Governo pode ditar reinício da prospeção de lítio em Boticas, dizem advogados

As sociedades de advogados contactadas pelo Capital Verde apontam que o ministério pode insistir no interesse público dos trabalhos para levantar a suspensão originada pela providência cautelar.

Um grupo de proprietários interpôs uma providência cautelar contra o Ministério do Ambiente, ditando a suspensão da servidão administrativa que permitia à Savannah Resources fazer prospeções mineiras em terrenos de aldeias de Boticas. As sociedades de advogados contactadas pelo ECO/Capital Verde assumem que a decisão deve demorar, pelo menos, quatro meses a chegar, mas deixam uma ressalva: o ministério pode apresentar uma “resolução fundamentada” que invoque o interesse público para que os trabalhos na área continuem, mesmo antes de o tribunal decidir quanto à providência cautelar. Contactado, o ministério do Ambiente não esclareceu se está nos seus planos avançar por esta via.

A servidão administrativa, assinada pela ex-secretária de Estado da Energia, Maria João Pereira, permite à Savannah Resources aceder temporariamente (durante um ano) a terrenos privados para realizar estudos e sondagens necessários à futura exploração de lítio, implicando o dever para os proprietários de permitir a realização dos respetivos trabalhos, esclarece a sociedade Macedo de Vitorino.

A associação Unidos em Defesa de Covas de Barroso (UDCB) avançou com uma providência cautelar e garante que o “despacho de admissão suspende todos os trabalhos na área de servidão até decisão futura do tribunal”.

“Suspendendo-se os efeitos do referido despacho, esta suspensão aproveita aos proprietários de todas as parcelas de terreno abrangidas”, e não apenas aos três que avançaram com a providência, confirma Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha Ecija, em consonância com o divulgado pela associação UDCB.

Arriscaria dizer que antes de 4/5 meses não teremos uma decisão em primeira instância”, assume Jane Kirkby, e a parte vencida pode recorrer de uma decisão que lhe for desfavorável. De acordo com os dados disponíveis no Sistema de Informação das Estatísticas da Justiça, citados pela Macedo Vitorino, a duração média dos processos cautelares nos tribunais administrativos de primeira instância em 2023 (últimos dados disponíveis) foi de aproximadamente 4 meses. “Em todo o caso, o tempo pode variar consoante complexidade do caso e a carga de trabalho do tribunal”, ressalva. Na ótica da SRS, “uma providência cautelar é urgente, pelo se pode estimar que no máximo em seis meses possa ter uma decisão em primeira instância”.

"A qualquer momento, o Ministério do Ambiente poderá remeter ao tribunal uma resolução fundamentada que reconheça que a suspensão da execução da servidão administrativa é gravemente prejudicial para o interesse público. E é provável que o faça.”

Jane Kirkby

Sócia da Antas da Cunha Ecija

No entanto, enquanto não existe uma decisão, há outra ação possível. “A qualquer momento, o Ministério do Ambiente poderá remeter ao tribunal uma Resolução Fundamentada que reconheça que a suspensão da execução da servidão administrativa é gravemente prejudicial para o interesse público. E é provável que o faça”, afirma Jane Kirkby.

José Luís Moreira da Silva, sócio responsável pelo Departamento de Administrativo e Ambiente da SRS Legal, reforça que esta é uma hipótese ao dispor do ministério. “O Governo que constituiu a servidão administrativa tem o poder de decretar a continuidade dos trabalhos, mediante uma Resolução Fundamentada que reconheça o grave prejuízo para o interesse público na manutenção da suspensão”, entende o mesmo. Assim, a suspensão dos trabalhos pode terminar caso se entenda que existe um grave prejuízo para o interesse público e “tal parece decorrer logo da constituição da servidão, pois a lei tem como pressuposto para essa servidão o interesse público na exploração do recurso geológico”, explica Moreira da Silva.

Os proprietários podem requerer ao tribunal que julgue improcedentes as razões em que a resolução se fundamenta, a fim de se retomar a suspensão da servidão administrativa, “mas o tribunal tem poderes de sindicância muito limitados nesta sede”, explica Kirkby. De acordo com a especialista, apenas em caso de erro grosseiro o tribunal se irá substituir ao Ministério do Ambiente na consideração do que é mais vantajoso para o interesse público.

Já na ótica da Savannah Resources, a suspensão dos trabalhos não está ligada à apreciação do mérito da providência cautelar, mas sim a um efeito burocrático da mesma. “A prática habitual nestes casos é a de levantamento desse mesmo efeito suspensivo, e é isso que aguardamos que aconteça. Por isso, sim, esperamos poder voltar aos trabalhos o quanto antes. O processo legal de avaliação dos méritos, esse, seguirá certamente os tempos de um tribunal, como qualquer outro processo”, escreve fonte oficial da empresa, em declarações ao ECO/Capital Verde.

Para o responsável pelo Departamento de Administrativo e Ambiente da SRS Legal, o “natural desfecho” da providência é que o tribunal decida a favor do promotor, devolvendo o direito à exploração dos terrenos dos proprietários, “a não ser que tenha havido uma ilegalidade na constituição da servidão”. Por seu lado, a Macedo Vitorino considera que não é possível antecipar qual será a decisão, e realça que para o Tribunal Administrativo conceder a providência cautelar teve de considerar que estavam preenchidos dois requisitos: indícios de ilegalidade e risco de prejuízo irreversível para os proprietários.

Para que o tribunal decida a favor do promotor, informa a Macedo Vitorino, tem de entender que este reúne todas as licenças e autorizações necessárias para efeitos de prospeção e pesquisa de lítio, que a constituição da servidão administrativa acautela o confronto entre o interesse público do projeto e os interesses particulares dos proprietários e, finalmente, que o interesse público do projeto é superior aos interesses particulares dos proprietário.

Em oposição, a decisão pode pender a favor dos proprietários caso o interesse público do projeto não esteja devidamente fundamentado, caso a servidão administrativa tenha decretado uma servidão em excesso, já que devia limitar-se ao mínimo indispensável para efeitos de prospeção e pesquisa de lítio ou caso tenha existido irregularidade na constituição da servidão, por exemplo, por falta de participação dos promotores na tomada de decisão, através de audiência prévia dos interessados.

Prova do interesse público no centro da questão

“A constituição da servidão administrativa, tal qual descrita no referido despacho, não me parece minimamente estranha, quando o fundamento invocado se refere expressamente que se destina a dar cumprimento a condições impostas pela DIA (Declaração de Utilidade Pública)”, entende Ana Borges, associada sénior do Departamento de Direito Imobiliário e Urbanismo da Antas da Cunha Ecija.

De acordo com a Macedo Vitorino, é comum a utilização da servidão administrativa quando há necessidade de acesso a terrenos privados, em setores como energia, infraestruturas e recursos naturais. Por exemplo, é usada para construção de redes elétricas, gasodutos, oleodutos, condutas e estações de tratamento de águas ou linhas ferroviárias.

José Luís Moreira da Silva, da SRS Legal, acrescenta que a “lei expressamente prevê a constituição de servidões sobre os terrenos necessários para a prospeção e/ou exploração de minas”, num prazo máximo de sete anos. No entanto, “só se constitui servidão se não for possível obter o consentimento do proprietário” e estas “podem sempre ser contestadas, por implicarem um prejuízo para o proprietário do terreno”.

Na ótica da Macedo Vitorino, a constituição de uma servidão administrativa está dependente da verificação de um fim de utilidade pública. Contudo, este é “um conceito abstrato e indeterminado, não sendo possível fixar o seu conteúdo de modo imutável”. Há três princípios a atentar quando existem conflitos entre o interesse público e o privado: além do da utilidade pública, há que respeitar o princípio da legalidade e o da proibição do excesso, sendo que este último refere à adequação, proporcionalidade e direito a indemnização.

"Uma das fragilidades do despacho é a falta de fundamentação sobre o interesse público do projeto”

Sociedade Macedo Vitorino

Uma das fragilidades do despacho é a falta de fundamentação sobre o interesse público do projeto”, entende ainda a mesma sociedade. Para conferir robustez ao despacho, este poderia ter sido sujeito a um estudo técnico e económico detalhado que demonstrasse os benefícios concretos do projeto e uma análise sobre porque outras alternativas (como negociações privadas) não terão sido viáveis, sugere a mesma sociedade. “A servidão administrativa imposta pelo Governo poderá, eventualmente, ser impugnada com fundamento na deficiente fundamentação do interesse público e na violação do princípio da proporcionalidade que deve nortear a emissão de atos administrativos”, conclui a Macedo Vitorino.

Apesar dos ‘senãos’, “a constituição de servidão administrativa está prevista na lei, pelo que com o aumento do interesse na exploração de lítio, é expectável que esta figura venha a ser utilizada com maior frequência no futuro”, escreve ainda a mesma sociedade.

Da expropriação à indemnização, os restantes remédios

Na opinião de Moreira da Silva, a única alternativa à servidão administrativa seria o consentimento do proprietário, mas “sendo um recurso geológico considerado de interesse público, o Estado pode ultrapassar a falta de consentimento mediante a expropriação ou a mera constituição de uma servidão”. Ana Borges vê também a servidão administrativa como o meio mais adequado de atuação, já que “a alternativa seria muito provavelmente a expropriação dos particulares, que pode ser considerada mais ‘violenta’, a menos que os particulares prefiram a aplicação desta última”.

Apesar da constituição da servidão administrativa parecer adequada a Ana Borges, isso não prejudica “o direito à justa indemnização por parte dos particulares resultante desta intervenção na sua propriedade”, ressalva. No seu entender, o Estado poderá vir a ser responsabilizado pelos prejuízos causados aos proprietários por ter emitido um ato administrativo inválido, se o tribunal der razão a estes últimos e se a suspensão administrativa e os trabalhos naquela área prosseguirem.

"O promotor do lítio pode vir pedir uma indemnização e o proprietário do terreno também o pode fazer.”

José Luís Moreira da Silva

Sócio responsável pelo Departamento de Administrativo e Ambiente da SRS Legal

A SRS Legal sublinha que tanto os proprietários como a própria Savannah podem ser indemnizados. “Se for decretada a anulação da constituição da servidão, por alguma ilegalidade, o promotor do lítio pode vir pedir uma indemnização e o proprietário do terreno também o pode fazer”.

Se a suspensão administrativa e os trabalhos naquela área prosseguirem e, no futuro, o tribunal vier a dar razão aos proprietários, decidindo pela ilegalidade do despacho de constituição da servidão administrativa, o Estado poderá vir a ser responsabilizado pelos prejuízos causados aos proprietários por ter emitido um ato administrativo inválido.

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