O adeus a Carlos Alexandre no Ticão: medidas de coação do caso Altice serão a última decisão
O juiz do Ticão teve a seu cargo os processos mais mediáticos, como BES/GES, BPN, Furacão, Monte Branco, Vistos Gold, Marquês, EDP e agora a Operação Picoas, que envolve o cofundador da Altice.
Banqueiros, altas figuras do Estado português e empresários nunca o intimidaram. Carlos Alexandre, 62 anos, juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, chamou a si, nos quase 20 anos que esteve colocado no chamado Ticão, os mais mediáticos processos de criminalidade económica e financeira. Termina a suas funções como juiz de instrução criminal esta terça-feira e, em setembro, começará as suas funções como juiz desembargador na Relação de Lisboa. Pelo caminho ficou a vontade de ser procurador Europeu já que há três dias foi o magistrado do Ministério Público, José Ranito, confirmado pelo Conselho Europeu como novo procurador europeu de Portugal na Procuradoria Europeia, sucedendo no cargo a José Guerra.
A 21 de novembro de 2014, José Sócrates foi detido no Aeroporto de Lisboa. A histórica detenção foi validada por Carlos Alexandre. A sua fama de “super juiz”, pela disponibilidade com que se entregava a processos de criminalidade complexa e violenta, cresceu ainda mais desde esse episódio, filmado em direto pelas televisões.
Por ele passaram processos como o da Operação Furacão, BPN, Máfia da Noite, Face Oculta, Remédio Santo, CTT , a Operação Labirinto, Operação Marquês, caso EDP, Operação Lex, processo que envolve Joe Berardo, morte do agente da PSP, processo de Tancos, processo de Álvaro Sobrinho e, mais recentemente, o processo que envolve o cofundador da Altice, Armando Pereira. E é precisamente com este caso, e a decisão das medidas de coação aplicadas aos arguidos da chamada Operação Picoas, que o juiz de instrução termina a sua (longa) carreira no Ticão.
Carlos Alexandre, nascido em Mação, distrito de Santarém, esteve no TCIC desde 2004. Ganhou adeptos junto de vários atores judiciários, como investigadores da PJ e procuradores do Ministério Público (MP), por raramente discordar das teses da acusação. Foi muito bem tratado por (alguma) comunicação social, apesar do magistrado sempre se ter oposto, publicamente, à violação do segredo de Justiça. Até 2015, esteve sozinho no tribunal durante mais de uma década, mas nesse ano Ivo Rosa é nomeado como juiz de instrução do Ticão, para dividir trabalho com o super juiz. E aí nasce a rivalidade, pública e notória, entre ambos os juízes (ver texto abaixo).
Já entre advogados e magistrados, a sua fama não é das melhores. Há quem considere que as suas decisões mereciam um maior distanciamento das posições do Ministério Público. Mas a verdade é que Carlos Alexandre tem uma minoria de decisões revogadas pela Relação. São também conhecidos os pedidos de afastamento do juiz Carlos Alexandre pelas defesas de António Mexia e Manso Neto, no processo EDP e de José Sócrates, no âmbito da Operação Marquês. Mas também é verdade que um grande número de advogados dos ditos processos mediáticos fez queixa ao Conselho Superior da Magistratura (CSM) por atos ou comportamentos do magistrado. A mais recente queixa valeu-lhe um processo disciplinar – ainda a decorrer – e que pode vir a suspender sua promoção para a Relação de Lisboa.
Isto porque o Conselho Superior da Magistratura (CSM) recebeu uma queixa do juiz desembargador da Relação, João Abrunhosa, contra o juiz Carlos Alexandre. Em causa está um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que acusa o juiz de instrução Carlos Alexandre de não acatar uma decisão de um tribunal superior, ao ter mantido, a 28 de outubro de 2022, o arresto da pensão de Manuel Pinho, arguido no caso EDP. O que aconteceu quinze dias depois dos juízes desembargadores – com graduação superior à de Carlos Alexandre, à data – terem decretado que essa pensão do ex-ministro da Economia deveria ser ‘libertada’.
Resta agora saber se o CSM vai exercer o seu poder disciplinar da mesma forma que fez com Ivo Rosa, que tem neste momento dois processos disciplinares contra ele, um já arquivado e outro precisamente por ter alegadamente violado o dever de acatamento de decisões de tribunais superiores. Processos esses que o impediram, até agora, de subir a juiz desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa.
A fama de Carlos Alexandre é alimentada na sombra, nos bastidores da Justiça, mas paralelamente coloca-se no centro dos holofotes. É o magistrado que decidiu aplicar uma caução de três milhões de euros a Ricardo Salgado no decorrer da Operação Monte Branco, em 2015, que prendeu preventivamente Oliveira e Costa no âmbito do caso BPN e que não teve pudor em deter preventivamente, pela primeira vez, o líder de uma polícia, Manuel Palos, ex-diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
Mas, anos depois, atribuiu cauções ainda mais altas. Álvaro Sobrinho, ex- presidente do Banco Espírito Santo Angola (BESA) durante mais de dez anos, é suspeito de vários crimes associados à gestão da instituição e viu-lhe ser atribuída uma caução de seis milhões de euros. Meses antes, tomou uma decisão polémica quando aplicou ao ex-ministro Manuel Pinho a medida de prisão domiciliária ou uma caução de seis milhões de euros.
No verão de 2021, o ex-presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira quis pagar a sua caução de três milhões de euros através de um imóvel e de ações do Benfica. Mas o juiz acabou por não aceitar. Carlos Alexandre considerou que devido às oscilações de valor das ações da SAD do Benfica, sujeitas à volatilidade do mercado e até aos resultados do clube dos encarnados em campo, não estão reunidas as condições para aceitar a forma de pagamento da caução de três milhões proposta por Luís Filipe Vieira.
As (poucas) entrevistas de Carlos Alexandre
Na célebre entrevista que deu ao semanário Expresso, em setembro de 2016, admitiu que sabia que o seu telemóvel estava sob escuta e que se recusava a ter telemóvel do Ministério de Justiça. “Devolvi-o depois de ter ficado sem plafond numa diligência a centenas de quilómetros. Eu pago o telemóvel do meu bolso. Tenho aqui um telemóvel com o número que eu negociei com uma operadora”, explicou. O magistrado, cujas entrevistas que deu contam-se pelos dedos de uma mão, Carlos Alexandre fez questão de explicar os seus rendimentos. “Eu faço o meu ónus de prova: tenho um ordenado bruto de 5600 euros, acrescidos de 88 euros de subsídio de refeição mais 600 por não ter casa pelo Estado. Dá 6200 euros por mês. E depois tenho de 2000 euros de descontos, pertenço aos 300 e tal mil funcionários públicos que tiveram cortes especiais. Depois, faço uns fins de semana nos quais ganho líquidos 70 euros”.
Mas foi a entrevista que deu semanas antes, à SIC, que gerou mais polémica. O juiz afirmou que “tinha de trabalhar para pagar” os “créditos hipotecários” que tinha contraído. A seguir, disse ironicamente, que não tinha ” dinheiros em nome de amigos” e “não tenho contas bancárias em nome de amigos”, numa clara alusão à Operação Marquês e aos factos que o Ministério Público imputava a Sócrates e ao seu amigo Carlos Santos Silva.
Dois anos depois, semanas depois do sorteio da instrução da Operação Marquês, a 28 de setembro de 2018, que acabou nas mãos de Ivo Rosa, Carlos Alexandre, em entrevista de vida à RTP, defendia que em todos os sorteios eletrónicos de processos “há uma aleatoriedade que pode ser maior ou menor e que pode condicionar o sorteio pelo volume de processos que cada juiz tenha em seu poder”. Numa velada crítica ao facto do processo ter sido passado para Ivo Rosa, estas declarações acabaram por lhe valer o primeiro processo disciplinar da sua carreira, apesar de ter sido arquivado, posteriormente.
Caso Altice: as últimas buscas e a validação das medidas de coação
Na semana passada, terá sido, muito provavelmente, a última vez que Carlos Alexandre participou em buscas enquanto juiz de instrução. Bem como o interrogatório a Armando Pereira, cofundador da Altice e do seu braço direito Hernâni Antunes, na “Operação Picoas”, terá sido o último que dirigiu. Esta segunda-feira, Carlos Alexandre decidirá quais as medidas de coação aplicadas aos arguidos deste caso, depois da promoção das mesmas pelo MP.
Seis crimes de corrupção ativa agravada no setor privado, com referência a colaboradores da Altice (como Luís Alvarinho, Alexandre Fonseca), um crime de corrupção passiva no setor privado com referência a decisões da Altice, quatro crimes de branqueamento de capitais e ainda crimes de falsificação de documentos, ainda não contabilizados na totalidade. Estes são os crimes imputados a Armando Pereira, co-fundador da Altice. Já Hernâni Vaz Antunes, braço direito de Pereira, terá contra si sete crimes de corrupção ativa agravada no setor privado (com referência a Armando Pereira e Alexandre Fonseca), oito crimes de fraude fiscal, seis crimes de branqueamento de capitais e ainda falsificação de documentos e falsas declarações, ainda não totalmente contabilizados.
No total são mais de 35 crimes que o MP suspeita na chamada ‘Operação Picoas’, que revelou na passada semana um alegado esquema financeiro em torno da Altice, detentora da antiga PT, que terá lesado o Estado e o grupo empresarial em centenas de milhões de euros.
Ivo Rosa versus Carlos Alexandre
Em janeiro de 2022, o juiz Carlos Alexandre acusou Ivo Rosa, também magistrado do Tribunal Central de Instrução Criminal (Ticão), de colocar em perigo a vida de agentes encobertos da Polícia Judiciária. O que levou o Conselho Superior de Magistratura está a investigar a conduta de Ivo Rosa.
O despique destes dois juízes não começou aqui. Anteriormente, Ivo Rosa já tinha acusado Carlos Alexandre por este ter deixado muitos despachos em atraso no processo BES, entre eles um sobre o arresto de uma conta bancária de Maria João Salgado, mulher de Ricardo Salgado.
Carlos Alexandre considerou assim que o seu colega do Ticão cancelou “ações encobertas (…), apelidando de ilegais, colocando agentes encobertos em risco de vida”. Estas decisões foram posteriormente anuladas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, “considerando que eram atos ilegais e ordenando a reposição da cadeia de prova, através deles obtida”, referiu Carlos Alexandre.
Foi também em janeiro de 2022 que foi publicada em Diário da República a lei que tirou a exclusividade da dupla Carlos Alexandre e Ivo Rosa no “Ticão”. A lei determinou que este Tribunal passasse a ter uma composição com mais sete juízes, depois de se fundir com o Juízo de Instrução Criminal de Lisboa. As competências do Tribunal Central de Instrução Criminal foram também alargadas. A partir de janeiro passam a incluir os crimes de recebimento indevido de vantagem e tráfico de influência, bem como de prevaricação punível com pena superior a dois anos.
À data, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, justificava esta alteração com a existência de uma “indesejável personalização da justiça, o que não beneficia a adequada perceção pública da objetividade da ação da justiça. Este contexto é agravado pela circunstância de os processos que correm naquele tribunal adquirirem, em regra, um elevado patamar de mediatização“.
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