Startups nacionais levantam 36,6 milhões até março, menos 100 milhões face há um ano

O capital levantado até março pelo ecossistema caiu mais de 70%, mas ainda assim superior a 2019 e 2020. Apesar da incerteza, os operadores mostram-se otimistas quanto à evolução do ano.

O ecossistema de startups nacional levantou 36,6 milhões de euros no primeiro trimestre, uma quebra de 74,4% face aos 143 milhões de euros injetados pelos fundos e investidores nos primeiros três meses do ano passado, segundo os dados da Dealroom. Até março só uma das rondas, a da Coverflex, representou cerca de metade do capital obtido. Falta de liquidez ou sinal de perda de atratividade do ecossistema junto dos investidores? É cedo para avaliar, consideram os players ouvidos pelo ECO. “Devemos habituar-nos a estes valores. Esta é a tendência global dos últimos meses, não é só em Portugal que vemos este abrandamento“, diz Rita Vilas-Boas, investor e startup advisor.

Depois do pico de investimento no ecossistema de startups em Portugal em 2021, ano em que, à boleia dos voos dos unicórnios com ADN português, foram levantados 1,5 mil milhões de euros no mercado – em 175 rondas de investimento, dos quais 415 milhões angariados só no primeiro trimestre –, o volume de investimento tem vindo a abrandar.

Em 2022, o ecossistema levantou um total de 818 milhões de euros, em 108 rondas, dos quais 143 milhões no primeiro trimestre, num total de 29 rondas. E este ano, até final de março, o valor fixou-se nos 36,6 milhões.

O arranque do ano dá sinais não só de abrandamento no número de rondas, um total de 17, como num maior foco em rondas seed. A maior ronda, a da Coverflex, com 15 milhões, representa quase metade do valor angariado no trimestre. Longe dos 74 milhões de dólares (69,5 milhões de euros) obtidos pela FRVR no mesmo período do ano passado.

 

O ecossistema português estará a perder atratividade? “Ainda é muito cedo para avaliar este número. É frequente as rondas de capitalização serem comunicadas muito tempo depois de se concretizarem e por isso é extemporâneo tirar conclusões já no primeiro trimestre do ano”, reage António Dias Martins, diretor executivo da Startup Portugal.

“Tivemos anos de elevado crescimento proporcionado tanto por investidores nacionais como internacionais, mas desde o ano 2022 temos visto a incerteza global a aumentar, fruto da guerra, disrupção nas cadeias de produção, inflação e a instabilidade no setor financeiro, o que pode gerar alguma retração dos investidores ao nível global e não só em Portugal. No nosso ecossistema, ainda é cedo para avaliar as consequências desta incerteza“, reforça o responsável.

Ainda é muito cedo para avaliar este número. É frequente as rondas de capitalização serem comunicadas muito tempo depois de se concretizarem e por isso é extemporâneo tirar conclusões já no primeiro trimestre do ano.

António Dias Martins

Diretor executivo da Startup Portugal

 

É precoce dizer que o ecossistema português está a perder a atratividade”, considera Lurdes Gramaxo, presidente da Investors Portugal, associação que representa os investidores early stage. “É importante analisar estes dados considerando não apenas o capital levantado, mas também o número de rondas. Isto porque o ecossistema português de startups tem uma dimensão relativamente pequena, pelo que qualquer ronda numa fase mais avançada que se realize num trimestre é capaz de provocar uma grande disparidade na comparação com outro período”, refere a responsável. No primeiro trimestre de 2022, aponta, “a FRVR e a Tekever levantaram, cumulativamente, 99 milhões de euros – apenas dois deals representaram a larga maioria do capital levantado nesse período”, exemplifica.

Este ano “verificamos uma leve queda do número de deals (de 29 para 17), que está em linha com o comportamento dos mercados internacionais. Neste período, a incerteza e a inflação levaram os investidores a mudarem as suas prioridades, sendo mais cautelosos e criteriosos na realização de novos investimentos e focando-se mais na preservação do seu portefólio. Houve, por isso, um abrandamento do ritmo de investimento e uma redução das valorizações”, continua Lurdes Gramaxo.

Contudo, ressalva, “é também importante destacar que, excluindo as rondas de maior dimensão, a queda no investimento foi menos significativa do que nos mercados internacionais muito por causa dos fundos que levantaram dinheiro, ao abrigo do SIFIDE e dos vistos gold, e que continuam ativamente a investir nas startups portuguesas, em contraciclo com o que se passa noutros ecossistemas. É, por isso, precoce dizer que o ecossistema português está a perder a atratividade”, frisa.

Cristina Almeida avança com outra possível explicação para este abrandamento. “As startups, em todas as fases, em 2023, estão a adiar o máximo possível o levantamento de novas rondas. Em fase pre-seed, porque estão a dar prioridade a construírem produto e terem alguma tração inicial para poderem levantar rondas que justifiquem avaliações interessantes; para seed e series A, porque foram financiadas em 2021-22 e estão a estender ao máximo esse financiamento, para que a próxima ronda de investimento aconteça num mercado onde possam justificar avaliações. Ou seja, estão a dar prioridade a tração comercial e conseguirem métricas de negócio sustentáveis, por comparação a financiar crescimento sem essas fundamentos estarem consolidados”, diz a diretora da Maze. “As rondas de investimento mais afetadas por esta contração são as SeriesA+, tanto em termos de avaliação das empresas como no montante agregado angariado”, comenta.

Lá fora, os relatos são igualmente de quebra de investimento. A nível global, no trimestre registou-se um investimento de 76 mil milhões de dólares, uma queda de 53% face aos 162 mil milhões assinalados nos primeiros três meses do ano passado. Não fosse o investimento na ordem dos 10 mil milhões de dólares na OpenAI – a criadora do ChatGPT – em grande parte da Microsoft, e de uma ronda de 6,5 mil milhões de dólares na Stripe, a queda no arranque do ano teria sido mais acentuada, segundo avança a Crunchbase (conteúdo em inglês/acesso livre).

Excluindo as rondas de maior dimensão, a queda no investimento foi menos significativa do que nos mercados internacionais muito por causa dos fundos que levantaram dinheiro ao abrigo do SIFIDE e dos Vistos Gold e que continuam ativamente a investir nas startups portuguesas, em contraciclo com o que se passa noutros ecossistemas. É, por isso, precoce dizer que o ecossistema português está a perder a atratividade.

Lurdes Gramaxo

Presidente Investors Portugal

Gil Azevedo também se mostra cauteloso na análise.Se excluirmos os anos de 2021 e 2022, onde Portugal teve um pico extremo de investimento com rondas de investimento muito significativas em algumas empresas como a Feedzai e a Outsystems, o valor de 36,6 milhões de euros do 1.º trimestre de 2023 é superior ao mesmo período em 2019 e 2020″, começa por apontar o diretor executivo da Startup Lisboa e da Unicorn Factory Lisboa. Nesses anos, o ecossistema levantou no primeiro trimestre 33,5 milhões (em 39 rondas) e 26,9 milhões (30 rondas), respetivamente.

Para o responsável da fábrica e unicórnios em Lisboa, o valor levantado até final de março “demonstra a continuação da tendência de crescimento de longo prazo do nosso ecossistema, sendo que também demonstra que os investidores estão mais cautelosos, dado o contexto económico e o crescimento das taxas de juro.”

 

Uma evolução “perfeitamente normal”, considera Rita Vilas-Boas. “Devemos habituar-nos a estes valores”, diz. “Esta é a tendência global dos últimos meses, não é só em Portugal que vemos este abrandamento. É mais, é muito mais fora do comum o que aconteceu nos últimos anos, com muito dinheiro disponível e avaliações demasiado elevadas, do que está a acontecer agora. Diria até que estamos a assistir ao retorno da normalidade. Bem sei que forçada, mas que na minha opinião faz todo o sentido”, afirma a investor e startup advisor.

E explica porquê. Nos últimos anos assistimos a avaliações de startups fora do comum (demasiado altas), sobretudo a nível internacional, com falta de foco em vendas, com pouco escrutínio dos fundos de investimentos“, refere.

O cenário – fruto da economia, com elevadas taxas de inflação e de juro, e a Guerra na Europa – mudou substancialmente. “O dinheiro está muito mais caro, aquilo que assistimos na última década, o chamado free money (dinheiro barato, sem juro) acabou. Quando o mercado global está conservador, é natural que Portugal e os seus investidores sigam um sentimento similar, o que para mim, será com certeza uma oportunidade, mas cada fundo de investimentos tem a sua estratégia”, continua.

Devemos habituar-nos a estes valores. Esta é a tendência global dos últimos meses, não é só em Portugal que vemos este abrandamento. É mais, é muito mais fora do comum o que aconteceu nos últimos anos, com muito dinheiro disponível e avaliações demasiado elevadas, do que está a acontecer agora. Diria até que estamos a assistir ao retorno da normalidade.

Rita Vilas-Boas

Investor e startup advisor

E lança “em tom de provocação” farpas à nova Lei das Startups recentemente aprovada no Parlamento. “Sabendo que estes valores apenas dizem respeito a empresas com sede em Portugal; sabendo que esses só representam 51% das startups de ADN português, é provável que nos últimos meses cada vez mais fundadores tenham decidido alterar as sedes das empresas para países com maior estabilidade fiscal, com mais flexibilidade burocrática, e incentivos fiscais. Para exemplificar, não podemos deixar de referir o recente disparate feito pelos burocratas do costume sobre a não inclusão dos fundadores na lei das stock options”, diz a também fundadora da Iniciativa Liberal.

Exclusão dos founders q.b. A nova lei que vai reger o ecossistema estendeu o regime de benefícios fiscais aos planos de stock options para os colaboradores, os chamados Employee Stock Ownership Plan (ESOP), às micro, pequenas e médias empresas; empresas de pequena-média capitalização; às startups com menos 250 trabalhadores e com um volume de negócios anual que não exceda os 50 milhões de euros; bem como a empresas que “desenvolvam a sua atividade no âmbito da inovação”, ou seja, “que tenham incorrido em despesas com investimento em investigação e desenvolvimento (I&D), patentes, desenhos ou modelos industriais ou programas de computador equivalentes a pelo menos 10% dos seus gastos ou volume de negócios.”

Excluídos estão “os sujeitos passivos que detenham direta ou indiretamente uma participação não inferior a 20% do capital social ou dos direitos de voto da entidade atribuidora do plano; os membros de órgãos sociais da entidade atribuidora do plano”, refere a Lei. A perda de residência portuguesa também é motivo de exclusão.

Perda de atratividade do ecossistema?

Apesar dos números do trimestre, Gil Azevedo não vê aqui um sinal de perda de atratividade do ecossistema português. “As valorizações tiveram um impacto negativo em todo o mundo, devido às novas condições de mercado. O ecossistema continua a crescer e a atrair muitas startups, quer nacionais quer internacionais”, diz o responsável da Startup Lisboa, dando como exemplo, o número de startups incubadas na Startup Lisboa nos primeiros três meses do ano: 33. “O maior número desde sempre num trimestre, e prevemos mais que duplicar o número de startups apoiadas durante 2023, em comparação com os anos anteriores”, aponta. A meta é superar as 80 startups incubadas num ano, quase o dobro das 49 incubadas no ano passado.

“Também o Programa de Scaling Up da Unicorn Factory Lisboa tem vindo a atrair scaleups de elevado potencial com rondas de investimento já significativas e em processo de internacionalização“, reforça. Acolheram oito, de um total de 33 candidaturas.

O ecossistema continua a crescer e a atrair muitas startups, quer nacionais quer internacionais (…) O programa de soft landing (da Unicorn Factory Lisboa) tem vindo a atrair interesse internacional”, garante. “Já contamos com 12 pedidos de apoio de empresas que pretendem expandir-se para Portugal.

Gil Azevedo

Diretor executivo da Startup Lisboa e da Unicorn Factory Lisboa

E o programa de soft landing “tem vindo a atrair interesse internacional”, garante. “Já contamos com 12 pedidos de apoio de empresas que pretendem expandir-se para Portugal e temos vindo a dar apoio específico às primeiras empresas com sessões imersivas sobre o mercado português, acesso ao helpdesk para temas administrativos através da nossa rede de parceiros, e facilitação de networking com entidades em Portugal”, revela.

“Temos, no entanto, a obrigação de continuar a criar as condições para que o ecossistema nacional se continue a desenvolver”, reforça Gil Azevedo.

Expectativas para o ano

Face ao atual contexto económico, o trimestre é indicador da evolução que podemos esperar para 2023? “É difícil fazer uma previsão de como irá evoluir o ano, pois muitas startups têm optado por fazer rondas de investimento de bridge (ronda intermédia entre rondas maiores), tendo em conta o contexto económico, rondas essas que, muitas vezes, não são tornadas públicas e, por isso, os valores publicados acabam por ser subestimados“, começa por referir Gil Azevedo. “De qualquer modo, antecipo que continuaremos a ter investimento relevante no ecossistema nacional, apesar da recente evolução das taxas de juro resultar num abrandamento, quando comparado com 2021 e 2022″, aponta.

“É expectável que esta tendência (de abrandamento) se agrave pois será mais difícil para startups, internacionais e nacionais, fecharam rondas de investimento: demorará mais tempo e serão menos aquelas que irão conseguir fazê-lo antes de não terem mais forma de financiar a sua atividade. Assim, antecipamos que a tendência continue. Contudo, neste contexto de recessão económica, é igualmente expectável que surjam formas de investimento menos diluidoras para os fundadores por via de iniciativas públicas como o Plano de Recuperação e Resiliência“, aponta Cristina Almeida.

Tal como em crises financeiras anteriores, e em virtude dos layoffs de empresas tecnológicas, é expectável que surjam novas startups fundadas por este talento. Assim, é possível que o número de rondas investimento pre-seed aumente nos próximos trimestres.

Cristina Almeida

Diretora da Maze

Mas, ressalva, momentos de crise também dão origem a novas dinâmicas no ecossistema, aponta a responsável da Maze. “Tal como em crises financeiras anteriores, e em virtude dos layoffs de empresas tecnológicas, é expectável que surjam novas startups fundadas por este talento. Assim, é possível que o número de rondas investimento pre-seed aumente nos próximos trimestres”, diz.

Rita-Vilas Boas mostra-se bastante otimista. “Não tenho dúvida nenhuma que 2023 e 2024 serão excelentes vintages de startups, diz. E explica porquê. “Em primeiro lugar, os investidores vão comprar em baixa. Em segundo lugar, é sabido que a inovação é impulsionada por momentos de crises. A necessidade de soluções genuinamente inventivas só aumenta durante uma recessão. Por exemplo, o boom das dotcom criou a Internet. A sharing economy nasceu da crise financeira global de 2008″, exemplifica.

Quanto ao futuro? “O que 2023 e 2024 trarão? É provável que assistiremos ao surgimento de soluções verdadeiramente incorporadas, por exemplo a aplicação prática da IA ​​(dado o aumento surpreendente do ChatGPT apoiado pela Microsoft e a resposta inevitável do Google), soluções blockchain/Web3 regulamentadas com benefícios para o mundo e economia reais, seja nos setores como finanças ou serviços”, estima.

“Com o aparecimento duma nova recessão global, a necessidade de startups de tecnologia de topo, com equipas excecionais vai aumentar, para nos ajudar a adaptar. E a verdade é que, no mundo, não há falta capital para investir nestes outliers“, defende.

(artigo atualizado às 10h02 com mais informação)

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