Juiz reduz Alzheimer de Salgado a uma linha, em quase cem páginas de acórdão

O acórdão, a que o ECO teve acesso, admite que a "gestão centralizada" do BES por Salgado não ficou provada e ignorou a doença de Alzheimer ao aplicar a pena, apesar de assumir que ficou provada.

A Justiça conheceu, esta segunda-feira, uma das decisões mais aguardadas dos últimos anos. Foi a primeira vez que um juiz decidiria se Ricardo Salgado, o ex-homem forte do BES, seria condenado ou absolvido num dos quatro processos-crime em que está envolvido. Neste caso, por três crimes de abuso de confiança que saíram da acusação da Operação Marquês, processo iniciado há oito anos e que envolve ainda o ex-PM socialista, José Sócrates.

Na sala do Campus de Justiça, em Lisboa, onde estavam o juiz presidente, o procurador do Ministério Público, advogados de defesa e do BES e ainda um número elevado de jornalistas e de lesados do BES, a leitura da decisão demorou menos de dez minutos. O juiz presidente do coletivo, Francisco Henriques — o mesmo que pertencia ao coletivo que julgou Armando Vara por um crime de lavagem de dinheiro, também saído do Marquês — não leu sequer o que se poderia chamar de uma súmula do acórdão. Limitou-se a dizer que crimes estavam em causa, baseados em que transferências e valores correspondentes, a que penas Salgado estava condenado (quatro por cada um dos crimes) e a pena final, por cúmulo jurídico, de seis anos.

Mas um dos aspetos essenciais e que mais curiosidade suscitava neste processo em concreto era o de saber até que ponto a doença de Alzheimer de Salgado seria ponderada para a aplicação da pena. No acórdão, a que o ECO teve acesso, o juiz considerou que ficou provado que o ex-banqueiro sofre desta doença neurológica mas não referiu esse mesmo estado de saúde ao aplicar a pena de prisão efetiva de seis anos. Por um lado, admitiu que existia mas, por outro não ponderou esse fator para a aplicação da pena.

Voltemos atrás no tempo. Em outubro de 2021, a defesa de Salgado alega que o seu cliente sofre de Alzheimer. Juntou um relatório médico, assinado pelo neurologista Joaquim Ferreira, depois do juiz ter recusado uma perícia médica independente, que seria pedida pelo tribunal. Perante este diagnóstico, a defesa decide então fazer um requerimento para pedir a suspensão do julgamento ou, pelo menos, a haver condenação, que fosse a uma pena suspensa.

O juiz, perante esta questão, alegou que a defesa do arguido fez “renascer” o que prevê o artigo 106.º n.º 1 do Código Penal, segundo o seu despacho datado de 21 de outubro, a que o ECO teve acesso na altura. Ou seja: a equiparação da doença de Alzheimer a uma anomalia psíquica. E que, segundo este artigo, todos os arguidos que padecem desta anomalia, devem ser condenados apenas a uma pena de prisão suspensa. “A execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão”, diz a lei.

E acrescentou: “esta questão é manifestamente prematura. O julgamento ainda não terminou. Consequentemente, não existe qualquer deliberação do Tribunal coletivo. Fazer qualquer consideração sobre o assunto seria antecipar uma apreciação jurídica e valorativa que neste momento não é admissível”, dizia Francisco Henriques a 21 de outubro do ano passado.

Seria, então, expectável que essa apreciação jurídica fosse feita pelo magistrado, aquando a leitura da decisão condenatória realizada esta segunda-feira. Mas nem na leitura, nem no próprio acórdão isso aconteceu. Em 93 páginas assinadas, este magistrado dedica apenas uma linha ao assunto: “ao arguido foi diagnosticada a doença de Alzheimer, conforme declaração médica do senhor doutor Joaquim José Coutinho Ferreira”. Não tecendo qualquer valoração jurídica sobre de que forma este estado de saúde poderia influenciar ou não o tipo de pena a que foi condenado.

E, apesar de, mais à frente no acórdão assumir que, para a decisão da medida da pena, diz a lei que devem ser considerados fatores como a inserção familiar e social do arguido, a ausência de passado criminal, o comportamento processual do arguido, a idade do arguido, bem como o seu estado de saúde.

Um trunfo que pode vir a servir de sustentação para a defesa de Ricardo Salgado, quando apresentar o recurso na Relação de Lisboa. Recurso esse que terá de ser apresentado no prazo de 30 dias.

Mais ainda com a jurisprudência existente. Em novembro do ano passado, João Lourenço, ex-presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, foi condenado pelo Tribunal de Viseu a uma pena suspensa de sete anos de prisão. Em causa os crimes de prevaricação de titular de cargo público e fraude na obtenção de subsídios. O juiz concordou com o Ministério Público e aplicou uma pena suspensa, explicada pelo facto de o arguido sofrer da doença de Alzheimer. Ainda que ligeira. Diagnóstico que foi confirmado por uma perícia pedida pelo tribunal.

Nesse mesmo julgamento, o próprio Ministério Público (MP) pediu a pena suspensa, alegando essa mesma doença. O magistrado lamentou a saúde mental de João Lourenço, referindo assim que a “lei não permite aplicar uma pena efetiva”, logo “não há perigosidade” e a pena fica suspensa. Interpretação da lei sobre a quel, quer o Ministério Pùblico — que pediu dez anos de prisão efetiva para Salgado — quer o juiz, não se pronunciaram.

A “gestão centralizada” que não ficou provada, diz o juiz

O tribunal considerou como provados “quase todos os factos constantes da acusação”, segundo explicou o juiz Francisco Henriques. Mas o magistrado diz que “não ficou provado a questão da gestão centralizada do BES”.

Em face da prova enunciada, o Tribunal Coletivo “não formou o convencimento da existência de uma gestão centralizada do GES. Com efeito, esta foi uma questão largamente impugnada na contestação e a factualidade apresentada nesta peça processual e dada como provada, sobretudo, com base no manancial documental apresentado, afasta a tese apresentada na acusação”, segundo o acórdão. Mas o magistrado garante que “esta questão acaba por não ter relevância direta no objeto do processo, ou seja, a existência ou não de uma gestão centralizada do GES em nada condiciona o comportamento delituoso imputado ao arguido”. Assume ainda que o arguido “tinha um papel determinante nos destinos no GES, mas a estrutura de governança deste grupo contemplava diversas estruturas colegiais Conselho Geral, Conselhos de Administração e Comissões Executivas que impediam a concentração das decisões numa só pessoa”, concluiu.

Que penas para cada crime?

  • O tribunal decidiu condenar o arguido Ricardo Salgado pela prática de um crime de abuso de confiança relativamente à transferência de € 4.000.000,00, com origem em conta da “Espírito Santo Enterprises, S.A.” na Federação Helvética para conta da “Credit Suisse”, titulada pela sociedade em offshore “Savoices, Corp”, controlada pelo arguido, em 21 de Outubro de 2011) na pena parcelar de quatro anos de prisão;
  • E também condenar o arguido pela prática de um crime de abuso de confiança, relativamente à transferência de € 2.750.000,00 – quantia proveniente de transferências da conta da “Espírito Santo Enterprises, S.A.” na Federação Helvética, para conta titulada pela sociedade “Green Emerald Investments, Ltd.” na Federação Helvética, controlada por Hélder José Bataglia dos Santos – da conta da “Green Emerald Investments, Ltd.” para conta da “Crédit Suisse“, titulada pela sociedade em offshore “Savoices, Corp“, controlada pelo arguido, em Novembro de 2010, na pena parcelar de quatro anos de prisão;
  • E, por fim, condenar Salgado pela prática de um crime de abuso de confiança relativamente a transferência CHF 3.900.000,00 (€ 3.967.611,00) – quantia proveniente de transferências da conta da “Espírito Santo Enterprises, S.A.” na Federação Helvética, para a conta da “Pictet & Cie, S.A.” titulada por Henrique Manuel Fusco Granadeiro – da conta da “Pictet & Cie, S.A.” e com destino a conta da “Lombard Odier Daries Hentsch and Cie” titulada pela sociedade em offshore “Begolino, S.A.”, controlada pelo arguido, em 22 de Novembro de 2011, na pena de quatro anos de prisão.

Ricardo Salgado veio juntar-se a Armando Vara na lista de arguidos que já foram condenados no âmbito da Operação Marquês. O ex-ministro e líder da CGD foi condenado, em julho do ano passado, a dois anos de prisão efetiva pelo crime de branqueamento de capitais. Sócrates e Carlos Santos Silva ainda esperam a marcação da primeira sessão de julgamento.

O julgamento de Salgadoe de Vara decorreu de forma autónoma face aos restantes arguidos da Operação Marquês, já que Ivo Rosa, na altura da decisão instrutória, anunciou que iria proceder à separação de processos de Salgado, Vara, Carlos Santos Silva, João Perna e José Sócrates.

Em abril de 2021, o juiz Ivo Rosa pronunciou Ricardo Salgado por três crimes de abuso de confiança, caindo por terra o crime por corrupção ativa de titular de cargo político, os dois de corrupção ativa, nove de branqueamento de capitais, três de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada. Pode assim incorrer numa pena de nove anos de prisão.

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