No quinto dia de julgamento, Sócrates acusa governos de Costa e Passos Coelho de “covardia” no TGV
Na última sessão de julgamento antes das férias judiciais, Sócrates abordou o tema do TGV e acusou os governos de António Costa e Pedro Passos Coelho de "covardia" por abandonarem projeto do TGV.
Na sessão desta terça-feira, no âmbito da Operação Marquês, a última antes das férias judiciais, José Sócrates abordou o tema do TGV, acusando os governos de António Costa e Pedro Passos Coelho de “covardia” por abandonarem projeto de alta velocidade.
“O Governo que sucedeu foi o primeiro a acabar com o TGV e depois ainda tiveram o descaramento de culpar o Tribunal de Contas. (…) Mentira. (…) Desorçamentaram-no e, portanto, nunca teria condições para ser aprovado pelo Tribunal de Contas”, referiu. Segundo o antigo primeiro-ministro, em novembro de 2011, o governo liderado por Passos Coelho decidiu “acabar com o TGV”.
“E depois o governo socialista, apenas por isso ser o projeto do Sócrates, decidiu não fazer nada no TGV e comportou-se de forma lamentável no pedido de indemnização dessas empresas”, disse.
Em 2016, o Tribunal Arbitral julgou contra o Estado, condenando-o a pagar uma indemnização que seria superior a 160 milhões, mas o Estado decidiu recorrer. “O Estado comportou-se de uma total covardia e sem respeito e lealdade pela palavra que teria dado e não pagou. E não pagou porque temia o Ministério Público“, acrescenta.
Sócrates denunciou ainda “cinco absurdos da acusação” e sublinhou que a acusação é “falsa” e “profundamente injusta”, “com consequências devastadoras para o desenvolvimento do país”.
“Em primeiro lugar, a acusação sustenta pagamentos corruptos feitos em 2007 para um projeto que nunca se realizou e que se destinavam a obter indemnizações do Estado que até hoje não foram pagas. Não é grande o absurdo, é apenas estranho e singular”, começou por enunciar Sócrates.
Sobre os alegados “pagamentos corruptos”, o arguido considera que a acusação sustenta que os pagamentos eram “contrapartida, não de uma escolha viciada”, mas de uma “potencial indemnização resultante de um potencial chumbo”.
“Afinal de contas, eu sou acusado de não querer fazer o TGV, mas de fingir que queria, mas no fundo esconder o desejo íntimo e criminoso de querer que o Tribunal de Contas chumbasse o projeto para a empresa ter uma indemnização“, referiu.
Sócrates garante que não conhecia “homem dos bastidores” do Grupo Lena
O Ministério Público acredita que Ribeiro dos Santos, antigo administrador da RAVE, entidade que supervisionava a construção do TGV, foi o “homem dos bastidores” do Grupo Lena para influenciar o Governo a atribuir o concurso do TGV à empresa ligada a Carlos Santos Silva e a Joaquim Barroca.
Mas Sócrates garantiu, na sessão desta terça-feira, não conhecer Ribeiro dos Santos e que foi o seu Executivo que o afastou das funções da RAVE.
“Não faço ideia porque o afastei, foi-me proposta a nomeação de um outro presidente e eu dei o meu consentimento. Eu não conheço Ribeiro dos Santos“, assumiu em tribunal, alertando que o afastamento “deve ser” do conhecimento do antigo ministro das Obras Públicas, Mário Lino.
José Sócrates criticou ainda a tese do Ministério Público referente à parte de que o Grupo Lena teria assumido a totalidade dos alegados “pagamentos corruptos”.
“Uma empresa, que tinha 13,5%, paga tudo e os outros não sabem nada. Não cabe na cabeça de ninguém. Não tem aparente razão“, sublinha.
Sócrates cita acórdão do Tribunal Arbitral
Na sessão desta terça-feira, Sócrates trouxe um acórdão de 2016 do Tribunal Arbitral relativo à introdução da cláusula indemnizatória no contrato com o Grupo Lena. Numa tentativa de rebater a tese do Ministério Público sobre o favorecimento no concurso do TGV ao consórcio Elos, Sócrates lê passagens do acórdão e assume que este denuncia toda a hipocrisia”.
“Este é um acórdão muito bem escrito, muito esclarecedor e que denuncia toda a hipocrisia do Estado e como se comportou quando abandonei funções e revela o comportamento absolutamente íntegro de todos aqueles que participaram neste concurso”, disse, relembrando que a acusação foi feita um ano depois do acórdão.
“A cláusula não resultou de nenhum impulso político e não é ilegal nem prejudicial ao interesse público. E, no entanto, é disso que eu estou acusado. Que eu próprio fui o autor [desta cláusula]”, disse.
O antigo primeiro-ministro sublinhou também que a decisão instrutória do juiz Ivo Rosa, de 2021, diz que “o contrato reproduz a norma legal aprovada pela lei” e admite que só soube da cláusula quando foi acusado. “Nunca ninguém me tinha alertado na vida para esta cláusula, nem discutido comigo em nenhuma circunstância. Tudo isto é construído apenas para me atingir”, referiu.
Questionado pela juíza se nas fases de negociação com os dois concorrentes do projeto – Elos e Altavia – discutiram a cláusula indemnizatória, o arguido respondeu: “Os dois queriam… acho que essa cláusula foi proposta pelo consórcio ganhador, mas os dois queriam”.
Uma coisa é certa: o antigo primeiro-ministro assume que, após a acusação do Ministério Público, “nunca mais se falou do TGV no país”. “Os espanhóis construíram 2.500 quilómetros e Portugal zero. Só vamos descobrir o impacto disto quando chegarmos a 2030 e tivermos de fazer uma viagem pelo Alentejo até Badajoz e só assim ir para Madrid”, disse referindo-se aos planos do atual Governo de concretizar essa rota de alta velocidade.
A comparação entre o MP e a “Inquisição”
O antigo primeiro-ministro comparou o Ministério Público à Inquisição, sublinhando ser vítima da acusação e que a linguagem do órgão público é tão “vaticânica” que mostra o que “está por detrás”.
“Em 2017 o Ministério Público apresentou a sua acusação, onde diz que eu instrumentalizei ministros. Era essa a minha técnica. Diz que não interferia nos concursos de forma a evitar suspeitas, mas interferia nas regras de procedimento e conformação dos contratos. Esta linguagem tão “vaticânica” mostra o que está por detrás… alguma intenção oculta lá teria“, referiu.
Segundo Sócrates, o Ministério Público diz que o antigo primeiro-ministro não interferia para disfarçar, porque, “como na inquisição, estava possuído pelo demónio”.
“A acusação diz que instrumentalizei os ministros e por via deles os administradores e, por ventura, os assessores para beneficiar a empresa Lena – isso é absolutamente falso. Não se encontra neste processo ninguém que diga isso”, refere.
O arguido foi mais longe e assume que a tese de “manipulação” é “estapafúrdia”, mas “pode ser adotada para perseguir o seu alvo”.
“Eu gostaria que o MP fizesse perguntas relativamente ao meu dinheiro”
Na sessão da parte da tarde, Sócrates falou sobre a tentativa do seu Governo em antecipar o concurso do TGV. A tese do Ministério Público defende que o antigo primeiro-ministro pressionou os administradores da RAVE e da REFER a antecipar o concurso após ter sido informado, através de Carlos Santos Silva, de que o Grupo Lena tinha tido acesso a resmas de informação confidencial.
“Foi uma reunião que eu fiz no meu gabinete com a secretária de Estado Ana Paula Vitorino. A versão que é contada na acusação nem é honesta, nem é verdadeira”, assumiu, defendendo que foi discutida uma hipótese, “não foi uma pretensão”, e que essa hipótese foi sugerida pelo ministro Mário Lino.
De acordo com José Sócrates, a antecipação de concursos sem ter as avaliações de impacto ambiental concluídas foi “um erro cometido noutros governos”, pois tal implicou mais custos em fases posteriores.
O arguido garantiu que nunca sugeriu “quaisquer pedidos de pareceres jurídicos”, nomeadamente o parecer que acabou por considerar legal a introdução da cláusula indemnizatória em caso de chumbo do Tribunal de Contas. “Não é verdade que em algum momento tenha dado qualquer instrução de pedido de pareceres jurídicos. Isso foi desmentido por toda a gente”, acrescentou.
Sobre o “circuito do dinheiro”, Sócrates considera que o Ministério Público apresenta uma série de faturas e de pagamentos alegadamente como contrapartidas, mas que “as faturas que ocorreram entre 2009 e 2011, decorreram em meses não coincidentes com datas relevante do processo”.
“Eu gostaria que o Ministério Público fizesse perguntas relativamente ao meu dinheiro e não dos outros“, atira.
As casas na Venezuela
Outro dos tópicos abordados por José Sócrates foram as casas sociais na Venezuela. Segundo a acusação, entre fevereiro e junho de 2007, Joaquim Barroca transferiu 2,3 milhões para Carlos Santos Silva, que alegadamente seria enviado para o antigo primeiro-ministro como contrapartida pela atribuição de contratos ao Grupo Lena para a construção de casas sociais na Venezuela.
“Em que momento o Governo português tomou conhecimento de que na Venezuela havia um projeto casas sociais? A resposta é fevereiro de 2008. Em que ano é que eu fui à Venezuela? Em maio de 2008″, garante, avançando ainda que nem nas suas notas das reuniões constavam informações sobre as casas.
O arguido assumiu que os vários governos que sucederam o seu mantiveram uma relação económica com a Venezuela, nomeadamente no âmbito da construção das casas sociais.
“Por que razão no meu Governo essa atitude era criminosa e, quando se trata do governo de Paulo Portas e Augusto Santos Silva, é apenas diplomacia económica“, questionou, garantindo que não teve “qualquer influência” na decisão de a empresa Lena ter sido convidada a ir a Venezuela no âmbito dos projetos relacionados com a construção das casas sociais.
O que está em causa na Operação Marquês?
José Sócrates e os restantes 20 arguidos da Operação Marquês começaram a ser julgados no Campus de Justiça, mais de uma década depois de se ter conhecido o processo que acusa um ex-primeiro-ministro de corrupção.
Após decisões instrutórias, confirmações de recursos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, extinções de sociedades acusadas pelo Ministério Público (MP) e prescrições, a acusação inicial do Ministério Público já perdeu sete arguidos, dos 28 iniciais.
O principal arguido, José Sócrates, inicialmente acusado de 31 crimes, vai responder por 22, entre os quais três de corrupção passiva de titular de cargo político, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal qualificada.
O amigo do antigo primeiro-ministro e empresário Carlos Santos Silva é o arguido com mais crimes imputados pela acusação do Ministério Público, respondendo por 23 crimes, contra os 33 iniciais, entre eles um crime de corrupção passiva de titular de cargo político, um de corrupção ativa, 14 de branqueamento de capitais e sete de fraude fiscal qualificada.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
No quinto dia de julgamento, Sócrates acusa governos de Costa e Passos Coelho de “covardia” no TGV
{{ noCommentsLabel }}