Luanda Leaks. Portugal falhou prazo de diretiva de lavagem de dinheiro. Quid iuris?
Em contexto 'Luanda Leaks', as justificações para os atrasos da quinta diretiva europeia de lavagem de dinheiro são ainda mais necessárias e urgentes. Advogados explicam o que está em causa.
O aviso partiu esta semana de Bruxelas: já que não cumpriram o prazo que terminava a 10 de janeiro para a transposição da quinta diretiva comunitária relativa a branqueamento de capitais, os oito Estados-membros têm agora dois meses para explicarem as razões dessa demora. A par com Chipre, Hungria, Holanda, Roménia, Eslováquia, Eslovénia e Espanha, Portugal é um dos visados. Problema? Depois de conhecido a investigação Luanda Leaks, as justificações dessa demora por parte das autoridades portuguesas são ainda mais necessárias e urgentes.
Certo é que 24 horas depois deste aviso, o Governo prontificou-se a explicar que está “na fase final” dos trabalhos. “O Governo está na fase final dos trabalhos de transposição da Diretiva 2018/843/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho (usualmente denominada como a 5.ª Diretiva AML ou Diretiva ‘Anti-Money Laundering’)”, esclareceu o Ministério das Finanças, apontando que “os recentes escândalos” tornam evidente a necessidade de regras rigorosas, explicou à Advocatus do ECO fonte da tutela de Mário Centeno.
A Diretiva da União Europeia (UE) 2018/843, que tinha como prazo de transposição até 10 de janeiro, estabeleceu normas de prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo. Aprovada em setembro de 2018, com 634 votos a favor, 46 contra e 24 abstenções, os deputados pugnaram por mudanças nas infrações penais nos diversos países.
Segundo o Ministério das Finanças, estes trabalhos “deverão ainda incluir alterações ao regime jurídico do registo central do beneficiário efetivo e diplomas conexos, no sentido de simplificar procedimentos e aclarar alguns aspetos técnicos que tornarão o registo mais automatizado e adequado à realidade nacional, estando previsto para breve o envio do projeto de diploma à Assembleia da República”, sublinhou o Governo.
O Consórcio Internacional de Jornalismo de Investigação revelou no dia 19 de janeiro mais de 715 mil ficheiros, sob o nome de Luanda Leaks, que detalham esquemas financeiros de Isabel dos Santos e do marido, Sindika Dokolo, que terão permitido retirar dinheiro do erário público angolano utilizando paraísos fiscais. Isabel dos Santos foi constituída arguida pelo Ministério Público de Angola, mas já veio negar as acusações, dizendo-se vítima de um ataque político.
Mas o que pode acontecer a Portugal caso não transponha a diretiva? E a não transposição da diretiva por Portugal torna-se um problema ainda maior à luz do Luanda Leaks? Os advogados contactados pelo ECO/Advocatus explicam.
O que pode acontecer a Portugal caso não transponha a diretiva no prazo?
A demora na transposição de diretivas não é nenhum “drama”, desdramatiza Rui Patrício, lembrando que é recorrente para os países. “Vivemos por modas e por ciclos, e este tema ‘está agora ‘em cima da mesa’, em geral e especialmente ligado a casos concretos”, sublinha o sócio da Morais Leitão. “Esse ‘caldo’ sociológico, institucional e mediático alimenta todo o tipo de exageros, de análises superficiais, e muito sonoras, e de confusões, ao que se junta, como agravante, que há sempre meia dúzia de treinadores de bancada, tudólogos e opinadores profissionais a cavalgar estes temas, alimentando o ruído e a dramatização”, nota o advogado.
Rui Patrício considera que o sistema jurídico português está suficientemente “apetrechado” e que nem houve tempo ainda para “digerir e “estabilizar” a transposição da quarta diretiva, cheia de questões, problemas e excessos, segundo o próprio, quanto mais transpor a quinta diretiva.
Esse ‘caldo’ sociológico, institucional e mediático alimenta todo o tipo de exageros, de análises superficiais, e muito sonoras, e de confusões, ao que se junta, como agravante, que há sempre meia dúzia de treinadores de bancada, tudólogos e opinadores profissionais a cavalgar estes temas, alimentando o ruído e a dramatização.
Já José Maria Corrêa de Sampaio e Ana Rita Duarte Campos consideram que esta não transposição da diretiva, faz com que Portugal corra o risco de ser alvo de um “processo por infração” e ver-lhe dirigida uma ação junto do Tribunal da Justiça da UE, por parte da Comissão. Porém, os sócios da Abreu Advogados consideram que as normas vigentes no ordenamento jurídico português neste âmbito são já “bastante completas e cumprem a sua função”.
“Esta nova diretiva introduz, no entanto, um número significativo de medidas que visam harmonizar os instrumentos jurídicos dos vários países nestas matérias, tendo como objetivo declarado e muito sumariamente, fazer face a novos meios de financiamento do terrorismo internacional, como seja o uso de moedas virtuais, cartões pré-pagos anónimos e outras. E define novos requisitos para a identificação de pessoas politicamente expostas, identifica territórios ou países de risco que merecem um acompanhamento mais rigoroso”, nota José Maria Corrêa de Sampaio.
O sócio da área de penal & compliance da CCA Law Firm, Henrique Salinas, considera que os incumprimentos são sempre inconvenientes. Porém, estando a diretiva “publicada no jornal oficial” e “destinando-se a entidades que operam no sistema financeiro”, o atraso de cerca de um mês “não trará consequências muito graves”. E adianta ainda que, na sua opinião, “não será a medida com a maior prioridade em matéria penal, tanto mais que” em Portugal já está “em vigor a obrigação de identificação dos últimos beneficiários das pessoas coletivas”, refere Henrique Salinas.
Menos otimista é a advogada da Antas da Cunha Ecija, Sofia Matos, que considera que o incumprimento de Portugal perante a transposição das normas demonstra “falta de compromisso”. “Esta omissão demonstra bem a falta de compromisso do Estado português na transposição de Diretivas Europeias que visam harmonizar a legislação dos Estados-membros no combate nesta matéria que foi eleita por este Governo como bandeira política”, assegura.
Esta omissão demonstra bem a falta de compromisso do Estado português na transposição de Diretivas Europeias que visam harmonizar a legislação dos Estados-membros no combate nesta matéria que foi eleita por este Governo como bandeira política.
“Não considero que Portugal verdadeiramente tenha qualquer incumprimento substancial em transposição de medidas legais de combate ao BC/FT, desde logo porque a anterior diretiva foi por Portugal transcrita com uma violência, rigor e abrangência que nenhum outro dos três países que a tinham transposto em 2019 o fez”, defende, por seu turno, Paulo Saragoça da Matta. “Ademais, a transposição de qualquer nova Diretiva, como é sabido, demora por natureza e definição tempo – é por não se pensar seriamente a transposição e os seus efeitos no edifício jurídico global que começamos a ter situações totalmente incongruentes no sistema legal, com normas com comandos contraditórios, opostos ou pelo menos incompreensíveis”.
O advogado admite ainda que gostaria “de ver a se a reação da UE seria a agora vista se algum alegado escândalo ocorresse no Reino Unido (até agora) ou na Alemanha, no âmbito de branqueamento de capitais ou financiamento do terrorismo. Ademais, a inexistência de escândalos nesses países, ou em França e Itália, pode dever-se não à existência de um sistema legal perfeito, mas a uma inação ou deficientes enforcement policies por parte das autoridades“, sublinha.
Para Sofia Matos, a não transposição da diretiva por Portugal levanta a dúvida se é “falta de compromisso” ou “inconsciência consciente”, uma vez que o país tem 22 situações pré-contenciosas levantadas pela Comissão Europeia por “atrasos na transposição de diretivas comunitárias para a legislação nacional”.
Não considero que Portugal verdadeiramente tenha qualquer incumprimento substancial em transposição de medidas legais de combate ao BC/FT, desde logo porque a anterior diretiva foi por Portugal transcrita com uma violência, rigor e abrangência que nenhum outro dos três países que a tinham transposto em 2019 o fez.
A advogada da Antas da Cunha ECIJA explicou ainda à Advocatus do ECO a emergência da transposição da Diretiva, face à “emergência transnacional” sentida. Apesar de toda a legislação já existente no ordenamento nacional, Sofia Matos garante que o sistema continua a não funcionar porque “as entidades visadas obrigadas aos deveres de informação não transmitem às entidades reguladoras ou de investigação criminal, as suspeitas de existência de operações suscetíveis de ser enquadradas no crime de branqueamento de capitais”.
Após o incumprimento, a sócia da CRS, Raquel Galinha Roque admite que a fama que precede Portugal não “abona” a favor do país, apesar de “Portugal ter vindo a melhorar o seu ranking no cumprimento da sua obrigação de transposição do direito comunitário para o direito nacional”.
“O país da UE pode ser condenado a cumprir certas medidas, caso entenda que houve violação do direito da UE e caso este persista em não cumprir com o Acórdão, a Comissão Europeia pode remeter novamente o caso ao TJUE e o país da UE ser condenado no pagamento de uma quantia fixa ou uma sanção pecuniária compulsória ou ainda serem-lhe impostas sanções financeiras, para o caso de não transpor a diretiva ou sequer justificar a sua não transposição ou medidas tomadas nesse sentido”, explica a sócia, caso Portugal não transponha a diretiva.
A não transposição da diretiva torna-se um problema ainda maior, à luz do Luanda Leaks?
Rui Patrício é assertivo: “Não! E o ponto de exclamação resulta essencialmente do que disse antes. Ao que acrescento que lamento que ainda não se tenha aprendido duas coisas: uma, que mudar a lei a respeito de casos concretos não é bom; outra, que fazer da Justiça e afins um espetáculo é péssimo. E fico por aqui”.
Já a sócia da CRS, Raquel Galinha Roque, admite que se os factos tivessem sido hoje praticados “dificilmente teriam passado despercebidos e rapidamente detetados quer pelos diferentes sujeitos que nele intervieram quer pelas entidades obrigadas ao controlo como entidades bancárias e a CMVM evitando-se muito provavelmente o alegado branqueamento de capitais ou pelo menos o controlo dos beneficiários efetivos”.
[Se os factos tivessem sido hoje praticados] dificilmente teriam passado despercebidos e rapidamente detetados quer pelos diferentes sujeitos que nele intervieram quer pelas entidades obrigadas ao controlo como entidades bancárias e a CMVM.
José Maria Corrêa de Sampaio e Ana Rita Duarte Campos, sócios da Abreu Advogados não consideram que influencie, contudo, “a não transposição desta diretiva poderá desde logo causar um dano reputacional ao país, neste momento ampliado pela existência do Luanda Leaks”.
Já o sócio da CCA, Henrique Salinas, defende que concerne à influência que possa ter no caso Luanda Leaks, diz apenas que “estando em causa medidas preventivas, as mesmas não serão relevantes para factos já praticados há vários anos”.
Com o caso Luanda Leaks bem se vê que Portugal está exposto a uma total vulnerabilidade, onde nem a existência de uma Lei de Branqueamento de Capitais de 2017 foi suficiente para dissuadir a utilização de Portugal como plataforma de um esquema fraudulento que se ramificou por diversos países.
“Problema maior sim, mas apenas do ponto de vista da imagem política do nosso Estado face aos parceiros europeus”, sublinha a advogada da Antas da Cunha ECIJA, Sofia Matos. “Já que com o caso Luanda Leaks bem se vê que Portugal está exposto a uma total vulnerabilidade, onde nem a existência de uma Lei de Branqueamento de Capitais de 2017 foi suficiente para dissuadir a utilização de Portugal como plataforma de um esquema fraudulento que se ramificou por diversos países. Não bastam as Leis e as Diretivas comunitárias existirem, é preciso fazer aplicar a Lei. Se não existir vontade política não há Diretivas que nos salvem!”, remata.
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