Das plataformas digitais ao outsourcing, advogados dão nota negativa a alterações à lei laboral

Entre as medidas mais polémicas estão as plataformas digitais, o outsourcing, o período experimental e a licença parental do pai.

Não são só os patrões a dar nota negativa ao conjunto de mais de 150 normas da lei do trabalho alteradas e introduzidas no novo Código de Trabalho no âmbito da Agenda do Trabalho Digno. Também os advogados especialistas em direito laboral consideram que o diploma não só ficou aquém das expectativas, como deixou de fora temas como: as novas formas de organização do trabalho, flexibilização dos horários, semana de quatro dias, despedimentos por baixa performance e benefícios fiscais para determinados pagamentos da remuneração em espécie. Apontam ainda que a proibição de recorrer ao outsourcing após o despedimento é até “inconstitucional”.

As novas regras laborais no domínio das plataformas digitais, que podem criar “uma certa confusão”; o período experimental reduzido ou removido, que apresenta uma redação “atroz”; e o alargamento da licença parental do pai, que, feitas as contas, pode representar uma “diminuição do número total de dias em que pai e filho poderão efetivamente privar” estão entre as alterações que geram maiores críticas entre os advogados especialistas na área laboral ouvidos pela ECO Pessoas.

Guilherme Dray, um dos envolvidos na composição do Livro Verde — documento redigido em conjunto com académicos, pensadores, a sociedade civil e parceiros sociais que criou as linhas orientadoras para a elaboração da agenda — assegura que a agenda tem “aspetos bastante positivos”. Mas reconhece, à semelhança dos especialistas ouvidos pela ECO Pessoas, que existem, de facto, “pontos mais controversos”. Os mais evidentes são “a proibição (nalguns casos) de recurso ao outsourcing e a exigência de fundamento para a denúncia das convenções coletivas (como condição de validade da mesma)”, considera.

Proibição do recurso a outsourcing é “inconstitucional”

Uma das medidas que mais polémica tem gerado é a que impede as empresas que cessem contrato com o trabalhador temporário (por motivo que não lhe possa ser imputado) de recorrer ao outsourcing para externalizar serviços, para o mesmo posto ou para a mesma atividade profissional, sem que tenha decorrido, pelo menos, um terço da duração do contrato, incluindo renovações. A regra aplica-se não só ao empregador, mas também a todas as empresas do mesmo grupo.

As cinco confederações patronais que integram o novo conselho nacional das confederações “já se mostraram muito insatisfeitas com a redação final do acordo, referindo-se a esta medida em concreto como “inaceitável”. “Naquelas medidas, há muitas situações que não são positivas para as empresas e que não têm grande mais-valia, antes pelo contrário. É o caso dos contratos de trabalho e a questão do outsourcing”, afirma João Vieira Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), em declarações à ECO Pessoas.

Tal como foi concebida, esta proibição (de recorrer ao outsourcing) fere princípios basilares como o da gestão empresarial ou da livre iniciativa económica das empresas. Uma visão ‘cega’ deste tema, sem criar qualquer tipo de exceção ou linha de enquadramento, penalizando as empresas que já estão no mercando e excecionando as que se acabam de instalar, demonstra um profundo desconhecimento daquela que é a ‘vida’ destes operadores económicos e da complexidade das suas necessidades mais básicas de funcionamento.

Joana de Sá

Partner e head of labour department da PRA - Raposo, Sá Miranda & Associados, Sociedade de Advogados

Os especialistas em direito consideram esta medida inconstitucional. “Tal como foi concebida, esta proibição fere princípios basilares como o da gestão empresarial ou da livre iniciativa económica das empresas. Uma visão ‘cega’ deste tema, sem criar qualquer tipo de exceção ou linha de enquadramento, penalizando as empresas que já estão no mercando e excecionando as que se acabam de instalar, demonstra um profundo desconhecimento daquela que é a ‘vida’ destes operadores económicos e da complexidade das suas necessidades mais básicas de funcionamento algumas das quais, pelas mais diversas razões, tantas vezes só podem ser efetivamente supridas pela via do outsourcing”, considera Joana de Sá, partner e head of labour department da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, Sociedade de Advogados, em declarações à ECO Pessoas.

Também Pedro Antunes, partner da CCA Law firm, considera que a medida vai contra um mercado flexível e livre. “Estas alterações vão todas na linha da proteção do trabalhador, numa altura em que voltamos a ter necessidades extremas de reestruturações das empresas, o legislador decide impor um aumento do valor das indemnizações, o que contraria o que foi feito há cerca de dez anos com a troika, mas pior do que isso cria normas como a proibição do outsourcing ou o alargamento de poderes da ACT para fiscalizar os despedimentos que, na nossa opinião, não fazem qualquer sentido, não só por estar em causa uma efetiva intromissão no princípio da liberdade de gestão empresarial, mas porque efetivamente o mercado quer-se mais flexível e livre. É primordial para a nossa economia nos tempos que correm não continuar a pensar que o trabalhador pode continuar acomodado a cumprir com o seu horário (quando o cumpre) e que não esteja preocupado em cumprir com o resultado”, comenta.

O economista João Cerejeira confessa que não percebeu bem a lógica da medida. “Quer dizer, percebi a lógica, que é tentar limitar o recurso à subcontratação após um despedimento coletivo. Mas é retirar um instrumento de gestão da empresa, porque a maioria dos casos de subcontratação fazem sentido que vão além do custo salarial. É todo o custo que a empresa tem para ter um serviço dentro da empresa que muitas vezes não tem em escala suficiente. É muitas vezes o caso da contabilidade ou a parte informática ou até de RH. É algo que pode ser passado para outras empresas que têm esse serviço”, defende.

“Se uma empresa estiver num processo de reestruturação que envolva, por exemplo, um despedimento coletivo que seja necessário para a sobrevivência da própria empresa, estar a limitar a empresa que nesse processo não consiga também reestruturar a sua organização e aquilo que precisa não poder ‘comprar fora’ acho que é uma limitação que não tem efeito nenhum prático”, continua.

Do ponto de vista do economista, a medida tem um efeito mais negativo no aumento da litigância do que propriamente positivo em termos disciplinar do despedimento coletivo. “Até porque este tipo de despedimento em Portugal, apesar de ser possível, não é um recurso muito frequente. Portanto, isto parece mais uma coisa comunicacional, no sentido de dar um recado, do que propriamente efetivo do ponto de vista económico.”

“O fim do outsourcing é mais um fator de entropia para as empresas. Portugal, comparando com os outros países, tem taxas de precariedade – de contratos a termo – muito superiores à média europeia. Portanto, ou dão apoios em termos fiscais ou de subsídios à contratação sem termo, alguns até já existem. Mas simultaneamente penalizar a contratação a termo. Se o objetivo é diminuir o peso e relevância da contratação a termo na economia portuguesa, acho que é um passo no sentido certo. Mas há o risco de fazer crescer outras formas de contratação ainda mais informais, como é o caso dos recibos verdes.”

Novas regras para plataformas digitais soam a “coisa mal amanhada”

O Artigo 12.º-A foi um dos mais controversos de toda a negociação. Trata-se de uma adenda ao Código do Trabalho que vem definir novas regras laborais no domínio das plataformas digitais (como, por exemplo, a Uber ou a Glovo). Em linhas gerais, o diploma define seis características que podem levar a que um tribunal determine quem deve ser considerado o patrão de um motorista ou estafeta, caso se verifique a ocorrência de, pelo menos, uma dessas seis – por exemplo, nos casos em que é a própria plataforma que fixa a retribuição pelo trabalho efetuado ou define limites máximos e mínimos à mesma.

No entanto, Ricardo Rodrigues Lopes, partner da Caiado Guerreiro, considera que, no final de contas, o que ficou criado foi “uma espécie de regime híbrido”. “Diz que é um contrato de trabalho, mas depois lista apenas as normas em que se vão aplicar. Parece que cria três tipos de contrato: os contratos de trabalho normais; passamos a ter uma espécie de contrato de trabalho das plataformas digitais, em que só se aplicam algumas normas e não é exatamente claro quais é que são; e, depois, temos os contratos de prestação de serviços com dependência económica, em que também vem aqui prever a aplicação de algumas normas de aplicação do contrato de trabalho. Tudo isto cria uma certa confusão, principalmente nestes casos de prestação de serviços dependente e das plataformas digitais, sobre o que efetivamente se irá aqui aplicar“, explica o partner da Caiado Guerreiro.

RODRIGO ANTUNES/LUSARODRIGO ANTUNES/LUSA

“O que parece é que se quer assumir que é contrato de trabalho, mas sem assumir todas as consequência de decidir que isto é um contrato de trabalho. Soa-me a uma coisa mal amanhada. Poderia haver um regime específico de flexibilidade ou outro regime mais específico para a questão das plataformas digitais, em termos de horário de trabalho e de remuneração, talvez”, sugere.

Redação sobre período experimental é “atroz”

Ricardo Rodrigues Lopes classifica ainda a redação da norma sobre o período experimental — que determina que o período experimental para jovens à procura do primeiro emprego e para desempregados de longa duração, atualmente de 180 dias, deverá ser reduzido ou até mesmo excluído, caso a duração do anterior contrato de trabalho a termo, celebrado com um empregador diferente, tenha sido igual ou superior a 90 dias — como “muito infeliz” e mostra-se reticente quanto à interpretação da mesma.

“Da forma como está escrito, parece que nos casos em que o contrato de trabalho ou de estágio tenha durado mais de 90 dias poderá permitir, inclusivamente, a exclusão do período experimental. Penso que a intenção é que, nesses casos, não se aplique o período de 180 dias do período experimental previsto para essa situação, mas apenas a diferença entre os 90 dias previstos na regra geral e os 180 dias. Ou seja, se a pessoa trabalhou 90 dias, em vez de se aplicar os 180 dias, aplicar-se-ia apenas os 90 dias do regime geral. Mas não é isso que está escrito.”

A opinião de Guilherme Dray vai ao encontro do raciocínio de Ricardo Rodrigues Lopes. Para o advogado, “há normas que poderiam estar mais bem redigidas, do ponto de vista técnico” e percebe-se que “o trabalho feito pelos deputados, a diversas mãos e por vezes sob pressão do tempo, nem sempre conduziu aos melhores resultados em termos de técnica legislativa.”

Podemos ter uma maior redução ou nenhum período experimental para um primeiro trabalhador, que vai trabalhar pela primeira vez, do que para um trabalhador com 20 anos de prática. Não é isso que se pretende, mas a redação [da norma] é atroz.

Ricardo Rodrigues Lopes

Partner da Caiado Guerreiro

Em última instância, com esta medida, poderão criar-se até situações de desigualdade. “Podemos ter uma maior redução ou nenhum período experimental para um primeiro trabalhador, que vai trabalhar pela primeira vez, do que para um trabalhador com 20 anos de prática. Não é isso que se pretende, mas a redação [da norma] é atroz“, explica Ricardo Rodrigues Lopes.

E prevê que a situação “vai criar algumas dificuldades de interpretação e, possivelmente, implicar até a revisão ou retificação da norma na redação final”.

Pedro Antunes, por sua vez, considera a alteração ao período experimental nos primeiros empregos “totalmente incompreensível”. “Em nada ajuda na introdução do mercado dos mais jovens, pelo contrário”, afirma.

Alargamento da licença parental do pai pode traduzir-se numa “diminuição dos dias”

O documento contém ainda outra medida que, na opinião de Joana de Sá, não foi bem conseguida no plano do reforço das garantias, referindo-se à alteração ao regime da licença parental do pai. O pai vê-se obrigado pela lei a gozar a licença de 28 dias, “seguidos ou em períodos de no mínimo sete dias, nos 42 dias seguintes ao nascimento”, lê-se no documento. Destes 28 dias, sete devem ser gozados de modo consecutivo logo após o nascimento.

“Os dias de licença deixam de ser úteis, passam a sobrepor-se aos de descanso e a não considerarem os dias de feriado. Na prática, podem ocorrer situações em que o ‘aumento’ para 28 dias seguidos de licença represente mesmo uma diminuição do número total de dias em que pai e filho poderão efetivamente privar”, alerta.

Já Pedro Antunes considera que o legislador ficou aquém do que podia na revisão do regime da parentalidade. “A alteração de 20 dias úteis para 28 dias seguidos ou interpolados beneficia pouco o pai, quando na restante Europa chegamos a ter regimes de equiparação da parentalidade-maternidade. Em Espanha, por exemplo, o pai já tem direito às mesmas 16 semanas que a mãe. Impunha-se um alargamento do período de forma mais clara“, refere.

A alteração de 20 dias úteis para 28 dias seguidos ou interpolados beneficia pouco o pai, quando na restante Europa chegamos a ter regimes de equiparação da parentalidade-maternidade. Em Espanha, por exemplo, o pai já tem direito às mesmas 16 semanas que a mãe. Impunha-se um alargamento do período de forma mais clara.

Pedro Antunes

Partner da CCA

Ainda nesta senda, o advogado destaca o regime de justificação de faltas para acompanhamento de filhos menores (doentes oncológicos ou outras doenças crónicas), onde permanece “injustificadamente” o limite dos 30 dias por ano.

Uma oportunidade perdida para…

A convicção de que esta “agenda” deixa de fora várias medidas e temas igualmente relevantes é transversal aos especialistas ouvidos pelo ECO Pessoas. Joana de Sá, apesar de admitir que a agenda era ambiciosa ao nível das mudanças preconizadas, considera que “se perdeu a oportunidade” de tocar temas “como os ligados às (novas e velhas) formas de organização do trabalho“.

Uma opinião partilhada por Pedro Antunes. “Ficam a faltar muitas medidas, o código do trabalho encontra-se desajustado da nossa atual realidade e parece que não houve a devida preocupação com a realidade e com as vicissitudes do dia a dia, mas sim em alargar o regime de proteção dos trabalhadores”, defende.

“Do lado das empresas continuamos a sentir que o código do trabalho não apresenta soluções para uma maior flexibilização dos horários; medidas que possam fomentar a semana de quatro dias; possibilitar os despedimentos por baixa performance e sem que seja um critério dentro de um extinção de posto de trabalho; benefícios fiscais para determinados pagamentos da remuneração em espécie“, enumera o partner da CCA.

Por outro lado, Guilherme Dray destaca, pela positiva, “o reforço da conciliação entre a vida profissional e a vida profissional, no domínio da proteção do cuidador informal, em matéria de parentalidade ou mesmo quanto ao alargamento aos trabalhadores economicamente dependentes de benefícios resultantes da negociação coletiva”.

Além disso, o documento “atualiza as compensações em matéria de cessação do contrato a termo, do trabalho temporário e no domínio do despedimento coletivo”, antecipando ainda “o que consta da proposta de Diretiva da União Europeia sobre o trabalho prestado nas plataformas digitais”.

Patrões aguardam audiência com António Costa

O Conselho Nacional das Confederações Patronais (CNCP) partilhou esta segunda-feira as suas preocupações no âmbito da Agenda do Trabalho Digno com Marcelo Rebelo de Sousa. João Vieira Lopes, presidente da CCP, mostra-se expectante. “Ficámos com a ideia de que o Presidente da República valoriza a concertação social e que refletirá sobre algumas destas preocupações que apresentámos”, assegura.

As confederações patronais pediram também uma reunião de emergência ao primeiro-ministro, que ainda não tem data marcada, mas deverá acontecer durante este mês.

Não houve acordo relativamente à Agenda do Trabalho Digno. A agenda não foi aprovada por nenhum parceiro social e, inclusivamente, as confederações suspenderam a sua participação na concertação social.

João Vieira Lopes

Presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal

“Não é um conjunto de medidas que favoreça as empresas. De maneira geral, até vai dificultar a atividade das empresas”, resume o líder da CCP. E salienta: “É importante dizer que não houve acordo relativamente à Agenda do Trabalho Digno. A agenda não foi aprovada por nenhum parceiro social e, inclusivamente, as confederações suspenderam a sua participação na concertação social.”

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