características das funções, pela necessidade de interação presencial ou de acesso a certos equipamentos e facilidades, e pelo imperativo de estabilidade emocional dos trabalhadores. Em consequência, as poupanças da deslocalização arriscam-se na realidade a ser bem menores do que as reveladas por extrapolações apressadas e simplistas.
*João Paulo Feijoo é consultor, docente e investigador.
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