O Ministério Público e a doença de Alzheimer: dois pesos e duas medidas?

Em novembro, o MP achou que a doença de Alzheimer era razão para aplicar apenas uma pena suspensa ao ex-autarca de Santa Comba Dão. Mas agora pede dez anos de prisão efetiva para Salgado.

Dois processos distintos, dois arguidos com a mesma doença. Mas, se no caso do autarca de Santa Comba Dão, a doença de Alzheimer do arguido de 57 anos foi considerada pelo Ministério Público (MP) para pedir uma condenação, mas apenas com pena suspensa, no caso de Ricardo Salgado, de 77 anos, a acusação optou por pedir a pena de prisão efetiva de dez anos, por três crimes de abuso de confiança.

Ambos os arguidos assumiram — em audiência de julgamento — que sofriam da doença de Alzheimer. Segundo o acórdão do tribunal de Viseu, a que o ECO teve acesso, o ex-autarca” demonstrou dificuldade no discurso e alguma confusão e esquecimento, referindo que tem dúvidas, coisas que já lhe passaram, referindo que sofre da doença Alzheimer, num estado ligeiro, mas galopante, o que lhe provoca esquecimento de coisas que já passaram, apesar de a doença estar no início”. Tal como Salgado que, perante o juiz Francisco Henriques, disse que não estava “em condições de prestar declarações” porque foi-lhe “atribuída uma doença de Alzheimer”.

Mas concretizando. Em novembro do ano passado, João Lourenço, ex-presidente da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, foi condenado pelo Tribunal de Viseu a uma pena suspensa de sete anos de prisão. Em causa os crimes de prevaricação de titular de cargo público e fraude na obtenção de subsídios. O juiz concordou com o Ministério Público e aplicou uma pena suspensa, explicada pelo facto de o arguido sofrer da doença de Alzheimer. Ainda que ligeira. Diagnóstico que foi confirmado por uma perícia pedida pelo tribunal.

Nesse mesmo julgamento, o próprio Ministério Público (MP) pediu a pena suspensa, alegando essa mesma doença. O magistrado lamentou a saúde mental de João Lourenço, referindo assim que a “lei não permite aplicar uma pena efetiva”, logo “não há perigosidade” e a pena fica suspensa.

Mas, se avançarmos no tempo três meses, o mesmo MP, no caso de Ricardo Salgado no julgamento do processo que nasceu da Operação Marquês, optou por não referir a patologia do arguido — nas suas alegações finais da passada terça-feira — e pediu ao tribunal que o ex- homem forte do BES fosse condenado a uma pena efetiva de dez anos de prisão.

Logo foi acusado pela defesa do ex-banqueiro de ignorar essa mesma patologia de Alzheimer, referindo-se a este mesmo caso de Viseu. “Ao pedir a prisão efetiva de uma pessoa com a patologia comprovada do doutor Ricardo Salgado, o MP não vai contra a lei mas pede algo que vai contra a decência e o humanismo”, disse o advogado Francisco Proença de Carvalho, acrescentando: “O MP fingiu que não sabe da condição do doutor Ricardo Salgado, desconsiderando tudo o que está na jurisprudência e no humanismo do Estado de Direito português”. O magistrado do MP, irritado com o que chamou de “dramatização” e “teatro” do advogado de defesa, disse que Salgado teve “persistência criminosa” e revelou “egoísmo”, em vez de “procurar reparar o mal dos crimes cometidos” e acrescentou que “a ausência de arrependimento também terá de pesar”.

Tendo em conta estas circunstâncias, “a pena única aplicada não deve ser mais baixa que dez anos de prisão efetiva”, disse o magistrado do Ministério Público, no julgamento do ex-banqueiro. Dizendo ainda que, apesar da defesa alegar a doença do foro neurológico, o arguido, presente na sala de tribunal, conseguiu dizer o seu nome completo, a data de nascimento, a naturalidade e a sua filiação.

“Eu não sou médico, sou advogado e nós não podemos aferir o grau de Alzheimer só pelo contacto, a olho”, disse o advogado levantando-se e pondo-se ao lado do seu cliente, visivelmente desorientado. “Há acórdãos que dizem que esta análise tem de ser feita tecnicamente, por médicos especializados e não por procuradores e juízes”, concluindo que “nem a defesa nem o Ministério Público têm conhecimentos para aferir se o diagnóstico é correto ou não”, referindo-se a esse mesmo acórdão do Tribunal de Viseu.

Outra das diferenças nestes dois casos — mas com contornos médicos idênticos — prende-se com o facto do juiz de Viseu ter pedido uma perícia médica independente para confirmar a patologia em causa, não tendo ficado apenas pelo relatório médico da defesa, que poderia ser considerado parcial. Já Francisco Henriques, presidente do coletivo de juízes que está a julgar o antigo banqueiro defendeu, em outubro, que do relatório médico entregue pela sua defesa, e que atesta que o arguido sofre de Doença de Alzheimer, não decorre que “esteja mental ou fisicamente ausente” mas aceita esse mesmo relatório, não tendo achado necessário pedir uma perícia médica independente, dizendo que essa questão seria depois aferida, em caso de condenação, na aplicação da pena.

Quais foram os argumentos do juiz para aplicar pena suspensa ao ex-autarca?

Para o juiz, o arguido João Lourenço padece de “Perturbação Neurocognitiva Major, provável Doença de Alzheimer de início precoce inscrita na rúbrica F00.0 da 10ª Revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) da Organização Mundial de Saúde, tendo vindo a manifestar de forma evidente aquele quadro clínico, segundo entrevista complementar, desde 2017, mas o diagnóstico clínico, apenas foi possível a partir do acompanhamento em consulta de neurologia em dezembro de 2019″, segundo o acordão a que o ECO teve acesso.

Estas perturbações neorocognitivas major, “caracterizam-se por evidência de declínio cognitivo significativo em relação a um nível prévio de desempenho num ou mais domínios cognitivos, no caso do arguido ao nível da atenção complexa, funções executivas, memória, linguagem, capacidade percitivomotora ou cognição social, com agravamento progressivo e que interferem na realização independentemente das atividades da vida diária (parcial nas atividades básicas e total nas atividades instrumentais e avançadas da vida diária), sendo que a capacidade do arguido de avaliação de uma eventual condenação neste processo, encontra-se comprometida face aos défices cognitivos que apresenta (pois seria condenado por algo que não tem o alcance pleno de entender, podendo reagir de forma concreta, pelo que seria entendido como injustiça, com sentimento de revolta compreensíveis no pensamento concreto do arguido, ou indiferente face ao compromisso de cognição social)”.

Não resultando do relatório do IML que a doença de que padece o arguido o torna perigoso, o juiz aplicou o disposto no artigo 106º, do Código Penal (anomalia psíquica posterior sem perigosidade): “Se a anomalia psíquica sobrevinda ao agente depois da prática do crime não o tornar criminalmente perigoso, em termos que, se o agente fosse inimputável, determinariam o seu internamento efetivo, a execução da pena de prisão a que tiver sido condenado suspende-se até cessar o estado que fundamentou a suspensão”.

Segundo este artigo, a duração da suspensão da pena é “descontada no tempo da pena que estiver por cumprir” e o tempo de duração da pena em que o agente foi condenado “não pode em caso algum ser ultrapassado”.

Assim, e de acordo com esta norma, o juiz decidiu que a pena de 7 anos de prisão em que o arguido vai ser condenado, vai ser suspensa até cessar o estado que fundamentou a suspensão, não podendo exceder 7 anos, sujeita a regras de conduta, necessárias à prevenção da perigosidade, bem como o dever de se submeter a tratamentos e regimes de cura ambulatórios apropriados e de se prestar a exames e observações nos lugares que lhe forem indicados, ficando ainda colocado sob vigilância tutelar dos serviços de reinserção social.
João Lourenço foi condenado pelos crimes de prevaricação de titular de cargo público e fraude na obtenção de subsídios. Em causa estaria a abertura de concursos públicos para obras que já estavam feitas e que, posteriormente, seriam objeto de candidaturas a fundos comunitários. O dinheiro recebido de Bruxelas serviu para o município pagar outros trabalhos no concelho.

Já Ricardo Salgado está a ser julgado por três crimes de abuso de confiança, depois de na instrução da Operação Marquês, o juiz Ivo Rosa ter decidido deixar cair 18 dos 22 crimes de que o arguido estava acusado e de ter separado este julgamento do da Operação Marquês, tal como fez com Armando Vara, já condenado por branqueamento de capitais. A decisão relativa a Salgado está marcada para dia 7 de março.

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