Três presidentes, duas cadeiras e um sofá
Duas semanas depois do "incidente diplomático" que ficou conhecido como "Sofagate", a presidente da Comissão Europeia falou sobre o tema.
“Ninguém me contou, fui eu que vi(vi)”. Duas semanas depois, Ursula von der Leyen falou sobre o que lhe aconteceu. Numa visita a Ancara, Turquia, a presidente da Comissão Europeia reuniu-se com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, e com o presidente da Turquia (e anfitrião), Recep Tayyip Erdogan. O encontro, com a intenção de fortalecer as relações entre a União Europeia e o país, teve lugar no palácio presidencial turco. No interior do edifício havia três presidentes mas apenas duas cadeiras e… um sofá.
A situação é fácil de descrever em detalhe: à chegada à sala, Charles Michel senta-se numa das cadeiras, Erdogan na outra, e von der Leyen… bem… von der Leyen toma o lugar que sobra depois de um “Ummmm” de estranheza em relação ao que se passou (como quem diz “noção?”). Observadora e participante – secundária – da dinâmica entre os dois, colocada (geograficamente) à parte na discussão, Ursula von der Leyen ouviu e conversou à distância (o porta-voz disse, na altura, que a presidente preferiu focar-se na substância e não dar relevância ao protocolo). Mas só ontem von der Leyen falou, verdadeiramente.
“Sou a primeira mulher a ser presidente da Comissão Europeia. Sou presidente da Comissão Europeia. E esta é a forma como eu esperava ser tratada quando visitei a Turquia há duas semanas: como presidente da Comissão. Mas não fui”, disse a responsável europeia, numa declaração já em “casa”.
“Não consigo encontrar qualquer justificação para a forma como fui tratada nos Tratados Europeus. Então, tenho de concluir que tal aconteceu porque eu sou uma mulher. Teria isto acontecido se eu tivesse vestido um fato e uma gravata?”, questiona a responsável.
Vi o vídeo, pela primeira vez, na noite de terça-feira. Partilhei-o, e assim fizeram muitas mulheres que sigo naquela rede social. No Instagram, o vídeo partilhado por Ursula von der Leyen, cujo perfil tem quase 160 mil seguidores, conta com mais de 575 mil visualizações, apenas 24 horas depois da publicação.
Em apenas dois minutos, a presidente da Comissão Europeia comenta o que sentiu com a honestidade de uma líder humana, e com uma vulnerabilidade que se transforma num super poder. “Em fotografias de encontros anteriores eu não vi falta de cadeiras. Mas também não vi qualquer mulher nessas fotografias. Caros membros, muitos de vocês terão tido experiências semelhantes no passado. Especialmente membros femininos desta casa. Tenho a certeza, sabem exatamente o que eu senti. Senti-me magoada, senti-me sozinha. Como mulher, e como europeia. Porque não se trata de arranjos de assentos ou protocolo. Isto tem a ver com o âmago de quem nós somos. Isto tem a ver com os valores que a União defende. E isto demonstra quão longe ainda estamos de uma realidade em que as mulheres são tratadas como iguais. Sempre. E em todo o lado. (…)”, assinala.
O “incidente” diplomático “sofagate“, uma forma simpática (e ridiculamente diplomática) de não assumir um tratamento claro e assumido de discriminação de género – vejamos como a Turquia renegou a Convenção de Istambul, instrumento legal fundamental no combate à violência doméstica e agressões contra as mulheres, por exemplo -, precisou, no entanto, de duas semanas de pressão mediática, perguntas, avanços e recuos, e provavelmente, uma escolha cuidada de palavras que separa o evento da sua “digestão”, para uma reação pública da principal lesada. Mas, e se fosse consigo?
Quantas vezes, sem nos apercebermos, nos demarcámos de discussões? Quantas vezes permitimos que nos deixassem à margem, que nos interrompessem, que a nossa voz não fosse ouvida? Quantas vezes participámos, mas do sofá? E quantas outras, duas semanas, dois anos, duas décadas não foram suficientes para nos termos apercebido do que aconteceu? Ursula von der Leyen, a presidente que dois homens – e um protocolo – sentaram “no banco de suplentes”, falou do que sentiu na pele.
E, pese a incredulidade de estas coisas ainda acontecerem, na Europa, em 2021, deixem-me confessar: ainda bem que, desta vez, aconteceu a von der Leyen. É que, como diz a presidente da Comissão Europeia, “todos nós sabemos: milhares de incidentes similares, a maioria deles muito mais sérios, são inobservados, ninguém nunca os vê ou ouve falar deles. Porque não há câmaras de filmar, porque ninguém presta atenção. Temos de garantir que estas histórias também são contadas”.
O testemunho viral de Ursula von der Leyen é a prova de que a vulnerabilidade tem a força de um super poder. E de que aquilo que nos acontece tantas vezes – e, tantas outras, silenciamos – só ecoa em nós e no mundo – e só é por nós reconhecido como “Sofagate” quando acontece a outro, mesmo ao nosso lado.
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