Gás na Europa passa a ser negociado com limite, mas preços só deverão atingi-lo no verão
Teto aos preços do gás na Europa já entrou em vigor, mas a tendência do mercado, em 2022, sugere que mecanismo só será acionado no verão, altura em que os países precisarão de reabaster os stocks.
Depois de quatro meses de longas negociações, os ministros da União Europeia concordaram em adotar aquela que se viria a tornar uma das medidas que mais alarmes fez soar entre os principais agentes dos setores financeiro e energético. O teto aos preços do gás no mercado europeu entra em vigor esta quarta-feira, 15 de fevereiro. Os riscos já foram apontados, mas existe a possibilidade de o mecanismo só vir a ser ativado no verão, isto se o mercado tiver um comportamento semelhante ao do ano passado.
A 19 de dezembro, a Comissão Europeia e os ministros da Energia concordaram em ativar um limite temporário nos contratos de gás no mercado europeu, se se verificarem duas condições em simultâneo. Por um lado, o limite é ativado se o preço nos contratos de gás natural para o mês seguinte forem, durante três dias úteis consecutivos, superiores a 180 euros por megawatt-hora (MWh) na plataforma holandesa TTF (Title Transfer Facility), a referência nos mercados europeus de gás natural.
Ao mesmo tempo, para efetivar o limite, terá de se verificar que o preço de referência no TTF é 35 euros mais elevado que o preço de referência para o gás natural liquefeito (LNG), também durante três dias úteis consecutivos.
Acrescente-se que este limite de preço do gás apenas se aplica ao preço mensal, trimestral e anual do índice TTF, que é o preço a que o gás natural é cotado no hub de Roterdão. Não se aplica em prazos mais curtos, como o preço diário ou semanal.
Mas olhando para os preços do gás negociados no TTF, é preciso recuar até 5 de outubro de 2022 para encontrar contratos futuros de gás natural negociados acima dos 180 euros/MWh. Desde essa altura, que o preço deste recurso tem estado em queda, estando a ser transacionado abaixo dos 100 euros/MWh desde o final de 2022. Esta terça-feira, os contratos para entrega em março estiveram a negociar na ordem dos 53 euros/MWh.
No dia em que a proposta foi aprovada, o ex-secretário de Estado da Energia, João Galamba, esperava que o mecanismo nunca viesse a ser ativado “por boas razões”. “Não por um desenho errado da proposta”, esclareceu, mas sim, porque seria sinal de que o mercado do gás na Europa estaria estabilizado.
E, apesar dessa não ser uma garantia uma vez que a guerra na Ucrânia ainda não tem fim à vista, existe de facto a possibilidade de o mecanismo só ser acionado depois do inverno.
Ao ECO/Capital Verde, Daniel de Nicolás, Energy Optimization & Market Studies Consultant da Schneider Electric, relembra as estimativas da S&P Global Commodity Insights: “se esta medida tivesse estado ativa durante 2022, o limite do preço do gás teria sido ativado durante 40 dias no verão“, altura em que os preços do gás ultrapassaram o limite dos 180 euros/MWh, a 26 de julho, e atingiram um pico, um mês mais tarde, de 338 euros/MWh.
“Com estes dados, acreditamos que o momento de pico será no verão de 2023, quando as instalações subterrâneas [na União Europeia] de armazenamento de gás tiverem de ser novamente recarregadas”, antecipa o responsável.
Olhando para os dados da Gas Infrastructure Europe (GIE), associação que representa os operadores europeus de infraestruturas de gás, citados pela Comissão Europeia, é possível verificar que o nível de enchimento das reservas do bloco europeu esteve sempre abaixo dos 80% até agosto, tendo atingido um máximo de 96% em novembro.
A partir daí, altura em que as temperaturas se tornaram mais frias, devido à chegada do inverno, as reservas de gás começaram a ser utilizadas, mas nunca desceram abaixo dos 80%. A 2 de fevereiro, data da última atualização, os stocks de gás natural na União Europeia, referentes a janeiro, situavam-se nos 82%.
As reservas de gás dos 27 Estados-membros começaram a ser monitorizadas em agosto, altura em que o executivo comunitário apelou aos restantes países que cortassem no consumo de gás, para a produção de eletricidade, em 15%, até março de 2023. Desta forma, e sem acesso ao gás russo, seria possível assegurar que o bloco europeu enfrentaria a época mais fria em segurança. Portugal foi uma das exceções e até ao final do inverno está comprometido em reduzir esse consumo em 7%.
Mas os níveis altos de armazenamento de gás podem significar que “o esforço de armazenamento durante o verão será menor do que em 2021”, prevê o analisa Gonçalo Aguiar, engenheiro electrotécnico e especialista em energia ao ECO/Capital Verde.
“Os níveis de armazenamento de gás natural na Europa estão hoje muito mais elevados do que há um ano atrás” altura em que se verificou um mínimo histórico de 35% e o nível médio registado, entre 2014 e 2019, rondava nos 45%, explica.
Havendo falta de oferta de gás para a procura existente, o preço pode chegar aos níveis do verão de 2022 ou pior. No entanto, existem alguns fatores que importam referir que indiciam que estes níveis de preços não se vão observar em 2023.
Além das reservas cheias serem um fator que pode aliviar os preços no verão deste ano, Aguiar aponta ainda as temperaturas amenas, os períodos intensos de chuva e as medidas de médio prazo de substituição do gás russo assumidas pelos 27 Estados-membros, nomeadamente, a inauguração de novos terminais de GNL, na Alemanha, a diversificação da oferta e os níveis de poupanças de gás para produzir eletricidade devido ao crescimento da energia produzida por energias renováveis, enumera.
Mecanismo terá riscos se for acionado
O limite deste mecanismo foi um dos motivos que levou a que as negociações entre os ministros da Energia se arrastassem por vários meses.
Antes de assentar nos 180 euros/MWh, a proposta inicial da Comissão Europeia pedia que o limite fosse acionado se o preço do gás negociado no TTF fosse superior a 275 euros/MWh, ao mesmo tempo que o preço de referência no TTF fosse 58 euros mais elevados que o preço de referência para o LNG, durante 10 dias consecutivos de negociação. A proposta foi fortemente contestada entre os 27 Estados-membros.
Mas agora, com esse limite reduzido, existem riscos que foram apontados pelos principais intervenientes do mercado financeiros e energético na União Europeia, entre eles o Banco Central Europeu (BCE), a Agência de Cooperação dos Reguladores da Energia (ACER) ou o próprio Intercontinental Exchange (ICE).
“Um dos principais riscos que podem existir seria no mercado over the counter (OTC)“, isto é, os contratos bilaterais negociados diretamente entre comprador e vendedor e que não são abrangidos por este teto.
“Se o mecanismo for acionado, os operadores podem mudar os seus contratos para o mercado OTC e isso terá consequências difíceis de identificar neste momento. Os alertas levantados são sem dúvida legítimos, mas será necessário observá-los ao longo do tempo, porque, caso o mecanismo seja ativado, só mesmo aí teremos noção das suas consequências reais“, ressalva Daniel de Nicolás.
Entre os alertas, surgem preocupações do banco liderado por Christine Lagarde associados ao risco estabilidade financeira na zona euro, referindo que o mecanismo de correção de preços “pode aumentar a volatilidade e as chamadas de margem, desafiar a capacidade dos bancos centrais na gestão dos riscos financeiros e incentivar a migração das negociações para o mercado secundário de gás”.
Se o mecanismo for acionado, os operadores podem mudar os seus contratos para o mercado OTC e isso terá consequências difíceis de identificar neste momento. Os alertas levantados são sem dúvida legítimos.
Mas precisamente por causa desses riscos, que foram sendo divulgados durante o período de negociações entre os 27 Estados-membros, foram também asseguradas um conjunto salvaguardas que permitem suspender o mecanismo de limite aos preços do gás, no dia seguinte a estas se verificarem. Por exemplo, o teto é desativado se se verificar um aumento do consumo de gás de 15% em dois meses ou de 10% num mês, ou se se registar uma quebra nas compras de gás no TTF ou entre os Estados-membros, ou mesmo se houver uma diminuição trimestral na importação de LNG no bloco europeu.
Além disso, a Comissão garante que o limite também será desativado automaticamente, a qualquer momento, se o executivo comunitário declarar emergência regional ou da União Europeia, tal como prevê o regulamento de segurança do abastecimento.
Em qualquer dos casos, a ACER, que ficou encarregue de monitorizar a evolução dos preços do gás na Europa, publicará uma ‘nota de desativação’ na sua página web a formalizar a decisão.
“A boa notícia agora seria que o mecanismo não tivesse de ser aplicado, e se fosse, que tal acontecesse de forma limitada e temporária”, defende o analista.
Notícia atualizada às 10h18
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Gás na Europa passa a ser negociado com limite, mas preços só deverão atingi-lo no verão
{{ noCommentsLabel }}