#Episódio 3. O porteiro espanhol recrutado por Salgado que custou 300 milhões à Venezuela
Salgado mandou recrutar um venezuelano para se fazer passar por dirigente da PDVSA. Um porteiro conseguiu desbloquear várias contas no BES para investir em dívida da ESI que passou para a Rioforte.
A história tem ingredientes de um verdadeiro filme de Hollywood, em que Ricardo Salgado assume o papel principal num enredo que começa com o roubo de identidade a um porteiro espanhol, desenvolve-se com documentos forjados e reuniões inventadas, e acaba com a Petroleos da Venezuela SA (PDVSA) a perder mais de 300 milhões de euros com a falência da Rioforte, em 2014.
No início daquele ano, já com a ESI em dificuldades financeiras, Ricardo Salgado montou um esquema para ter acesso a fundos da PDVSA depositados no BES, que seriam aplicados em obrigações da Rioforte, ficcionando para isso um concurso lançado pelo grupo petrolífero venezuelano para a gestão de um fundo de ativos e de uma carteira de investimentos no valor acima de 3,5 mil milhões. Toda a ação é contada pelo Ministério Público no despacho de acusação no âmbito da investigação “Universo Espírito Santo”.
A tese é esta: para executar o plano, o ex-líder do BES mandou João Alexandre Silva, ex-diretor da sucursal do banco na Madeira, recrutar um cidadão venezuelano para se fazer passar por dirigente do grupo venezuelano. Foi “contratado” José Trinidad Márquez, que assumiu a identidade de Domingos Galan Macias, cidadão espanhol, porteiro de profissão, e que “interveio em todo o processo apresentando-se como representante da PDVSA, o que era falso”, conta o Ministério Público — Domingos Galan Macias existe mesmo e colocou uma queixa às autoridades espanholas contra José Trinidad Márquez por roubo de identidade.
Foi através deste pretenso dirigente da companhia venezuelana que Ricardo Salgado conseguiu desbloquear várias contas de depósitos que a PDVSA tinha no BES para investir em obrigações da ESI, depois roladas em obrigações da Rioforte, segundo a acusação.
“Sob a égide e controlo de Ricardo Salgado, e com a participação de João Alexandre Silva, e à revelia dos órgãos de governo das empresas PDVSA, iniciou-se um processo de produção de documentos forjados para fazer crer aos serviços do BES a existência do referido concurso lançado pela PDVSA“, refere o Ministério Público, explicando todos os passos de um esquema que acabou mal para todos.
Documentos forjados, concurso simulado
Já depois de contactada pelo falso responsável da PDVSA, nos primeiros dias de abril de 2014, a ESAF (gestora de ativos do BES) elaborou uma proposta de contrato entre o grupo BES e a PDVSA que Ricardo Salgado entregou em mão a José Trinidad Marquez, “este identificando-se como Domingos Galan Macias e representante da PDVSA, o que aquele bem sabia ser falso”.
Dias depois, “a mando de Ricardo Salgado, foram forjados documentos relativos a uma assembleia extraordinária da PDVSA, datados de 30 de abril de 2014, e em que se fez constar que, na sequência de um processo de convite a um conjunto de entidades bancárias internacionais para gerirem posições financeiras da PDVSA fora da Venezuela, aquela proposta do BES, preparada em nove dias, tinha saído vencedora”.
O Ministério Público conta que Salgado simulou um concurso em que BES ganhou a corrida a grandes bancos internacionais como a UBS, o BSI e a Mitsubishi UFJ. “O que era falso já que estas entidades não receberam em 2014 qualquer convite da PDVSA para aquele efeito”.
Naquela assembleia extraordinária, Ricardo Salgado não quis deixar nenhuma ponta solta. Determinou ainda que o “ingeniero” Domingos Galan Macias, dirigente da divisão de engenharia do departamento técnico, teria sido o nome indicado por Rafael Ramirez, presidente da junta diretiva da PDVSA e ministro dos Petróleos da Venezuela, para atuar como representante da companhia e como gestor do projeto no contrato. “Seria responsável pela abertura de contas, preparação de documentos e contratos com o BES, e mandatado para aconselhar o BES em tudo o que fosse necessário, para além de ser o responsável pela entrega da carta oficial de adjudicação ao BES” e a quem o BES “pagaria um conjunto de verbas a título de comissão de adjudicação para contas tituladas por Domingos Galan que faria chegar tal dinheiro à PDVSA”, explica a acusação.
A “feliz notícia” de que o BES ganhou o concurso da PDVSA chegou à comissão executiva do BES a 7 de maio. Nesse dia, José Trinidad Marques viajou de Madrid na companhia de João Alexandre Silva para participar na reunião do BES em que estiveram presentes, além de Ricardo Salgado, os administradores António Souto, Jorge Martins, Rui Silveira, Joaquim Goes, Amílcar Morais Pires, João Freixa e Stanislas Rives.
Nessa reunião, coube ao diretor da sucursal madeirense a “responsabilidade de, falsamente, e conforme instruído por Ricardo Salgado, apresentar como exigência da PDVSA para a adjudicação daquele contrato a autorização do BES à descativação dos saldos bancários que garantiam os empréstimos concedidos pelo banco” às operações da companhia (trade finance).
Sem saber o que estava exatamente no contrato, os membros da comissão executiva aprovaram as propostas feitas e deliberaram delegar poderes em “Ricardo Salgado para representar o banco na assinatura do contrato de gestão de carteira com a PDVSA”.
Nesse mesmo dia, depois das 17h00, os serviços da administração do BES receberam um outro documento datado de 5 de maio, “também forjado por instruções de Ricardo Salgado, com autoria imputada a Rafael Ramirez (presidente da PDVSA), e pelo qual este, em nome da PDVSA, comunicava ao BES a adjudicação direta e irrevogável da gestão dos ativos da PDVSA no montante de 3.550 milhões de euros”.
A derrocada
No dia seguinte, a 8 de maio, com a descativação dos depósitos do grupo PDVSA que serviam de garantia aos empréstimos feitos junto do banco, foram transferidos cerca de 260 milhões de euros para outras contas do grupo na SFE e no BES Luxemburgo.
Foi com este dinheiro, segundo a acusação do Ministério Público, que João Olavo Silva, “atuando como gestor discricionário dos interesses bancários do grupo PDVSA na SFE, em nome da PDVSA e PDVSA Services, mas à revelia dos representantes destas sociedades, tomou obrigações da ESI, com maturidade em 19 de maio, data em que seriam roladas para obrigações da Rioforte”.
“A tomada daquelas obrigações ESI, possibilitada pela libertação dos saldos das contas da PDVSA, foi efetuadas sem instruções prévias da direção financeira da PDVSA, sendo as respetivas ordens de subscrição assinadas apenas a 14 e 20 de maio”, explicam os magistrados.
Entretanto, Ricardo Salgado conseguiu convencer os representantes da PDVSA a tomar dívida da Rioforte, já depois de o conselho de administração da Rioforte ter autorizado o aumento do limite de endividamento em mil milhões, para 4,5 mil milhões. E, a 19 de maio, aquelas obrigações da ESI (tomadas pela PDVSA sem o consentimento dos responsáveis venezuelanos) foram roladas em obrigações emitidas pela Rioforte.
Mais tarde, os venezuelanos, “por decisão dos seus legais representantes, convencidos da solidez da situação patrimonial da emitente”, reforçaram os investimentos em obrigações da Rioforte que nunca vieram a ser pagas de volta.
Com a falência desta sociedade (pediu proteção contra credores a 22 de julho de 2014), arrastada pelos problemas da ESI, “as obrigações tomadas pelas sociedades do grupo PDVSA não foram reembolsadas, gerando-lhe o prejuízo total de 330 milhões de euros”.
Em relação a José Trinidad Marquez, Ricardo Salgado diligenciou pelo pagamento das “recompensas prometidas”, seguindo os procedimentos que constavam dos “documentos forjados a seu mando, como se documentos elaborados pelos serviços da PDVSA se tratassem”.
“Entre 3 de abril e 3 de julho, por ordem de Ricardo Salgado, foram então pagos a José Trinidad Marquez, que usurpava a identidade de Domingo Galan Macias, o valor total de 4,5 milhões de euros“.
Este artigo faz parte de uma série de episódios da “Novela BES” e que contam os bastidores, os negócios, as intrigas, as alianças e as traições que marcaram a queda do Grupo Espírito Santo. As histórias e os relatos têm por base a informação do despacho de acusação anunciado pelo Ministério Público no dia 14 de junho de 2020, no âmbito da investigação ao “Universo Espírito Santo”.
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