Salário “à la carte”. Nestas empresas o ordenado é pago quando o trabalhador quer

Flexibilidade é tendência no mercado de trabalho, incluindo no que diz respeito aos salários. Do retalho à indústria, várias empresas já permitem levantamento do ordenado quando o trabalhador quer.

O fim do mês ainda vai longe, mas a carteira de Francisca (nome fictício) está mesmo a precisar de um reforço, por causa de uma despesa inesperada. E se noutros tempos a padeira teria de esperar pela data definida pelo empregador para receber o salário, hoje consegue aceder em qualquer momento à fatia do ordenado equivalente aos dias já trabalhados, sem burocracia.

Depois de ter transformado o que se entende por horário e até por local de trabalho, a flexibilidade promete agora mudar a forma como os salários são pagos. Já há várias empresas portuguesas onde o trabalhador recebe o vencimento quando quer. A Gleba, rede de padarias lisboeta, é uma delas. Mas há também exemplos no retalho, na restauração, na advocacia e até na indústria.

“Achamos que, tendo em conta todas as dificuldades que temos sentido, fazia sentido os trabalhadores poderem ir gerindo o seu salário, em vez de esperar pelo fim do mês“, conta a manager de recursos humanos da referida rede de padarias ao ECO, explicando que foi no atual cenário de elevados níveis de inflação que a Gleba decidiu disponibilizar esta nova funcionalidade aos seus trabalhadores.

Andreia Aires precisa que esta possibilidade de receber o salário “já ganho” — isto é, o equivalente aos dias já trabalhados — está disponível para todos os trabalhadores, incluindo aqueles que estão ainda com contratos de trabalho a prazo. “São 150 trabalhadores”, indica a responsável, que garante que a funcionalidade tem sido “bem recebida“.

“Nem todos os trabalhadores utilizam esta funcionalidade, porque acham que não é necessário. Mas teve uma boa adesão“, sublinha Andreia Aires.

Pareceu-nos uma ferramenta extremamente pertinente de colocar à disposição das nossas pessoas. Introduz flexibilidade e plasticidade na gestão do orçamento mensal.

Sofia Fonseca

Diretora de recursos humanos da Procalçado

Da padaria para a indústria, a nortenha Procalçado, que se dedica ao fabrico de componentes para sapatos, também está a testar o modelo que permite aos seus trabalhadores receberem quando quiserem. “Pareceu-nos uma ferramenta extremamente pertinente de colocar à disposição das nossas pessoas. Introduz flexibilidade e plasticidade na gestão do orçamento mensal, o que cremos ser enriquecedor”, adianta a diretora de recursos humanos.

Sofia Fonseca salienta, em declarações ao ECO, que são 330 os trabalhadores que estão cobertos por esta funcionalidade, que foi para o ar há mês e meio.

Em contraste, a sociedade de advogados CCA Law Firm já tem implementada esta possibilidade há cerca de um ano e, nesse período, foram feitas 139 transações. “O que significa uma média de 11 levantamentos mensais“, detalha a diretora de recursos humanos.

De acordo com Teresa Rocha, a adoção desta ferramenta surge da “procura sistemática” de medidas que aumentem a qualidade de vida dos profissionais, “nas mais variadas vertentes”. Desta forma, a adoção da solução em causa permite não só “aliviar o stress financeiro“, mas também oferecer a “possibilidade de levantamento antecipado da retribuição mensal, sem expor o profissional“, argumenta.

No contexto socioeconómico que o país atravessa, não podemos descurar a importância de proporcionar soluções de benefícios flexíveis aos membros da nossa equipa.

António Eloy Valério

CEO da Multipessoal

Já a Multipessoal, empresa de recursos humanos, anunciou a possibilidade de o salário ser pago quando o trabalhador quiser, no momento em que celebrava os seus 30 anos de atividade. Assim, desde novembro de 2023 que os seus 200 trabalhadores estão a usufruir desta flexibilidade salarial.

“Cada vez mais, procuramos dar respostas eficazes e adequadas às necessidades dos nossos colaboradores e, em particular, no contexto socioeconómico que o país atravessa, não podemos descurar a importância de proporcionar soluções de benefícios flexíveis aos membros da nossa equipa”, sublinhou, na altura, o CEO da Multipessoal, António Eloy Valério.

Mas, afinal, como funcionam estes adiantamentos salariais?

Há várias formas de tirar do papel esta possibilidade de os trabalhadores receberam o salário quando lhes for mais conveniente. Já estão disponíveis no mercado várias empresas que facilitam esse serviço, como a espanhola Payflow (opção da Gleba) e as portuguesas Paynest (opção da CCA Law, da Procalçado e da Multipessoal) e Coverflex.

No caso da fintech espanhola Payflow (que chegou a Portugal em meados de 2022), à medida que os dias vão passando, os trabalhadores vão vendo crescer o dinheiro disponível no seu perfil, sendo que esse montante é equivalente aos dias já trabalhados. E sempre que desejem, podem fazer uma transação. Basta indicar a quantia na aplicação móvel e o dinheiro é depositado na conta bancária do trabalhador, sem ter de pagar qualquer taxa por essa antecipação.

“Os colaboradores têm acesso ao dinheiro pelo qual já trabalharam, em qualquer altura do mês. As empresas pagam a 30 dias por três questões essenciais: fundo de maneio, organização interna e trabalho associado ao processamento de salários“, sublinha a Payflow, que garante que “não altera os fluxos de caixa” das empresas que aderem a este serviço. Portanto, as transações são, primeiro, cobertas pela Payflow e, depois, os empregadores pagam.

Os salários são pagos mensalmente, porque é a solução mais fácil para as empresas. Porém, não é nada conveniente para os trabalhadores terem que esperar um mês para receber aquilo pelo qual trabalham todos os dias.

Duarte Barosa

Country manager da Payflow

Em declarações enviadas ao ECO, o country manager para Portugal desta fintech sublinha que “não é nada conveniente para os trabalhadores terem que esperar um mês para receber aquilo pelo qual trabalham todos os dias“. “Os salários são pagos mensalmente, porque é a solução mais fácil para as empresas”, atira.

Além da Gleba, a Payflow já está a ser usada, por exemplo, pelo Horto do Campo Grande, pela Muji, pela Lanidor e pelo grupo Non Basta.

Mas há também portugueses a oferecer este serviço. A Paynest, por exemplo, realça que permitir aos trabalhadores receber o salário quando quiserem não só beneficia esses profissionais, mas também os próprios empregadores, ao “melhorar a lealdade e a retenção“.

Ora, do lado dos trabalhadores, basta que instalem a app da Paynest e ficam com acesso ao valor pelo qual já trabalharam e a ferramentas de literacia financeira gratuitas. Por outro lado, são as empresas que definem as condições exatas que querem oferecer aos seus trabalhadores, e criam um fundo de onde saem os adiantamentos. A Paynest garante que se integra com o sistema de processamento salarial, sem necessidade de interrupções ou mudanças nos processos os empregadores.

“Uma empresa que disponibilize este benefício será vista como pioneira e, portanto, mais atrativa aos olhos de quem procura emprego“, já tinha frisado, em conversa com o ECO, o cofundador Nuno Pereira.

Nos últimos anos, tornou-se evidente que os colaboradores querem e precisam de políticas cada vez mais flexíveis e individualizadas.

Inês Odila

Country manager da Coverflex

Há ainda outra empresa portuguesa, a Coverflex, que consegue fornecer este serviço aos empregadores que o queiram oferecer aos seus trabalhadores. Esta startup até aqui estava focada na área dos benefícios flexíveis (como subsídios de refeição e cheques infância), mas a country manager anunciou no podcast do ECO “Trinta e oito vírgula quatro” que, desde outubro, teriam um novo braço: a funcionalidade “Acesso ao salário ganho”.

“Nos últimos anos, tornou-se evidente que os colaboradores querem e precisam de políticas cada vez mais flexíveis e individualizadas”, assinala a country manager Inês Odila.

A responsável explica que os trabalhadores que estejam abrangidos pela funcionalidade em questão podem solicitar o pagamento do salário, assim que quiserem, e de acordo com a calendarização definida pelos próprios.

“Esta nova solução permitirá aos colaboradores, sem qualquer esforço e de forma totalmente digital e flexível, requisitarem o pagamento do salário no valor correspondente aos dias já trabalhados. Ou seja, poderão requisitar parte do seu salário com uma periodicidade ou calendarização diferente da mensal“, esclarece Inês Odila, que adianta que a 6.000 empresas já usam a Coverflex, embora não revele, para já, quantas destas disponibilizam o “Acesso ao salário ganho”.

Literacia financeira com reforçada importância

Esta não é uma tendência apenas no mercado português. Nos Estados Unidos tem também conquistado cada vez maior popularidade, segundo a imprensa internacional.

Quando usado de forma correta, é ótima“, realçou o especialista em banca e tecnologia Marshall Lux, em declarações recentes à CNBC. Mas deixou um alerta contra o uso em excesso, especialmente se estiverem em causa sistemas que cobram taxas aos trabalhadores.

Daí que, a par de permitir o levantamento do salário a qualquer momento, seja importante reforçar a literacia financeira dos profissionais. “Para o próximo mês de março, está agendado um workshop de literacia financeira destinado a todas as nossas pessoas”, destaca, assim, ao ECO a diretora de recursos humanos da CCA Law Firm.

Preocupa-nos a baixa literacia financeira existente em Portugal“, concorda a diretora de recursos humanos da Procalçado. Por isso, da parte dessa empresa industrial portuguesa, a possibilidade de adiantar o salário chegou casada com a promoção de um conhecimento mais profundo sobre bem-estar financeiro.

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