Três grandes dilemas mundiais climáticos quando os resultados da COP forem anunciados

  • Alice Khouri
  • 9 Dezembro 2023

As jornadas irão variar, e é expectável que sejam adaptadas às realidades dos países para que sejam justas, mas não esqueçamos que o objetivo é um só e nada esotérico: travar o aquecimento global.

Se, por um lado, há consenso em relação ao grande desafio transversal – e global – de travar as alterações climáticas, divergências importantes quanto à jornada para endereçar esses desafios já eram esperadas e confirmaram-se nos primeiros dias de COP28. E o mais importante: podem alterar o rumo do que se entende como “o estado da arte do clima”, com consequências diretas nas políticas internas adotadas pelos países.

Este ponto de situação consiste num dos grandes resultados expectáveis da cimeira de 2023: a consolidação do primeiro relatório do Global Stocktake (GST), estabelecido no Acordo de Paris (artigo 14), e que será justamente uma síntese sobre o progresso coletivo mundial em relação aos targets climáticos estabelecidos em 2015. À luz do conhecimento científico mais atualizado sobre o tema, olham-se questões específicas de mitigação, adaptação e meios de implementação para o cenário das alterações climáticas.

O que talvez muita gente ainda não saiba é que, no meio de várias sessões e reuniões técnicas realizadas na primeira semana de COP28, nos palcos principais e paralelos, já existe, e é público, um primeiro rascunho deste documento apelidado de GST, datado de 05.12.2023, escrito por um High Level Committee. E, apesar de as negociações ainda estarem em andamento e o documento não ser a versão final, a sua leitura pode ser importante para que saibamos o que realmente está em jogo em termos de consenso e dissenso entre os países.

São muitos os assuntos, mas após a primeira semana na conferência vou ousar eleger três que se destacam pela indefinição e, ao mesmo tempo, importância estratégica:

  • O que os países estão, de facto, a entender por financiamento climático, considerando todos os “pledges” financeiros (compromissos anunciados) e, principalmente, a esperada operacionalização do fundo “loss and damages”;
  • A objetiva limitação do aquecimento global – que aparece com menções de 1,5 e 2 graus celsius; e
  • A famosa estratégia de phase down x phase out e como será a abordagem em relação aos combustíveis fósseis, tanto existentes como de novos projetos.

I. Financiamento Climático

Curiosamente, a expressão “finance” aparece 55 vezes no rascunho do GST (que tem apenas 24 páginas), e as suas diversas menções no documento refletem a importância do assunto: para conseguir atingir os objetivos do Acordo de Paris e endereçar as mudanças de mitigação e adaptação discutidas, é urgente a mobilização, em escala, de recursos financeiros.

Interessante notar que na minuta do GST há expressamente o reconhecimento de que ainda não existe uma definição multilateralmente acordada de “financiamento climático”, e a falta deste conceito comum dificulta não só a implementação como a monitorização do fluxo de investimento para ações efetivas de desenvolvimento sustentável.

Como exemplo prático: logo na primeira semana a COP28 marcou-se pela agitação em torno de vários compromissos anunciados pelos países. Mais de 700 milhões de dólares foram anunciados para o loss and damages (fundo específico para os países ainda em desenvolvimento), mas vários milhares de milhões foram anunciados para outros “green funds” em geral, tratamento de doenças tropicais, etc.

Não deixam de ser valores importantes e para causas relevantes, mas como não há definição ou governança global de financiamento climático, permanece de difícil compreensão não só como serão aplicados os critérios dos investimentos anunciados, mas como será possível fazer a monitorização destes “pledges”, e em que medida eles, de facto, endereçam os targets de adaptação e mitigação. Isto sem falar, ainda, da preocupação com a operacionalização específica do fundo de loss and damages, que precisa de valores na ordem dos biliões para a ajuda concreta aos países em desenvolvimento.

Um ponto positivo é que nesta primeira minuta do GST é expressamente mencionada a necessidade de uma mudança na governança do sistema financeiro internacional – público e privado, em conjunto e cooperação – e que deve ser direcionado para atividades de baixa emissão de gases de efeito estufa e destinadas ao desenvolvimento da resiliência climática.

É ressaltado que a arquitetura desta governança financeira, contudo, não será linear ou igual para todos os países, dado que os pontos de partida e status dos recursos não são os mesmos. Neste ponto, aparece uma interessante expressão, que clama para que o sistema financeiro seja “fit-for-purpose” e determina que devem ser evitados: tanto empréstimos ou medidas que sobrecarreguem os países ainda em desenvolvimento, como ainda, dentro de cada país, devem ser evitadas medidas unilaterais que impactem negativamente ou contrariem os esforços nacionais de desenvolvimento sustentável.

Ainda acerca do assunto de financiamento, a questão do que priorizar permanece difícil: se por um lado os custos e necessidades para adaptação estão indicados como sendo entre 10 a 18 vezes maiores do que o fluxo atual, a mitigação também irá requerer bastante dinheiro. O relatório “Adaptation Gap Report 2023”, publicado pelas Nações Unidas, estima que os custos de adaptação até 2030 podem ser de US$ 215 mil milhões/ano.

Algumas expressões que ainda estão sob definição (e queaparecem como “opção” no rascunho do relatório) podem ser parte da solução para tornar tangíveis pelo menos os critérios do que ser evitado no financiamento climático: atividades de intensa emissão de GEE, mal adaptadas ou não correspondentes à adaptação climática, além de atividades não resilientes do ponto de vista climático.

Neste ponto está em cima da mesa, por exemplo, a inclusão de medidas de limitação como o desinvestimento e “phase out” de combustíveis fósseis. A inclusão da expressão “phase out” contudo, ainda não está certa e leva-nos ao segundo tópico de atenção.

II. Phase Down x Phase Out– A Abordagem dos Combustíveis Fósseis

O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) este ano já alertou que os esforços atuais não são suficientes para travar o aquecimento global, e o cenário net zero depende de um mix de esforços que incluem a redução substancial no uso geral de combustíveis fósseis, o uso mínimo de combustíveis fósseis aliado a tecnologias CCS [de captura de carbono]. Isto, além de sistemas de eletricidade que não emitem CO2 líquidos; eletrificação generalizada; maior conservação e eficiência de energia e maior integração em todo o sistema energético. O dilema, portanto, é como será feita essa redução substancial dos combustíveis fósseis.

A minuta do relatório GST tem o tema claramente em aberto e com várias opções de expressões mencionadas, mas é interessante atentar para o facto de que há 1 menção ao “phasing down” x 4 menções a um suposto “phase out”.

Sobre a utilização da expressão “phase down”, o relatório inclui uma opção de texto que orienta a aceleração dos esforços para redução gradual da geração de energia que utilize o carvão sem tecnologias de CCS, ação que deve ser aliada ao fim (phase out) dos subsídios para o que se chamam “combustíveis fósseis ineficientes”, em paralelo com suporte financeiro para os países mais vulneráveis conseguirem fazer este caminho.

Com o título de “Phase out”, por outro lado, há 4 opções ainda a serem consideradas:

  1. Eliminação gradual, ordenada e justa dos combustíveis fósseis;
  2. Aceleração de esforços em direção ao fim dos combustíveis fósseis que não tenham opção de CCS, e reduzir rapidamente a sua utilização para alcançar o net zero nos sistemas energéticos até 2050;
  3. Uma rápida ação, até 2030, para fim dos combustíveis fósseis a carvão que não tenham CCS acoplado (phase out) incluindo o fim imediato do licenciamento e autorização de novas unidades de geração a partir destas fontes de energia;
  4. Fim dos incentivos aos combustíveis fósseis ineficientes (Phasing out) no médio prazo.
    Como se vê, mesmo as opções do “phase out” remontam a uma redução gradual e contam possivelmente com a inclusão de termos que podem gerar margem de interpretação entre os países quanto à urgência e timings e, assim, dificultar a implementação de uma estratégia clara.

Quanto a este ponto, importante considerar que qualquer que seja a estratégia acordada entre os países, os novos empreendimentos deverão levar em conta objetivos ambiciosos que já foram anunciados, como: reduzir emissões de metano em 30% até 2030 e 40% até 2035, o compromisso assumido por mais de 120 países (até o momento) de triplicar as renováveis e duplicar a eficiência energética, além de proteção e conservação dos ecossistemas e da biodiversidade, o que necessariamente depende de reverter a desflorestação até 2030.

III. Aumento da temperatura global – afinal, considerar o máximo de 1.5°C OU 2°C?

Por último, mas certamente não menos importante, é de se notar e acompanhar com atenção a definição dos limites para o aumento da temperatura global, que guiam a urgência das diversas ações de adaptação e mitigação aqui mencionadas.

O texto até ao momento reconhece os níveis alarmantes indicados pelo IPCC do status atual do aquecimento global (de 1.2°C, sendo este 2023 o ano mais quente da história) mas alterna a menção, em momentos diferentes, ao que considerar como limite: o cenário de aumento da temperatura global em 1.5 ou 2.0 °C em comparação com os níveis pré-industriais. O IPCC, este ano, já havia alertado para os dois níveis de temperatura, quando estabeleceu que são necessárias reduções profundas, rápidas e sustentáveis das emissões de GEE e que: para travar em até 1,5°C temos hipóteses de menos de 50%, ou para garantir um aquecimento de menos de 2°C temos hipóteses de cerca de 67%, ambos considerando como horizonte temporal até o final do século.

Há a ênfase expressa de que conter os danos depende de manter o aumento da temperatura global abaixo de 1.5 °C, como havia sido indicado no Acordo de Paris, mas também aparecem no texto as seguintes menções no sentido de:

  • Um novo objetivo coletivo para acelerar os esforços em conter o aumento da temperatura global “bem abaixo” de 2 °C, sendo que devem ser perseguidos os esforços de limitar este aumento em até 1.5 °C;
  • Reconhecer que os impactos no meio ambiente serão muito mais baixos se travarmos o aumento da temperatura global em 1.5 °C e não em 2°C, pelo que insiste nos esforços que considerem a marca de 1.5 °C.
  • Há ainda a inclusão expressa no texto do GST de um pedido para que o IPCC prepare um relatório extra e especial no seu próximo ciclo de análises que considere os custos económicos e sociais, bem como as necessidades e implicações de limitar o aquecimento global nos dois cenários: de até 1.5 °C e de “bem abaixo” de 2°C com relação aos níveis pré industriais.

A par de todas as importantes – e inafastáveis – questões técnicas, e também deixando de lado por alguns momentos a crítica em torno desta conferência específica, é de se notar a crucialidade de estarem as atenções mundiais voltadas para o mesmo assunto: a sobrevivência do planeta como conhecemos. Talvez não precisemos de consensos, é verdade. Mas certamente precisamos de ação, coordenada e efetiva. As jornadas irão variar, e é expectável que sejam adaptadas às realidades diferentes dos países para que sejam efetivamente justas, mas não esqueçamos que o objetivo é um só e nada esotérico: travar o aquecimento global. Ciência, métodos objetivos e cooperação deveriam ser todos os nossos desejos de final de ano, além, claro, de entregas no final da COP28.

  • Alice Khouri
  • Women in ESG Portugal

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