Presidente do Supremo diz que Justiça não precisa de reformas estruturais, mas pontuais
O novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça diz que megaprocessos "têm distorcido a perceção pública acerca da eficácia dos tribunais judiciais".
O novo presidente do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) defendeu esta terça-feira que a justiça precisa de reformas urgentes, não estruturais, mas apenas pontuais, e apelou para a revisão do papel deste tribunal enquanto “instância de recurso normal”.
No discurso da sua tomada de posse, que decorreu no Supremo Tribunal de Justiça, em Lisboa, o juiz conselheiro João Cura Mariano afirmou que “não é necessária uma reforma estrutural do poder judicial ou das relações de equilíbrio que este mantém com os restantes poderes do Estado”, considerando-o “uma harmoniosa construção constitucional que deve permanecer incólume como garante seguro de um Estado de Direito Democrático que queremos salvaguardar”.
“A urgência reside antes num conjunto de medidas setoriais e pontuais, muitas delas nevrálgicas, que permitam que o sistema judicial responda eficazmente, o que também significa, atempadamente, a todas as novas exigências e desafios”, defendeu o novo presidente do STJ, na cerimónia que contou com a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa e da ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice.
Para Cura Mariano, “no topo das preocupações” está a revisão da legislação que regula a entrada nas magistraturas, referindo que “não se compreende” que o anteprojeto de revisão legislativa já aprovado pelo Conselho Geral do Centro de Estudos Judiciários “não se tenha convertido numa proposta de lei e dado entrada na Assembleia da República”, alertando para o crescente desinteresse pela profissão e para o “ponto de rutura” já atingido, com vagas por preencher “por não existirem candidatos com as condições mínimas”.
Sobre os chamados ‘megaprocessos’, Cura Mariano lembrou que já estão identificadas as alterações à lei “que contribuiriam para evitar o protelamento excessivo do desfecho destes processos e que têm subjacente uma finalidade de simplificação e de agilização processuais, sem que se sacrifique o núcleo essencial das garantias de defesa dos arguidos”, que devem ser acompanhadas por “medidas gestionárias robustas”, afetando mais meios humanos e tecnológicos “proporcionais à complexidade dos casos”.
Cura Mariano disse que estes processos “têm distorcido a perceção pública acerca da eficácia dos tribunais judiciais” e mesmo reconhecendo que a sua existência “constitui uma inevitabilidade decorrente do surgimento de uma criminalidade económico-financeira sofisticada” apontou que “o seu efeito nefasto na erosão da confiança dos cidadãos no sistema de Justiça compromete todos os que intervêm na cadeia da criação e aplicação de leis”.
“Mas as reformas na justiça não competem apenas aos outros”, alertou o juiz conselheiro, que apelou para decisões nos tribunais “estruturadas, fundamentadas e redigidas de uma forma clara, e que as mesmas, sempre que tenham ou devam ter repercussão pública, sejam comunicadas de modo a que a generalidade dos cidadãos as entendam”.
“Não se espere credibilidade sem transparência. Este é um caminho que nos cabe a nós, juízes, fazer. Temos que abandonar o estilo barroco das nossas decisões, a que nos conduziu uma cultura judiciária pretensiosa, e procurar, de uma forma simples e clara, sem quebra do rigor jurídico, aplicar o direito ao caso concreto de uma forma justa”, argumentou Cura Mariano.
O presidente do STJ assinalou que toma posse num momento em que a Justiça “volta a estar na crista da onda discursiva, sob o signo da crise e da desconfiança”, um fenómeno cíclico em 50 anos de democracia. “Estas crises de credibilidade são habitualmente desencadeadas por epifenómenos que funcionam como detonadores de um alarme social, abalando a confiança em todo o sistema de justiça, apesar de circunscritos a eventos processuais circunstanciais e muitas vezes até estranhos ao funcionamento do aparelho judicial”, disse.
Sobre o tribunal superior a que passa a presidir, Cura Mariano frisou a constante jubilação de juízes dos quadros do STJ, explicada pela idade com que os magistrados ascendem a este patamar, levando a que a permanência dos juízes nesta instância seja “muito breve”.
“É uma realidade com tendência a agravar-se, até ao limite do caricato, se nada for feito. Corremos o risco previsível de o STJ ser um Tribunal onde a quem ele ascende vem apenas entregar o seu pedido de jubilação”, alertou o juiz conselheiro, acrescentando que o rejuvenescimento dos quadros do tribunal só acontecerá a breve prazo “com uma alteração legislativa às regras de acesso ao STJ que constam do Estatuto dos Magistrados Judiciais e, por isso, exigem a intervenção da Assembleia da República”.
Sobre o próprio papel do tribunal, Cura Mariano entende que é necessário “modificar o paradigma”.
“Este não pode continuar a funcionar como uma instância de recurso normal, num sistema de tripla jurisdição. O tempo exigente das sociedades modernas não admite que a resolução de um conflito, por regra, aguarde a análise e a pronúncia de três instâncias distintas. O STJ deve, por isso, limitar a sua ação à relevantíssima tarefa de uniformização da jurisprudência e a emitir a última palavra nos casos em que a decisão revista um excecional relevo jurídico ou social”, defendeu.
No discurso de posse deixou ainda elogios ao presidente cessante, o conselheiro Henrique Araújo, a quem atribuiu um papel “fundamental na defesa do prestígio” do STJ, e de quem recordou os alertas permanentes para a necessidade de medidas para o bom funcionamento da Justiça, que os poderes executivo e legislativo deixaram sem “o devido acolhimento”.
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