Relatório da comissão de inquérito iliba Centeno no caso dos SMS

Domingues entendeu uma coisa, Centeno outra. O "erro de perceção mútuo" levou à demissão do primeiro. E nunca houve acordo para isentar o gestor de declarar rendimentos, conclui a comissão dos SMS.

“Em momento algum houve qualquer acordo para a alteração do Regime Jurídico do Controlo Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos, podendo haver meras referências ocasionais sobre essa matéria”. Leia-se: não houve, entre Mário Centeno e António Domingues, qualquer acordo para isentar o antigo presidente da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e restantes administradores de apresentarem as respetivas declarações de património e de rendimentos ao Tribunal Constitucional. António Domingues fez uma leitura diferente da correspondência trocada com o ministro das Finanças e os “pressupostos que julgava por adquiridos” acabaram por levar à sua demissão.

Esta é a principal conclusão do relatório final da Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar à Atuação do XXI Governo Constitucional no que se relaciona com a Nomeação e a Demissão da Administração do Dr. António Domingues, que ficou conhecida como a comissão dos SMS. O documento, a que o ECO teve acesso, vai ser discutido e votado pelos deputados desta comissão no dia 17 de outubro, de acordo com a informação publicada no site da Assembleia da República.

"Os depoimentos foram esclarecedores o bastante para que fosse possível indagar o que havia a indagar, esclarecer o que havia a esclarecer, não havendo qualquer óbice de outra natureza que impossibilitasse a retirada de conclusões.”

Relatório da Comissão de Inquérito à Demissão de António Domingues

Ao fim de pouco mais de 100 páginas, o relator desta comissão, o deputado socialista Luís Testa, conclui que “os depoimentos foram esclarecedores o bastante para que fosse possível indagar o que havia a indagar, esclarecer o que havia a esclarecer, não havendo qualquer óbice de outra natureza que impossibilitasse a retirada de conclusões”. Isto apesar de, ao mesmo tempo, reconhecer que houve vários casos de recusa de envio de documentos. As recusas mais marcantes foram as Mário Centeno em enviar o conteúdo das SMS trocadas com António Domingues, que poderiam revelar o compromisso (ou não) da isenção de entrega das declarações ao Constitucional.

A lista de razões para a recusa de entrega de documentos à comissão é longa. “Houve casos de recusa de envio de alguns documentos, sustentada na invocação do segredo profissional, do segredo bancário e do segredo de supervisão, que constituem modalidades de segredo profissional, ou, ainda, segredo de negócio”, começa por referir o relatório, para, logo de seguida, acrescentar:

“As entidades requeridas fundamentaram também o não envio da documentação solicitada na não inclusão dos documentos no objeto da comissão, na não autoria dos documentos solicitados, no facto de os elementos solicitados não terem por destinatária a Caixa Geral de Depósitos, a circunstância de o Banco Central Europeu ter noticiado a Caixa Geral de Depósitos para não disponibilizar quaisquer elementos relativos à correspondência trocada sem a sua prévia autorização casuística, a não disponibilidade dos elementos solicitados, a inexistência da documentação e o facto de os documentos solicitados se encontrarem sob a responsabilidade legal do Banco Central Europeu”.

"A CPIAGNDAD, em 21 de abril de 2017, insistiu junto da Caixa Geral de Depósitos, do Ministério das Finanças e do Banco de Portugal no sentido de lhe serem facultados os documentos requeridos, manifestando a sua disponibilidade para diligenciar meios alternativos de acesso aos mesmos. No entanto, as entidades persistiram na recusa de envio de alguns dos documentos solicitados.”

Relatório da comissão de inquérito à demissão de António Domingues

O relatório acaba por reconhecer que a comissão “insistiu junto da Caixa Geral de Depósitos, do Ministério das Finanças e do Banco de Portugal no sentido de lhe serem facultados os documentos requerido”, mas estas entidades “persistiram na recusa”.

O erro de perceção mútuo

A história começa no início do ano passado, quando o Governo convida António Domingues para presidir o conselho de administração da CGD. Em agosto desse ano, Domingues assume a liderança do banco público. É antes disso que começa a saga que acabou por levar à constituição desta comissão: Domingues, Centeno e Ricardo Mourinho Félix começam a trocar correspondência em abril de 2016, e é nessas correspondências que o antigo banqueiro faz uma série de exigências — entre as quais a isenção do Estatuto do Gestor Público –, que, no seu entender, foram aceites, como o próprio admitiu depois, quando foi ouvido na comissão de inquérito.

"Todas as condições foram expostas e apresentadas ao Governo e, no meu juízo, foram aceites. Escrevi a nota porque tinha consciência de que estava a propor alterações fundamentais ao modelo e quis que ficasse escrito para que não houvesse dúvidas.”

António Domingues

Antigo presidente da CGD

Entretanto, em junho de 2016, o Governo aprova as alterações ao Estatuto do Gestor Público que viriam satisfazer as exigências de António Domingues. O decreto-lei veio isentar os gestores do banco público dos tetos salariais impostos aos restantes gestores públicos, mas não fazia referência à obrigatoriedade de declaração de rendimentos e património, que está prevista noutra lei que não o Estatuto do Gestor Público. Essa obrigação consta do Regime Jurídico do Controlo Público da Riqueza dos Titulares de Cargos Políticos, de 1983.

Em outubro de 2016, pouco depois de António Domingues assumir o cargo de presidente da CGD, o comentador Marques Mendes levanta a questão: os administradores da CGD não vão entregar ao Tribunal Constitucional as respetivas declarações de rendimentos e de património? Três semanas depois, a 15 de novembro, António Domingues envia nova carta a Centeno, a quem expressa a sua “surpresa” relativamente a essa questão: “Foi, desde logo, com grande surpresa que vimos serem suscitadas dúvidas sobre as implicações da exclusão dos membros do Conselho de Administração da CGD do Estatuto do Gestor Público, concretamente sobre a possível necessidade de envio de tais declarações ao Tribunal Constitucional”, referia a carta a que o ECO teve acesso.

Essa não obrigação de entregar as declarações “foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD”, acrescentava Domingues. Foi esse o “erro de perceção mútuo”, como Mário Centeno veio a descrevê-lo quando foi ouvido na comissão de inquérito.

E é também isso que conclui o relatório desta comissão: uma parte entendeu uma coisa, outra entendeu coisa diferente. “Não é por não se aplicar o Estatuto do Gestor Público a uma subclasse de gestores públicos que estes ficam exonerados das restantes obrigações a que estão sujeitos — nomeadamente as constantes da lei n.º 4/83, de 2 de abril — já que não afastadas a nenhuma classe ou subclasse de gestores públicos”, conclui o relator.

"Em momento algum houve qualquer acordo para a alteração do regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos, podendo haver meras referências ocasionais sobre essa matéria.”

Relatório da comissão de inquérito à demissão de António Domingues

Ao mesmo tempo, conclui que esse regime de exceção nunca foi acordado com Domingues. “Das audições foi ainda possível concluir que em momento algum houve qualquer acordo para a alteração do regime jurídico do controlo público da riqueza dos titulares de cargos políticos, podendo haver meras referências ocasionais sobre essa matéria”.

Admitem-se apenas interpretações diferentes sobre este assunto. “O que é possível admitir é que possa ter sido suscitado o convencimento de que a alteração do Estatuto do Gestor Público, nos termos em que foi feita, poderia exonerar de restantes obrigações os gestores públicos em causa, o que, como já se demonstrou, não exonera”.

"A saída do Dr. António Domingues deriva, não de qualquer aspeto relacionado com a administração da CGD, mas sim de questões de relação com o acionista, construídas com base em pressupostos que o próprio julgava por adquiridos.”

Relatório da comissão de inquérito à demissão de Domingues

Assim, e por fim, a demissão de António Domingues só teve um culpado: o próprio, que percebeu mal ao que ia. “A saída do Dr. António Domingues, como facilmente se constata, deriva, não de qualquer aspeto relacionado com a administração da Caixa Geral de Depósitos, uma vez que todos os objetivos a que se propunha haviam sido alcançados, mas sim de questões de relação com o acionista, construídas com base em pressupostos que o próprio julgava por adquiridos, face ao entendimento que fazia do alcance da alteração do Estatuto do Gestor Público”, conclui o relatório.

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