Tudo começou com os “cheques por debaixo da porta”. A ascensão e a queda de Rendeiro

Ascendeu e caiu com o banco que fundou. Não aceitou a justiça portuguesa e fugiu para a África do Sul. Detido desde dezembro, Rendeiro foi encontrado morto esta sexta-feira na sua cela.

Em 2006, para festejar o 10.º aniversário, o banco fundado por João Rendeiro ofereceu um relógio a cada um dos seus mais de 100 trabalhadores, assinalando que “o tempo é um elemento fundamental das nossas vidas”.

Por esta altura, o negócio corria bem ao BPP, com o ex-banqueiro a falar num “sonho que se tornou uma magnífica realidade”, como demonstrava o crescimento de 30% dos lucros da instituição naquele ano, segundo escrevia ele mesmo no relatório e contas.

O tempo e a realidade chegaram drasticamente ao fim para João Rendeiro, aos 70 anos. Foi encontrado esta sexta-feira sem vida numa prisão na África do Sul, onde se encontrava detido desde dezembro do ano passado, depois de uma incrível fuga da Justiça portuguesa que já o havia condenado (juntamente com outros antigos responsáveis do banco) por vários crimes. Estava preso e a aguardar por um desfecho do pedido de extradição para Portugal.

João Manuel Oliveira Rendeiro cresceu em Campo de Ourique, na capital portuguesa, embora a sua família fosse natural da região de Aveiro. Ia fazer 71 anos no próximo dia 22 de maio. Era filho de um sapateiro (João Augusto da Silva Rendeiro), enquanto a mãe, Joana Marques Gonçalves Oliveira, se ocupava da gestão dos arrendamentos dos imóveis que a família comprava com as suas poupanças.

Com pais empreendedores, também o filho Rendeiro se aventurou pelo mundo negócios como um verdadeiro self made man — como ele se descrevia -, depois de se ter formado em Economia no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e tornado doutor em Economia na Universidade de Sussex, no Reino Unido.

Foi no início dos anos 90 que João Rendeiro começou a fazer a sua fortuna. Vendeu o fundo de investimento Gestifundo — de tanto sucesso ao ponto de, conforme dizia, as pessoas atirarem “cheques por debaixo da porta” para o subscrever — ao Banco Totta, por 15 milhões de euros, dinheiro que ajudaria a fundar o que ficou conhecido como o “banco dos ricos”, em 1996. Esse sonho concretizou-se com a compra da Incofina ao BCP, juntamente com mais alguns investidores.

Entre os acionistas do “sonho” BPP estavam nomes conhecidos como Francisco Balsemão, Joe Berardo, Stefano Saviotti, a família Vaz Guedes (dona da Somague) e a família Serrenho (dona das tintas CIN).

Antes, entre a venda do fundo e a fundação do BPP, Rendeiro trabalhou no Totta e deu simultaneamente aulas na universidade, tendo sido nas lides académicas que daria origem a outro negócio: lançou a marca de águas gaseificada Frize, que acabou por ser vendida à Compal.

Ascensão e queda

Em 10 anos, o ativo do BPP passou dos 100 milhões de euros para os 1,6 mil milhões, refletindo a forte expansão internacional do banco.

Contudo, em plena crise financeira mundial, a instituição acabou por entrar em rotura. Com problemas de liquidez, o Banco de Portugal interveio no banco em dezembro de 2008 ao nomear uma equipa de gestores liderada por Fernando Adão da Fonseca para encontrar uma saída para uma instituição incapaz de pagar aos seus clientes. Recorreu-se a um empréstimo de 450 milhões com garantias do Estado já com Rendeiro fora da administração do banco. Mas o destino final acabaria por ser mesmo a falência, decretada em 2010.

Rendeiro sempre teve muitas dúvidas em relação a este processo. Chegou mesmo a falar numa “aliança político-financeira” entre José Sócrates (primeiro-ministro na altura) e Ricardo Salgado (presidente do BES) com vista ao “controlo do sistema financeiro português”. “O BPP estava a crescer de uma maneira muito rápida, estava a pisar os calos aos grandes bancos” na área do private banking, escreveu no seu último livro “Em Defesa da Honra – Toda a verdade sobre o Banco Privado”.

Também em relação aos lesados ele tem uma opinião divergente: diz que não há clientes lesados. 12 anos depois de decretada a falência, são 6.000 mil os credores do banco que reclamam 1.600 milhões de euros. Dificilmente vão recuperar esse dinheiro, tendo em conta que a massa falida só conta com um património de 700 milhões (que incluirá a coleção de obras de arte Ellipse). 3.000 são clientes do produto “Retorno Absoluto”, um produto em que o banco garantia capital e remuneração, como se fosse um depósito. Muitos recuperaram, mas nem todos recuperaram tudo.

Segundo Rendeiro, a linha de empréstimo de 450 milhões de euros com garantia pública concedida ao BPP já depois da sua saída serviu precisamente para pagar os depósitos a particulares e a institucionais. “Só não recebeu os seus depósitos quem não quis”. Em relação às perdas registadas nos veículos financeiros, Rendeiro considerava que quem investe em bolsa ganha e perde. “Olhe, um deles fui eu”, admitiu. Terá perdido quatro milhões de euros.

Fuga após condenações

Em setembro do ano passado, Rendeiro protagonizou novo choque em Portugal: fugiu de Portugal para parte incerta (a polícia descobriu pouco tempo depois que estava na África do Sul, como havia confesso a sua mulher, Maria de Jesus, após ter sido detida em Portugal) para evitar cumprir a pena de cinco anos de prisão num processo que já tinha transitado em julgado, sem hipótese de recurso. “Sinto-me injustiçado pela justiça do meu país”, escreveu no seu blog na altura.

O tribunal deu como provado que retirou dinheiro do banco, juntamente com os outros administradores, Fezas Vital, Paulo Guichard e Fernando Lima, num total de 31,28 milhões de euros.

Noutros dois processos (em que estava condenado a 10 anos de prisão por fraude fiscal e a três anos e seis meses por burla qualificada) as sentenças ainda não tinham transitado em julgado, mas as chances não jogavam a favor dele.

Enquanto foragido da Justiça portuguesa, Rendeiro chegou a dar uma entrevista à CNN Portugal em que dizia que fazia uma vida “perfeitamente normal, tal como fazia em Lisboa ou Cascais”, com 4 mil ou 5 mil euros por mês. Morou durante algum tempo “na zona mais rica de Joanesburgo”, que já conhecia muito bem dos tempos do BPP. Quando foi apanhado pelas autoridades sul-africanas, a 11 de dezembro, estava ainda a acordar num hotel de luxo junto à praia.

Desde então procurou evitar a extradição para Portugal na prisão de Westville, na África do Sul.

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