

A Lei n.º 93/2021 (whistleblowing) e a protecção dos denunciantes : do âmbito alargado de empresas obrigadas às soluções de inteligência artificial
As entidades têm que se preparar, rapidamente, para estas (e outras) novas exigências. Uma das formas (soluções) poderá passar por soluções de IA.
A Lei n.º 93/2021, que transpõe a ’Diretiva de Whistleblowing’ (Diretiva (UE) 2019/1937 relativa à proteção dos denunciantes) para a ordem jurídica nacional, vem estabelecer um novo regime geral de proteção de denunciantes de infrações, mas insere-se num esforço mais lato de combate à criminalidade económica e estipula um posicionamento e metodologia concreta de implementação de uma estratégia (também nacional) de anticorrupção. Para lá do que podem ser considerações da oportunidade deste movimento, pretende-se, sobretudo, um contributo estrutural, para além da cosmética de um qualquer vector hiperlegislativo, que possa ser entendido como um passo na sedimentação de uma cultura de integridade, transparência e de imposição (natural) de prerrogativas e preocupações de compliance empresarial.
Esta Lei do Whistleblowing inserindo-se, assim, num espectro mais lato e estabelecendo pontes lógicas de contacto com outros regimes “sectoriais”, nomeadamente com o regime da prevenção de branqueamento de capitais e com o novíssimo regime geral de prevenção da corrupção, coloca desafios concretos: é necessário que se pugne por uma aplicação harmoniosa de todas estas sandboxes legais, fixando objectivos macro comuns, garantindo uma lógica de operacionalidade e eficácia real, evitando-se, assim, qualquer abordagem compartimentada que possa comprometer o esforço de implementação das redes legais mencionadas, especialmente o desta Lei 93/2021.
A pedra de toque, assumido desiderato do legislador, é, por isso, simultaneamente preocupante e desafiante: é que esta nova lei aplica-se às empresas (quer do setor público quer do setor privado) com mais de 50 (cinquenta) trabalhadores1 que devem, agora, adoptar canais de denúncia internos2,3 adequados e proporcionais à sua área e âmbito de actividade (num esquisso de reminiscência de uma óptica de gestão de risco), que permitam a apresentação e tramitação de denúncias, garantindo a exaustividade, a integridade, e, claro, a confidencialidade de todo o processo.
Esta Lei aplica-se, portanto, a empresas e respectivas pessoas que estão dentro dessas organizações e denunciam crimes ou quaisquer violações dos seus direitos dessas mesmas organizações, publicas ou privadas, sendo consideradas todas as pessoas que trabalham numa organização pública ou privada, ou que com elas contactam profissionalmente, e que estão, por vezes, numa posição privilegiada para tomar conhecimento de ameaças ou de lesões efetivas que surgem no contexto dessas organizações mas que estão igualmente expostas a retaliações, com incidência na sua situação laboral, o que constitui um importante factor de inibição e de injustiça, pelo que, evidente fica que estas pessoas carecem de proteção4.
Tendo em conta a miscigenação e heterogeneidade das entidades agora obrigadas a estas exigências de protecção da identidade ou do anonimato do denunciante – juridicamente complexas – e tendo em conta a panóplia temática sobre que podem versar as denúncias5, existe a necessidade premente das entidades se prepararem nos vários níveis jurídicos, com especial relevância para as exigências desta nova lei numa óptica de abordagem de direito laboral e, claro, de direito penal e sancionatório (entre outros campos jurídicos que terão que ser também ser necessariamente reforçados de um ponto de vista de acompanhamento integral e pleno dos interesses das entidades obrigadas).
De um ponto de vista de direito laboral, é especialmente importante considerar dois pólos: por um lado, aquilo que é uma esfera de medidas de protecção dos denunciantes que é definido pela própria Lei, como uma âncora operacional de todo o processo de denúncias5. Por outro lado, considerar aquilo que é um conceito lato de represálias7 que sublinha a necessidade daquela efectiva protecção e que estipula uma presunção importante: toda e qualquer sanção disciplinar aplicada ao denunciante até dois anos após a denúncia ou divulgação pública presume-se abusiva, parecendo haver aquilo que é um dever de comply or adequately explain para as entidades obrigadas que apliquem uma sanção naquele período específico e que também necessita de preparação e acompanhamento jurídico.
De um ponto de vista de direito sancionatório, cabe ainda sublinhar que a não adopção de mecanismos de compliance e, consequentemente, a verificação de violações às obrigações presentes nesta Lei podem consubstanciar-se naquilo que são contraordenações com coimas pesadas, que podem atingir o máximo de €250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros)8, que, tendo em conta o âmbito alargado de entidades obrigadas (relembramos o critério de 50 ou mais trabalhadores) podem ditar a subsistência ou fragilidade económica futura dessas entidades.
Do exposto fica uma certeza: as entidades têm que se preparar, rapidamente, para estas (e outras) novas exigências. Uma das formas (soluções) poderá passar por soluções de IA, aplicadas também a esta obrigação de criação de canais de denúncias, sendo que o futuro (jurídico) é também densificado pela necessidade de antecipar a convivência num mundo onde as fronteiras entre a realidade e o digital começam, a ser mais dúcteis e maleáveis. E as soluções jurídicas, cum grano salis, devem acompanhar esse caminho. No caso da Lei 93/2021, passos importantes têm sido dados no sentido desses canais de denúncia serem coadjuvados (na sua construção, conceptualização e operacionalização) por mecanismos de IA: garantindo a eficácia e celeridade de todo o processo, assegurando a confidencialidade de toda a tramitação e acompanhamento do processo. Numa ideia, não retirando o lado humano do processo, como alma de execução, mas possibilitando a adequação de todo o interface às precisas características da entidade concretamente obrigada, com especial cuidado para na protecção dos trabalhadores.
1 – Embora a Lei em causa refira, expressamente, o conceito de “trabalhadores” no artigo 9.º, a verdade é que, nas passagens subsequentes, acaba o instrumento legislativo em causa por referir outros conceitos próximos mas não totalmente coincidentes – como é o caso de “pessoas dentro de uma organização ou que com elas contactem profissionalmente”. Tal falta de rigor pode levantar alguns problemas de definição do âmbito subjetivo da Lei, sendo certo que, naquele último conceito, podem até estar incluídos, numa visão mais lata, a figura dos prestadores de serviços.
2 – Os canais internos de denúncia têm de conter as seguintes características: a) têm de garantir a apresentação e o seguimento seguros de denúncias, a fim de garantir a exaustividade, integridade e conservação da denúncia; b) têm de assegurar a confidencialidade da identidade ou o anonimato dos denunciantes e a confidencialidade da identidade de terceiros mencionados na denúncia; e c) têm de impedir o acesso de pessoas não autorizadas. Estas denúncias poder-se-ão fazer por escrito, verbalmente ou de ambas as formas.
3 – A utilização de canais de denúncias externos, está subordinada às seguintes ocorrências: a) não exista canal de denúncia interna; b) o canal de denúncia interna admita apenas a apresentação de denúncias por trabalhadores, não o sendo o denunciante; c) tenha motivos razoáveis para crer que a infração não pode ser eficazmente conhecida ou resolvida a nível interno ou que existe risco de retaliação; d) tenha inicialmente apresentado uma denúncia interna sem que lhe tenham sido comunicadas as medidas previstas ou adotadas na sequência da denúncia nos prazos previstos na presente lei ; ou e) a infração constitua crime ou contraordenação punível com coima superior a 50 000 €.
4 –Vide n.º 2 do art. 5.º da Lei n.º 93/2021.
5 – As infracções podem versar sobre as seguintes temáticas: a) contratação pública; b) mercados financeiros e prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo; c) segurança dos alimentos para consumo humano e animal, saúde animal e bem-estar animal; d) saúde pública; e) defesa do consumidor; f) proteção da privacidade e dos dados pessoais e segurança da rede e dos sistemas de informação; entre outras matérias elencados no artigo relativo ao âmbito de aplicação da presente lei.
6 – Quanto às medidas de proteção do denunciante, a lei estabelece, as seguintes garantias: a) Confidencialidade da identidade do denunciante, que só poderá ser revelada por força de uma obrigação legal ou decisão judicial; b) sb de retaliação contra o denunciante, incluindo, para o efeito, a inversão do ónus da prova e a presunção de que determinados atos, como sejam alterações de condições de trabalho ou a aplicação de uma sanção disciplinar, quando praticados até dois anos após a denúncia ou a divulgação pública, são motivados pela denúncia ou divulgação pública; c) Proteção jurídica nos termos gerais, como a proteção para testemunhas em processo penal; e d) Não aplicação de responsabilidade disciplinar, civil, contraordenacional ou criminal nos casos de denúncia ou divulgação pública de infrações feitas de acordo com os requisitos impostos pela lei.
7 – Considera-se retaliativo qualquer ato ou omissão que, direta ou indiretamente, em contexto profissional e motivado pela denúncia, seja apto a causar ou cause efetivamente danos patrimoniais ou não patrimoniais ao denunciante – as ameaças ou tentativas são igualmente consideradas como atos de retaliação – a prática de atos de retaliação dita a obrigação de indemnização do denunciante.
8 – A responsabilização a essas violações é efetivada sobre a forma de contraordenação, a cabo do Mecanismo Nacional Anticorrupção, balizando as contraordenações nos seguintes termos: entre € 1.000 a € 25.000 (pessoas singulares) ou € 10.000 a € 250.000 (pessoas coletivas), em caso de contraordenação muito grave, respetivamente: a) impedir a apresentação ou não dar seguimento à denúncia; b) prática de atos retaliatórios; c) violação do dever de confidencialidade; e) comunicação ou divulgação pública de informações falsas. Entre € 500 a € 12.500 (pessoas singulares) ou de € 1.000 a € 125.000 (pessoas coletivas), em caso de contraordenação grave, nomeadamente: a) não dispor de canal de denúncia interno ou dispor de um canal interno sem garantias de exaustividade, integridade ou conservação de denúncias ou de confidencialidade da identidade ou anonimato dos denunciantes ou de terceiros mencionados na denúncia, ou sem regras que impeçam o acesso a pessoas não autorizadas; b) não comunicação ao denunciante do resultado da análise da denúncia, se este a tiver requerido; c) não dar formação aos funcionários responsáveis pelo tratamento de denúncias; d) não registar ou não conservar a denúncia recebida pelo período mínimo de cinco anos ou durante a pendência de processos judiciais ou administrativos.
Nota: Os autores escrevem ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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