Terrorismo judiciário?

E falou em terrorismo não porque os advogados se apresentem nas salas de audiências munidos de bombas ou atuem à margem da lei, mas imagine-se... Porque defendem os seus clientes!

Regra geral, a minha experiência profissional com a PJ tem sido boa e marcada pelo respeito mútuo. Registo de quem integra esta instituição um compromisso firme com o interesse público e os direitos fundamentais dos cidadãos. Constatei sempre um respeito pela dignidade dos advogados e pela sua difícil e essencial missão. Respeito que foi sempre recíproco. Cada um tem o seu papel e se todos o exercermos bem, certamente teremos um sistema mais equilibrado e justo.

Foi, assim, com desilusão (embora já sem muitas ilusões quanto ao espírito que se vai instalando no setor) que vi o Sr. Diretor Nacional da PJ afirmar em entrevista recente que “quando começam esses processos de criminalidade económico-financeira, entramos numa fase de terrorismo judiciário, com recursos permanentes e incidentes processuais que entropecem os autos…”. Sim, o mais alto responsável desta autoridade, utilizou a palavra “terrorismo” para falar do papel dos advogados nestes casos.

E falou em terrorismo não porque os advogados se apresentem nas salas de audiências munidos de bombas ou atuem à margem da lei, mas imagine-se… Porque defendem os seus clientes! O que serão atos de terrorismo? Recorrer de decisões que afetam os arguidos e com as quais se discorda? Reclamar de um despacho? Contestar e requerer provas? Apelar a que o Tribunal Constitucional exerça o seu papel de garante? Requerer a abertura da Instrução? Defender pessoas dizimadas na praça pública? Pedir uma extensão do prazo (para os advogados sempre perentórios) para preparação da contestação a acusações com milhares de páginas e processos com milhões de ficheiros normalmente mal organizados? Confrontar processualmente as autoridades com os seus erros? Desconheço que outros atos terroristas possam estar em causa, mas é uma lamentável moda apelidar de “manobras dilatórias” o exercício de direitos fundamentais de cidadãos que têm que se confrontar com o poder sempre mais forte do Estado. Esta ideia assenta tão-só em preconceito e demagogia.

Se isto é terrorismo judiciário na opinião de um alto responsável do setor, o que serão os inquéritos que demoram anos intermináveis em que a presunção de inocência é “letra-morta” e que incidem sobre arguidos dizimados sem julgamento devido a úteis violações do segredo de justiça com as teses dos acusadores permitidas/toleradas (na mais simpática das hipóteses) por quem tem responsabilidade de guardar as investigações? Presumo que sejam coisas normais, claro. E o que dizer estrondosas detenções em direto nas televisões de suspeitos “não violentos” que nunca deram qualquer sinal de pretenderem uma fuga deixando-os a “amolecer” numa qualquer cadeia durante vários dias até serem sujeitos a primeiro interrogatório judicial? O exercício normalíssimo da Justiça, claro. E libertar um recluso famoso da prisão para, no segundo seguinte, voltar a prendê-lo em flagrante momento televisivo? Algo que pode acontecer no normal funcionamento da justiça, claro.

As declarações do Sr. Diretor Nacional revelam uma estranha sensação que se vai sentindo cada vez mais nos corredores do poder judicial: os advogados são uma chatice, um entrave à realização de condenações, um maçador condicionamento do poder do Estado. Porque temos o dever de confiar que as decisões assentam sempre em critérios de objetividade, legalidade e de Justiça. Como se a Justiça não fosse feita por pessoas com qualidades e defeitos como todas as outras. Como se não fosse suposto o poder do Estado ser questionado e reequilibrado pelo fundamental papel dos advogados…

De um lado os bons (sempre): polícias, procuradores, reguladores, juízes e alguns “jornalistas amigos” do costume. Estes nunca se enganam e raramente têm dúvidas. Devemos aprender a confiar e ponto final, porque o sistema funciona muito bem.

Do outro, nós. Os maus. Os terroristas advogados que perturbam o poder do Estado a troco de chorudos honorários para defender cidadãos (só ao alcance dos malandros poderosos que podem pagar, claro…).

Já se banalizou este discurso nas caixas de comentários de jornais ou nas redes sociais, mas é perturbador constatar que o mesmo está a sair da boca dos mais altos responsáveis do setor, pessoas de grande calibre e elevadíssima preparação.

Obviamente que estas declarações do Senhor Diretor da PJ são um sinal dos tempos e do caminho corporativo que o sistema judicial tem vindo a fazer. Houve um tempo em que a PJ servia para investigar, o MP para acusar ou arquivar, o juiz de instrução para garantir que os direitos das pessoas estavam a ser respeitados e os juízes de julgamento para serem árbitros “sem estados de alma” no confronto entre as diferentes visões processuais.

Dentro de um sistema equilibrado, os “checks and balances” alcançam-se com maior naturalidade. Visa-se a Justiça e não necessariamente a condenação para efeitos estatísticos e “satisfação comunitária”. Desde o tempo em que a PJ se subordinou ao MP, que o papel do Juiz de Instrução se desvalorizou como garante dos direitos dos cidadãos, que a Justiça se tornou um “reality show” em auto-gestão, obviamente que as suas traves-mestras estão rachadas. E isso é assim, especialmente nos casos mediáticos de criminalidade económica. Apesar da lei dizer o contrário, sejamos claros: na prática, um arguido deste género entra num processo com a balança totalmente desequilibrada, esmagado na sua dignidade social e sem presunção de inocência. A igualdade de armas é um mito. Como se não bastasse, altos responsáveis do setor ainda lhes querem retirar direitos processuais, que normalmente apenas se começam a exercer depois das autoridades terem passado anos e anos em investigações megalómanas sem prazo para serem concluídas.

Neste cenário, qual o papel dos advogados? Tornarem-se também cúmplices desta espécie de totalitarismo ou tentarem reequilibrar minimamente o sistema, combatendo com a sua escrita, com a sua voz e com os meios legais que têm?

Uma parte relevante do setor entregou-se a um tablóidismo justiceiro em que a única coisa que interessa é parecer bem na fotografia (especialmente nos casos mediáticos, obviamente). Mesmo que a Justiça cometa o maior erro de Direito, o mais importante é que a opinião pública não se sinta desiludida no julgamento que à primeira notícia do caso logo fez. Ainda há “pedras no sapato” dentro do próprio sistema que tentam combater este estado de coisas e fazer um trabalho exclusivamente com base nos códigos do Direito, mas são cada vez menos. E têm que ser especialmente corajosos sem maior reconhecimento profissional por isso. Pelo contrário.

Todo este cenário deve fazer-nos crer que os advogados são mais necessários que nunca.

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