Vamos andar mais depressa ou vamos crescer de verdade?
A alta velocidade mudará inevitavelmente o país. Mas só com planeamento estratégico e uma visão clara de desenvolvimento urbano e fundiário poderá fazê-lo para melhor.
As futuras linhas de alta velocidade Lisboa-Porto-Vigo e Lisboa-Madrid têm sido apresentadas como a infraestrutura que faltava para encurtar distâncias, integrar mercados e reposicionar Portugal no mapa económico europeu. Tudo isso é verdade, mas falta sublinhar o essencial: este é um investimento de dimensão histórica (o Ministro Miguel Pinto Luz na Semana Reabilitação Urbana do Porto falou num total de 14.000 milhões de euros), capaz de transformar profundamente o país, embora não obrigatoriamente para melhor. Sem planeamento coerente, sem estratégia fundiária e sem visão urbana, esta obra corre o risco de acelerar fluxos sem fixar valor nos territórios, sobretudo onde esse valor é hoje mais necessário.
Obviamente que a redução dos tempos de viagem aproxima centros empresariais, universidades, portos atlânticos e polos tecnológicos. A experiência internacional demonstra que quando a acessibilidade aumenta bruscamente, o valor económico e fundiário dispara. Mas também mostra que a infraestrutura, isolada, não cria desenvolvimento; apenas cria potencial. E é sempre o território que decide se o potencial se converte em crescimento ou em desigualdade.
Nenhuma cidade portuguesa exemplifica melhor esta encruzilhada do que o Porto. Após décadas de perda demográfica, o Porto voltou a crescer de forma sólida, aumentando população entre 2014 e 2024 a um ritmo que duplicou o de Matosinhos e Vila Nova de Gaia, por exemplo. Este movimento confirma a vitalidade urbana da cidade e reforça a sua capacidade de atrair talento, empresas e investimento. Mas este regresso de residentes evidencia também a urgência de uma estratégia clara de densificação: sem uma expansão inteligente da oferta habitacional e de usos mistos, a competição pelo solo intensifica-se, os preços sobem e parte do talento que hoje procura o Porto será forçada a procurá-lo fora. Densificar não é apenas uma questão urbanística; é uma condição económica para manter a cidade competitiva, reduzir pressão sobre os preços, atrair novas empresas e consolidar o Porto como polo de inovação no corredor atlântico. A alta velocidade poderá amplificar este efeito positivo, transformando Campanhã numa centralidade intermodal estruturante, mas só se a densificação for encarada como prioridade estratégica e não como mero ajustamento marginal.
É precisamente por isso que o Plano de Pormenor de Campanhã, recentemente apresentado pela Câmara Municipal do Porto, merece ser reconhecido como um passo importante e raro num país onde o urbanismo reage mais do que antecipa. Trata-se de um esforço sério para estruturar a área envolvente da futura estação, orientando densificação, usos mistos, espaço público e conectividade com a restante cidade. É um mérito político e técnico que importa sublinhar. No entanto, permanece a questão essencial: até que ponto a visão de cidade e, sobretudo, a visão de região se articulam de facto com a escala de transformação que a alta velocidade introduzirá? Um plano de pormenor, por mais competente que seja, não substitui a definição clara do que se pretende para o Porto como centro atlântico de inovação, nem a coordenação metropolitana necessária para garantir que Campanhã não é apenas um enclave renovado, mas a peça central de uma estratégia territorial capaz de transformar a nova ferrovia num motor de desenvolvimento para toda a região norte. Sem esta convergência entre plano, cidade e região, o risco é evidente: o Porto preparar se com rigor local para uma transformação cuja lógica é, inevitavelmente, supralocal.
O desafio estende se às cidades médias que se encontram ao longo do corredor. Aveiro, Coimbra, Leiria, Braga e Viana do Castelo dispõem de condições ímpares para captar residentes e empresas interessadas em custos mais competitivos sem perder acesso rápido às áreas metropolitanas. Contudo, essa vantagem só será real se existirem políticas de retenção de talento, estratégias de densificação inteligente e planos articulados para as áreas envolventes das futuras estações. Caso contrário, estas cidades correm o risco de se tornarem meros pontos de passagem. Uma estação de alta velocidade que não estrutura o território não é um polo de atração; é um ponto de extração. Extrai talento para Lisboa e Porto (na melhor das hipóteses ou para Madrid e Vigo), extrai consumo para centros maiores e extrai investimento para mercados mais consolidados. A promessa da cidade a uma hora pode facilmente cumprir-se ao contrário do esperado.
O principal problema é que Portugal continua a tratar as grandes obras como feitos de engenharia e não como instrumentos de transformação económica e urbana. Não existe, infelizmente, uma política de valorização fundiária que permita ao Estado e aos municípios recuperar parte da mais valia gerada pela nova conectividade, como bem referiu Carlos Guimarães Pinto na última semana na Semana de Reabilitação Urbana do Porto. Mais, não há planeamento territorial que oriente o crescimento de forma integradora ao longo do corredor, como o mesmo também exemplificou com os campos de ovelhas ao lado das estações de comboio.
Mais ainda, também não existe, até agora, um modelo de governação capaz de assegurar que um investimento público desta dimensão gera retorno coletivo e não apenas rendimentos privados. Vários países demonstram que a valorização fundiária criada por grandes infraestruturas pode e deve ser capturada pelo poder público para reinvestimento coletivo. O Japão é o caso clássico, com operadores ferroviários que desenvolvem habitação e serviços em redor das estações, financiando parte da rede com as mais valias urbanas que geram. Em França e na Dinamarca, mecanismos fiscais e empresas público municipais capturam diretamente a valorização criada por metros e linhas rápidas, canalizando a receita para habitação, espaço público e serviços. Estes exemplos mostram que é possível transformar mais-valias fundiárias em qualidade de vida e competitividade urbana. Em Portugal, porém, essa captura continua residual: o território financia o projeto, mas o retorno económico e social permanece largamente desaproveitado.
As linhas de alta velocidade vão avançar, essa já não é a questão. O verdadeiro desafio é decidir que uso lhes queremos dar. Portugal pode limitar-se a investir milhares de milhões numa infraestrutura que apenas encurta distâncias e reforça desequilíbrios existentes, ou pode transformar este momento numa oportunidade estratégica: redistribuir crescimento, fortalecer cidades médias, recentrar o investimento produtivo e afirmar-se como verdadeira plataforma atlântica na Península Ibérica. Bem aproveitada, a alta velocidade pode impulsionar um novo ciclo urbano multipolar e um modelo de desenvolvimento económico capaz de retirar o país da cauda da Europa.
Em suma, a alta velocidade mudará inevitavelmente o país. Mas só com planeamento estratégico e uma visão clara de desenvolvimento urbano e fundiário poderá fazê-lo para melhor. Caso contrário, será apenas mais uma grande obra a atravessar um território que continua a não saber transformar oportunidades em progresso. E essa seria a pior conclusão de todas: chegarmos finalmente a tempo, mas continuarmos atrasados.
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