“Erros e omissões” ou “trabalhos complementares”? A opção vale milhões para a ABB
O escritório de Montenegro fez pareceres jurídicos, para a Câmara de Espinho, para resolver os diferendos entre a equipa de fiscalização de uma obra e a empresa de Barbosa Borges. O que diz a lei?
O Ministério Público está a investigar a maior obra pública adjudicada até as dias de hoje pela Câmara Municipal de Espinho, o ReCaFe, que incluiu a construção de um parque de estacionamento subterrâneo de 400 lugares no centro da cidade, avançou o Expresso. Entre os visados está o empreiteiro de Barcelos, Alexandre Barbosa Borges, e a antiga sociedade de advogados de Luís Montenegro, SP&M, da qual este era sócio antes de abraçar a liderança do PSD. Em causa está a requalificação do canal ferroviário de Espinho, que foi lançada pelo autarca do PSD Joaquim Pinto Moreira (no cargo de 2009 a 2021) e que é arguido na Operação Vórtex, acusado de corrupção passiva agravada, tráfico de influências e violação das regras urbanísticas. O inquérito-crime teve origem numa denúncia anónima entregue em janeiro de 2023 na Procuradoria-Geral da Republica e no DIAP Regional do Porto, três dias depois de Pinto Moreira ter sido detido.
O projeto foi adjudicado – tendo sido o único a ser admitido no concurso porque apresentava o valor baixo de custo de referência – em abril de 2017 por 12,4 milhões de euros, mas a obra arrisca-se a derrapar 73,2% face ao valor inicial previsto, cerca de mais nove milhões de euros. O empreiteiro de Barcelos ofereceu uma proposta 7 mil euros mais baixa do que o preço-base, enquanto as outras propostas estavam 25,3% a 40,5% acima.
Segundo os documentos a que o Expresso teve acesso, o então escritório de Luís Montenegro produziu vários pareceres jurídicos, a pedido da Câmara, para resolver os diferendos entre a equipa de fiscalização da obra da edilidade e a ABB, empresa de Barbosa Borges.
Alguns desses pareceres terão sido favoráveis aos interesses do empreiteiro. Um deles assinado em maio de 2020 pelo atual primeiro-ministro — embora Montenegro já tenha garantido que nunca assinou qualquer parecer sobre esta matéria. Neste caso, uma reclamação apresentada pelo empreiteiro, que levou Pinto Moreira a aprovar mais 116 mil euros para a obra.
Um ano antes, em 2019, os riscos de derrapagem financeira da obra aumentaram a pique. No final desse ano, a ABB enviou à Câmara de Espinho uma proposta de solução diferente para a construção do parque de estacionamento, com “estacas secantes”, ao descobrir que o solo era mais arenoso, além de haver infraestruturas não cadastradas que interferiram com a obra. Que, segundo o empreiteiro, iria custar mais 2,2 milhões de euros além do já orçamentado, o que significaria um aumento de 45% do preço de 4,2 milhões de euros definido só para o parque de estacionamento.
A equipa de fiscalização da obra concluiu, num parecer que a proposta apresentada pela ABB para a nova solução de construção do parque de estacionamento correspondia a erros e omissões e teria de ser paga a 50% pela empresa.
Um mês depois, a pedido da Câmara, o advogado Paulo Sousa Pinheiro, da SP&M, fez um parecer jurídico sobre a análise feita pela fiscalização, aconselhando a autarquia “a agir com cautela” na qualificação dos trabalhos propostos “pelas implicações que a mesma pode ter, designadamente para o dono da obra e para o projetista”. Nesse parecer, o escritório de Montenegro defendeu que a fiscalização da Câmara estava “errada”, por “tratar-se de circunstâncias que, tal como descritas, não eram suscetíveis de ser previsíveis por parte do empreiteiro”, devendo “os referidos trabalhos ser enquadrados no regime jurídico dos trabalhos a mais”. Com base nisso, o executivo aprovou em reunião de Câmara as obras a mais.
Um outro contrato adicional, conhecido como “adicional 5” e relativo à solução das estacas secantes para a parede do parque subterrâneo, seria assinado a 30 de julho de 2020 pelo valor de €1,8 milhões. Foi o mais caro dos seis contratos adicionais firmados entre a autarquia e a ABB.
Na resposta dada ao Expresso, o gabinete do primeiro-ministro diz que “só muito excecionalmente e por razões de necessidade concreta (….) é que o Dr. Luís Montenegro interveio em trabalhos com esse cliente, que não acompanhava regularmente.” E deixa a garantia: “Todo o trabalho da sociedade de advogados foi elaborado para a Câmara Municipal e defendendo sempre (…) o interesse do município.”
E o que dizia a versão do Código dos Contratos Públicos em vigor, à data?
O que se pode então fazer nos casos em que o valor de uma obra vai para lá do estipulado no caderno de encargos. Quem paga as derrapagens neste tipo de contratos? E até quanto pode aumentar esse valor?
O advogado José Luís Moreira da Silva, sócio da SRS Legal, explicou ao ECO/Advocatus que em termos de erros de projeto é “mais fácil” para o dono da obra quando o projeto é feito pelo empreiteiro. Caso contrário, é “mais difícil” de afastar as culpas. “Por isso se exige em projetos grandes a revisão do projeto”, assume.
Segundo o advogado Eduardo Castro Marques, sócio fundador da Dower Law Firm, nos contratos de empreitada de obras públicas podem ser realizados trabalhos para além dos inicialmente previstos em duas situações: existência de erros e omissões no projeto ou quando existem outros trabalhos impossíveis de prever, designados trabalhos a mais. “Pense-se, por exemplo, nas situações em que se abre um buraco, e se verifica a existência de uma rocha que demora mais do que o expectável para retirar, ou na necessidade de serem repetidos trabalhos pela existência de condições climatéricas adversas com danos nos trabalhos anteriormente efetuados”, exemplifica.
No caso de erros e omissões, os custos dos trabalhos para além dos previstos são divididos entre o dono da obra e o empreiteiro, mas apenas se o empreiteiro não os identificar na fase de formação do contrato. “Situação em que os custos seriam também custeados pelo dono da obra, nunca podendo os custos ir além de 5% do preço contratual”, explica.
“O Contrato de Empreitada é composto, entre outros elementos, por um projeto de execução, da responsabilidade do dono da obra, isto é, da Câmara Municipal de Espinho, neste caso“, sublinha também a advogada Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha ECIJA, que explica que segundo o Código dos Contratos Públicos “o projeto de execução é o conjunto de documentos escritos e desenhados e outros elementos de natureza informativa que definem e caracterizam a conceção funcional, estética e construtiva de uma obra”.
A advogada nota ainda que, “não raras as vezes”, os projetos de execução padecem de erros e omissões, como por exemplo falhas no detalhe técnico, na coordenação entre as disciplinas, no cálculo de quantidades e nas condições do solo, bem como o não cumprimento de normas de segurança e acessibilidade.
Mas quando podem ser detetáveis estes erros e omissões? Segundo a lei, na fase de formação do contrato, ou seja antes da apresentação das propostas, ou na fase de execução da empreitada, isto é, já em obra. “Quando se detetam erros e omissões no projeto de execução ou em qualquer outro elemento da solução da obra, por norma, mostra-se necessário executar trabalhos de suprimento desses erros e omissões, ou seja, trabalhos que não estavam inicialmente previstos no contrato“, acrescenta.
Assim, neste primeiro caso, a responsabilidade pelos trabalhos de suprimento de erros e omissões é do dono da obra, exceto quando os erros e omissões eram detetáveis na fase de formação do contrato, sendo 100% da responsabilidade do empreiteiro, ou quando erros e omissões que, não sendo exigível que tivessem sido detetados na fase de formação do contrato, também não tenham sido identificados pelo empreiteiro no prazo de 30 dias a contar da data em que lhe fosse exigível a sua deteção, sendo a responsabilidade dividida.
Já no segundo caso, nos designados “trabalhos a mais”, os custos são integralmente assumidos pelo dono da obra, até ao limite de 40% do preço contratual. Segundo explicou Eduardo Castro Marques, este tipo de trabalhos não surgem de factos imputáveis ao empreiteiro, mas da realidade inesperada, de circunstâncias anormais e supervenientes ou por ação do dono da obra.
“Imagine-se suspensão da obra por uns dias, pela existência de algum evento perto do local onde a mesma decorre, sendo devidos pela entidade pública os custos que o empreiteiro tenha nos dias de suspensão, por exemplo, e na situação mais normal, com o estaleiro”, exemplifica.
À Advocatus, a advogada Jane Kirkby explicou ainda que os trabalhos a mais são aqueles cuja espécie ou quantidade não esteja prevista no contrato e que “se tenham tornado necessários à execução da mesma obra na sequência de uma circunstância imprevista” e “não possam ser técnica ou economicamente separáveis do objeto do contrato sem inconvenientes graves para o dono da obra ou, embora separáveis, sejam estritamente necessários à conclusão da obra”.
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