“É provável que muitos trabalhadores menos escolarizados fiquem com cicatrizes permanentes da crise”

“A pandemia e o mercado de trabalho: O que sabemos um ano depois”, da Nova SBE, faz a radiografia do impacto da crise sanitária no mercado de trabalho em Portugal.

A pandemia atingiu que nem um tsunami a economia nacional com a onda gigante a bater mais forte junto dos trabalhadores menos escolarizados, muitos com contratos a termo. Houve muita destruição de emprego. Trabalhou-se em média menos horas. E o teletrabalho foi para uma minoria com formação superior. Mais de um ano depois da Covid-19 a radiografia feita pela Nova SBE revela as fraturas do mercado de trabalho nacional.

“A pandemia não teve um efeito maior no mercado de trabalho porque medidas como o lay-off seguraram muitos empregos que teriam desaparecido de outra forma”, diz Susana Peralta, coautora com Bruno P. Carvalho e Mariana Esteves, do relatório “A pandemia e o mercado de trabalho: O que sabemos um ano depois”, do Nova SBE Economics for Policy Knowledge Center, no âmbito da Iniciativa para a Equidade Social, conhecido esta segunda-feira.

A crise sanitária deu visibilidade a muitas das fragilidades do mercado laboral português. “A pandemia expôs o fosso do mercado de trabalho dual entre as pessoas que têm contratos sem termo, que ficaram protegidas (ou por trabalharem em setores pouco afetados pela pandemia, ou por estarem protegidas pelo lay-off que impede despedimentos) e as restantes, que trabalham como falsos independentes ou têm contratos a termo certo, que tiveram níveis de proteção inferiores”, considera Susana Peralta em declarações à Pessoas.

Os números são claros. Em 2020 foram criadas menos 10 mil empresas do que no ano anterior, mas o número de dissoluções foi semelhante. “Em 2021, até abril, já tinham sido encerradas mais 4 mil empresas do que no mesmo período de 2019. Janeiro de 2021 foi o mês com mais dissoluções (mais de 5 mil), o dobro do observado em janeiro de 2019 e 2020”, realça o relatório.

O lay-off disparou – entre março e abril de 2020, o número de trabalhadores em lay-off simplificado subiu de 70 mil para 1,2 milhões – e abril fica como o mês com maior aumento de inscrições no centro de emprego – com quase quatro vezes mais inscritos que mês homólogo de 2019. O teletrabalho foi apenas possível para algumas profissões e setores de atividade. No segundo trimestre do ano passado, 22,6% da população empregada trabalhou, sempre ou quase sempre, em casa, em 90,8% dos casos devido à pandemia. No último trimestre do ano passado, eram apenas 11,9% tendo voltado aumentar para 20,7% no primeiro trimestre deste ano.

É um modelo “predominante nos trabalhadores com maior nível de escolaridade, especialmente os que têm ensino superior completo”, com mais de 40% dos trabalhadores, com ensino superior no início da pandemia, a trabalhar de forma remota, valor que contrasta com os 2% de trabalhadores sem educação básica completa e 11% de trabalhadores com ensino básico completo.

Para quem não teve essa opção, o lay-off simplificado, a redução do horário de trabalho ou a perda do emprego foram as únicas alternativas possíveis. “A taxa de desemprego subiu a pouco mais de 8% no verão de 2020 mas está de volta aos valores pré-pandemia, embora com uma ligeira tendência de subida no segundo trimestre de 2021”, refere Susana Peralta.

Houve uma forte destruição de postos de trabalho com contratos a termo – uma quebra de 21% no primeiro trimestre de 2021 relativamente a 2019 – e um aumento de número de contratos de trabalho sem termo (+3% no primeiro trimestre de 2021 relativamente a 2019), mas que ainda assim “não compensa a destruição dos contratos a termo certo”, diz a investigadora da Nova SBE. Uma perda de emprego a termo certo que “está concentrada nas pessoas mais jovens e menos escolarizadas”.

Trabalhou-se mais e menos horas

Trabalhou-se menos horas ou mais, consoante a faixa salarial. Entre o 2º trimestre do ano passado e até março de 2021, houve uma “diminuição das horas trabalhadas (por quem não perdeu o emprego), especialmente concentrada nas pessoas que têm salários entre os 25% mais baixos o que pode refletir, por exemplo, o efeito do lay-off. As pessoas do quartil mais elevado de salário líquido passaram a trabalhar mais e não menos horas”, destaca a investigadora.

Entre os trabalhadores com salários mais baixos, 46% afirmam querer trabalhar mais, mas não encontrar emprego que o permita, o que contrasta com apenas 14% para os segundos. As famílias com crianças, especialmente as monoparentais, e os jovens foram mais afetadas pela redução no número médio de horas trabalhadas. “Nas horas trabalhadas também há diferenças interessantes entre as pessoas com e sem filhos, com uma maior diminuição entre quem tem filhos, especialmente famílias monoparentais”, diz Susana Peralta. Curiosamente, realça, “no primeiro trimestre 2021, as pessoas com filhos trabalharam menos, ao passo que as que não têm, trabalharam mais do que no final de 2020.”

Os trabalhadores com escolaridade até ao ensino básico foram os mais afetados. Até março de 2021 existiam menos 126 mil contratos temporários do que no mesmo trimestre de 2019. “Esta redução não foi compensada em contratos permanentes, que também diminuíram (menos 120 mil). Pelo contrário, foi para os indivíduos com ensino superior que o número de contratos mais subiu, tanto em termos relativos como absolutos, entre o 1.º trimestre de 2019 e 2021”, pode ler-se no relatório. “Os contratos temporários subiram 8% (20,6 mil) enquanto os contratos sem termo subiram 14% (133,8 mil). Estes factos reforçam a hipótese de que a pandemia destruiu sobretudo postos de trabalho de pessoas com escolaridade não superior”.

E mesmo as “aparentes boas notícias, como o aumento do salário médio ou do peso dos contratos sem termo no mercado de trabalho resultam na verdade de destruição de postos de trabalho nas margens mais frágeis e mal pagas da economia”, realça a investigadora da Nova SBE.

O futuro do trabalho

Com a pandemia a destruir muito do emprego desempenhado por trabalhadores com menor formação e salários mais baixos, que impacto esta situação poderá ter na reconfiguração do tipo de emprego que poderá ser criado no futuro? “É difícil responder porque vem aí um esforço grande de reconversão digital e energética da economia, pelo que são tempos demasiado conturbados”, comenta Susana Peralta. “A retoma do turismo poderá reabsorver uma parte destas pessoas nos setores direta ou indiretamente ligados ao mesmo (alojamento, restauração, retalho). Mas sem um esforço de formação e capacitação das pessoas menos escolarizadas, por um lado, e de políticas ativas de emprego especificamente destinadas aos jovens, por outro lado, é provável que muitas destas pessoas fiquem com cicatrizes permanentes da crise”, considera.

Dúvidas persistem igualmente sobre o futuro dos modelos de trabalho na pós-pandemia. A começar pelo teletrabalho. “A pandemia acelerou a transição para o trabalho remoto no seu lado tecnológico mas também organizacional. É importante perceber que estas mudanças estão concentradas nas pessoas com maior nível de educação”, realça Susana Peralta.

“As empresas estão a pensar as suas estratégias de organização do trabalho em função desta nova forma de trabalhar, haverá muitas a passar para um modelo híbrido, o que vai depender muito do modelo de gestão e dos próprios interesses e preferências dos trabalhadores”, continua.

“Nas outras economias, começam a surgir dados de inquérito que mostram que as pessoas querem voltar de forma parcial (não todos os dias) ao escritório. Mas certamente que podemos esperar mudanças importantes nesta frente no curto e médio prazo, o que até pode contribuir positivamente para a conciliação entre vida pessoal e profissional – mas não esqueçamos que isto está concentrado nas pessoas mais bem pagas e educadas.”

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