Reforma do mercado elétrico “positiva” mas implementação pode ser difícil

Os especialistas em energia consultados pelo ECO/Capital Verde consideram a proposta de reforma europeia “positiva” na generalidade, mas anteveem algumas dificuldades na implementação.

A Comissão Europeia avançou uma proposta para a reforma do mercado elétrico que o primeiro-ministro português, António Costa, considerou “tímida” e “aquém” das necessidades. Em oposição, os especialistas em energia consultados pelo ECO/Capital Verde consideram-na “positiva” na generalidade, embora contenha sobretudo linhas mestras, que têm ainda de ser traduzidas em mais detalhes para poderem ser aplicadas, e a sua implementação possa ser complicada.

A proposta é “positiva, mas pouco concreta”, avalia António Vidigal, consultor e especialista em energia. Nuno Ribeiro da Silva, professor catedrático convidado do ISEG e ex-CEO da Endesa, considera que esta é uma proposta “sensata e equilibrada”, na generalidade, embora reconheça que será de uma concretização “muito técnica e sofisticada. Será um trabalho profundo”. “Positiva” e “muito positiva” são as avaliações, respetivamente, do analista de Energia da Schneider Electric, Juan José Caudevilla, e de Gonçalo Aguiar, engenheiro eletrotécnico, embora o segundo ressalve também que “ainda existem alguns pontos que têm de ser clarificados em particular na sua exequibilidade, face à realidade de cada país”.

Veja abaixo as principais novidades da proposta e o balanço que é feito por estes especialistas.

Mercado grossista inalterado

A primeira novidade da proposta foi que o mercado elétrico grossista, onde a energia é diariamente negociada entre produtores e comercializadores, permaneceria inalterado, ao contrário do que foi defendido por alguns países, como Portugal. “Mantemos os fundamentais do mercado intocados. O desenho dos mercados de curto prazo mantém-se o mais eficiente”, defendeu a comissária europeia, Kadri Simson. Ou seja: na formação de preços do mercado diário, a tecnologia mais cara vai continuar a definir o preço a cada hora. Por isso, se energias não renováveis, como o gás natural, forem necessárias para responder à procura e chamadas em último lugar (já que as mais baratas têm prioridade), é o preço dessa última energia a ser solicitada que prevalece, independentemente do preço a que negociaram as restantes.

Ao optar por não mexer no desenho deste mercado, a Comissão Europeia, entende Nuno Ribeiro da Silva, tenta “capitalizar o que tem sido de facto bom e até notável na construção do mercado elétrico na Europa”, enquanto introduz ajustamentos em linha com a evolução da realidade, isto é, em linha com a necessidade de alterar o mix energético e com os avanços tecnológicos que se têm verificado. Os defensores deste mercado acreditam que este desenho é importante para incentivar o – muito desejado – investimento em renováveis. Os tais ajustamentos serão então feitos não através de uma mudança no mercado diário, mas por outras vias. E que vias são essas? Encontre-as abaixo.

Incentivo a contratos de longo prazo

Uma das soluções apresentadas pela Comissão tanto para evitar a volatilidade dos preços como para promover as energias renováveis é incentivar os contratos de longo prazo. Fá-lo em vez de criar algum tipo de obrigação neste sentido, como defendido pelo Governo português, nota Gonçalo Aguiar. E como é que a Comissão quer incentivar contratos de longo prazo?

  • Garantias do Estado. Bruxelas propõe a criação de um mecanismo estatal para cobrir o risco financeiro na contratação de longo prazo para pequenas e médias empresas (PME) e clientes residenciais, que normalmente não têm acesso aos chamados Power Purchase Agreement (PPA), contratos de longo prazo, já que implicam um maior risco por parte do comercializador. No entanto, ressalva Aguiar, a redução dos riscos para os comercializadores implica “riscos de despesa para o estado caso existam incumprimentos generalizados num cenário crise”.
  • CfDs. Novos projetos de renováveis ou reforços dos já existentes deverão aplicar os chamados contratos por diferenças (CfD), pelo que os apoios públicos ao investimento passam a ser concedidos desta forma. Estes contratos já são prática comum nos leilões, sendo agora alargados. Funcionam da seguinte forma: é estabelecido um preço que garante uma remuneração mais constante ao produtor, pois, se o preço de mercado for inferior, os consumidores de eletricidade suportarão a diferença entre o preço do mercado e o preço fixado. No entanto, sempre que o preço de mercado exceda o preço fixado, os valores extra são canalizados para os consumidores de eletricidade.
  • Transparência nos futuros. A intenção de tornar os mercados de futuros mais transparentes através da criação de hubs de preços de referência regionais

“A generalização de CfDs e de PPA com garantia dos Estados é positiva”, avalia António Vidigal. Nuno Ribeiro da Silva entende que, no mercado elétrico europeu, é nos aspetos ligados ao mercado a prazo que se sentem as maiores necessidades, e é neste mercado que se deve atuar para colmatar “os maiores problemas” no que toca à necessidade de modernização dos atuais sistemas fruto das novas tecnologias de eletricidade, de passar, por exemplo, de centrais fósseis para produção descentralizada, pelo que aprova este foco da Comissão Europeia. Já a Schneider Electric defende que “os PPA são uma ótima aposta para impulsionar a participação da procura na transição energética, mas não são “a” solução para o longo prazo. São um passo intermédio, um mecanismo para melhorar o funcionamento dos mercados com alguma rapidez, mas o mais importante será mesmo flexibilizar a procura”.

Mais flexibilidade do lado dos consumidores

A flexibilização da procura é a única coisa que nos “salvará” a longo prazo”, acredita Juan José Caudevilla. A Comissão abre a possibilidade de os consumidores terem múltiplos contratos de fornecimento de eletricidade para um mesmo consumidor. Isto é, o consumidor pode optar por ter um contrato a preços fixos, o que agora é o mais comum nos clientes domésticos, para que o geral do consumo doméstico seja cobrado desta forma; ao mesmo tempo, poderia ter outro contrato, indexado aos preços do mercado grossista, que servisse consumos mais específicos como o carregamento de carros elétricos ou bombas de calor. Desta forma, os consumidores podem tirar partido da volatilidade dos preços no mercado grossista, e fazerem estes consumos quando os preços estão mais baixos.

Ao mesmo tempo, a Comissão sugere remunerar os consumidores por poupanças em horas em que a produção escasseie face à procura. Mas isto pressupõe a existência de contadores inteligentes. “Portugal ainda não está preparado em termos de infraestrutura para poder implementar”, por falta destes equipamentos, considera Gonçalo Aguiar. Além disso, vê dificuldades na aplicação da medida na definição de como será cobrado o termo fixo, uma componente da fatura da eletricidade que é paga 30 dias por mês atualmente. António Vidigal aponta que medidas como estas pressupõem que os contadores deixem de operar em tempo diferido e passem a funcionar em tempo real.

A Comissão quer ainda facilitar que um pequeno produtor partilhe excedentes de produção de energia renovável com consumidores vizinhos sem a necessidade de criação de uma comunidade de energia. “Esta medida terá impactos muito positivos pois as comunidades de energia carecem de aprovação, que infelizmente em Portugal tem sido muito lenta. Ainda assim será necessário garantir a compatibilidade com a rede elétrica, mas a intenção da nova legislação é agilizar o processo”, indica Gonçalo Aguiar.

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