Houve igualdade na austeridade?

Faça rewind: o que aconteceu aos seus rendimentos durante o programa de ajustamento? O ECO foi analisar estudos com conclusões díspares para responder à pergunta: houve igualdade na austeridade?

As políticas de austeridade podiam chamar-se políticas de polémica: têm sempre como objetivo controlar os gastos, neste caso do Estado, e isso significa que alguém vai sofrer as consequências. A pergunta impõe-se: quem? A discussão sobre quem mais sofreu com a austeridade em Portugal é complexa e são vários os estudos sobre o tema.

Como (quase) tudo na economia é afetado por diversas variáveis, a conclusão final depende do ângulo ou perspetiva para analisar uma certa realidade. No início de 2014, o Fundo Internacional Monetário divulgava o relatório “Políticas orçamentais e desigualdades no rendimento” onde se sustentava que quem mais perdeu com as políticas de austeridade foram os mais ricos.

Por outro lado, o estudo de 2016 “Desigualdade do Rendimento e Pobreza em Portugal: As Consequências Sociais do Programa de Ajustamento” da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) revela o contrário: quem mais perdeu rendimento com as políticas de austeridades foram os mais pobres. Em termos relativos, a quebra foi maior nos rendimentos dos mais pobres e menor nos rendimentos dos mais ricos, defendem os autores.

Afinal: o que concluir?

Dito isto, é preciso evidenciar que há uma diferença significativa nestes dois trabalhos. Enquanto o estudo do FMI se enquadra maioritariamente entre 2008 e 2012, o estudo da FFMS só começa em 2009 e inclui o período de 2012 e 2014. Esta pequena diferença pode influenciar a própria discussão uma vez que, neste último gráfico (69), os dados mostram que no período 2008-2011 os ricos tiveram um impacto maior fruto das alterações das políticas, mas no período 2011-2014 esse impacto é ligeiramente maior no primeiro decil, ou seja, os mais pobres.

Ao ECO, Carlos Pereira da Silva, professor de economia e finanças no ISEG, argumenta que o estudo da Fundação tem por base a sociologia económica e não na economia ou finanças públicas. Os autores explicam o objetivo: “Com este estudo pretende-se uma avaliação rigorosa, e tão aprofundada quanto a informação estatística disponível o permite, das consequências sociais de uma das mais profundas crises que Portugal atravessou nas últimas décadas, e analisar, sempre que possível, as medidas implementadas pelas autoridades públicas para lhes fazer frente”.

Por outro lado, o relatório do FMI foca-se na economia, em específico nas finanças públicas, considera Carlos Pereira da Silva. Por isso, partindo de perspetivas diferentes, o resultado teria de ser diferente, argumenta o professor do ISEG. Daí não é de estranhar que as conclusões entre a desigualdade provocada pelas políticas de austeridade sejam díspares.

As mudanças estruturais são tão violentas que mantém pessoas no desemprego estrutural a partir dos 50 anos para a frente. Uma maneira de acomodar isso no passado era transformá-los em funcionários públicos.

Carlos Pereira da Silva

Professor do ISEG

“O enfoque é completamente diferente”, argumenta ao ECO. O estudo do FMI diz que “as políticas de austeridade eram necessárias para colocar a economia a crescer, as consequências eram conjunturais e se a economia crescer elas desaparecerão”, explica o professor. Já o outro estudo “é ideologicamente focado para mostrar que as políticas de austeridade são uma coisa má. Não analisam historicamente como é que se chegou até aqui”.

Carlos Pereira da Silva conclui que “o desemprego em Portugal já existia previamente às medidas do FMI. Agravou-se e depois voltou à estaca normal que é onde está agora”. O professor do ISEG argumenta que “o retrato das pensões baixas, dos salários baixos, do desemprego precário, vem de uma economia que se deslumbra com a entrada na moeda única e depois não tem uma base económica para acompanhar”. Carlos Pereira da Silva deixa a pergunta: “Como é que vamos distribuir rendimentos se não produzimos?”

A discussão política

Após o primeiro-ministro António Costa ter citado o estudo de Carlos Farinha Rodrigues no debate quinzenal no Parlamento, o vice-presidente do PSD, Marco António Costa, atacou o documento classificando-o de “um inaceitável embuste”. Para o dirigente do PSD a análise favorece uma visão “distorcida da realidade e dos factos ocorridos” 2009 e 2014. disse na conferência que apelidou de “reposição da verdade”.

Quando os autores colocam o enfoque nas consequências do ‘Programa de Ajustamento’, voluntariamente encaminham as pessoas para considerarem que as conclusões do estudo são apenas relativas aos anos de Governo PSD/CDS, entre 2011 e 2014, o que é um claro embuste.

Marco António Costa

Vice-presidente do PSD

O argumento de Marco António Costa é que o estudo induz em erro os cidadãos porque inclui os anos de 2009 a 2011, um período anterior ao resgate financeiro e à aplicação do programa de ajustamento. Para o vice-presidente do PS foram os últimos dois anos da governação de José Sócrates que mais penalizaram “as classes desfavorecidas”. Foi nesta altura que “os pobres foram mais penalizados do que os ricos”, disse.

Em resposta, num artigo no semanário Expresso, Carlos Farinha Rodrigues afirmou que o vice-presidente do PSD “não contesta nenhum dos indicadores ou resultados apresentados no estudo”. “A sua principal preocupação parece ser a de demonstrar que as principais responsabilidades nas alterações ocorridas nos rendimentos em Portugal não são do Governo PSD/CDS mas do Governo que o antecedeu”, acusou.

O coordenador do estudo defendeu-se dizendo que o único objetivo do estudo era analisar como se alteraram as condições de vida dos portugueses e “não a de fazer qualquer associação com o governo A ou B, aliás nunca referidos no texto”.

Esta semana, também a ex-ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite criticou Carlos Farinha Rodrigues: “Os pobres não estão mais pobres, o que há é mais pobres”, afirmou. Ferreira Leite argumentou que não existe uma gradação de pobreza e que a “a classe média mais baixa é que ficou pobre”, tendo sido afetada pelas políticas de austeridades dos últimos anos. “As pessoas perdem poder de compra; outra coisa é empobrecer (…) Não é possível distribuir-se o que não há”, rematou numa conferência sobre pobreza.

Teodora Cardoso Rui Rio Manuela Ferreira Leite Carlos Farinha Rodrigues

Também presente no painel, o ex-presidente de Tribunal de Contas, Guilherme d’Oliveira Martins, argumentou que “a pobreza não é um fenómeno uniforme e que a partir da sua diversidade temos de encontrar as respostas”. “A economia tem de ser humana”, afirmou o jurista, referindo que “não podemos bater apenas as estatísticas que podem de algum modo enganar-nos”. “Há fenómenos que não estão nas estatísticas”, avisou.

“Lutar contra a pobreza é um imperativo da vida”, afirmou o ex-autarca Rui Rio, outro orador no debate. “São precisos menos recursos para resolver um dado problema se houver proximidade”, disse, referindo-se ao problema da pobreza. Foi assim que resolveu esse drama no Porto, onde foi autarca de 2001 a 2013, pois “conhecemos melhor o problema”: “À distância não se resolve o problema. É só atirar dinheiro para cima do problema”. “Sou capital da cultura quando eliminarmos a pobreza”, disse sobre o primeiro ano de mandato quando o Porto foi Capital Europeia da Cultura.

FMI reconheceu erros

Apesar de o fundo ter dito que “as medidas orçamentais preveniram um aumento da desigualdade”, a própria instituição liderada por Lagarde contradiz-se num estudo de julho deste ano de um órgão independente do FMI que reconhece que houve erros no ajustamento português. Num relatório do Organismo de Avaliação Independente sobre os resgastes da Zona Euro, a secção sobre Portugal referia “otimismo” nas previsões e “erros” nas estimativas dos impactos orçamentais das políticas de austeridade. Além disso, a crítica alargou-se aos multiplicadores aplicados nos quadros Excel dos países intervencionados que subestimaram o efeito negativo das medidas.

A Troika utilizou um multiplicador de 0,5 em Portugal, valor que corrigiu para 0,8 em 2012. O multiplicador traduz-se na seguinte consequência: a perda provocada no Produto Interno Bruto por cada euro de austeridade passou de 50 para 80 cêntimos. Em suma, este erro agravou a recessão e, principalmente, adiou a retoma. O caso português é ainda atacado por não ter feito todas as reformas estruturais e por não ter realizado a desvalorização fiscal, além de a sustentabilidade da dívida pública continuar em causa.

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Outro relatório de quatro técnicos do FMI de 2013 reconhecia efeitos mais graves. O documento intitulado “The Distributional Effects of Fiscal Consolidation” refere-se aos ajustamentos orçamentos de 17 países da OCDE entre 1978 e 2009, onde se inclui Portugal. No entanto, é de referir que esta análise não inclui o programa de ajustamento mais recente de Portugal.

As principais conclusões deste working paper é que as políticas orçamentais de consolidação aumentam a desigualdade. Os autores afirmam que a austeridade diminuiu os rendimentos do trabalho, aumentam o desemprego de longo prazo e que o aumento de impostos não é pior do que cortes na despesa pública. Além disso, o relatório diz que as políticas agravaram de forma “duradoura” o índice de Gini (que mede a desigualdade).

Os ajustamentos orçamentais que usam os cortes de despesa pública dão origem a efeitos distributivos negativos “muito maiores do que os ajustamentos por via dos impostos”, argumentam os autores. A terminar, o working paper escreve que as “consolidações orçamentais excessivamente apressadas representam riscos para a recuperação económica” e, por consequência, na desigualdade criada na sociedade.

Editado por Mónica Silvares

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