Em defesa da nacionalidade portuguesa dos descendentes dos judeus sefarditas

  • Afonso Leitão
  • 5 Julho 2022

Seria desejável que esta matéria fosse objeto de análise por parte do Tribunal Constitucional de modo a garantir a aplicação da lei e a salvaguarda dos direitos dos requerentes de pedidos de cidadania

O ano de 2013 ficou marcado pela aprovação, por parte da Assembleia da República, da Lei Orgânica n.º 1/2013, de 29 de julho, que procedeu à alteração da Lei da Nacionalidade (doravante, LN), na qual foi introduzida a possibilidade de conceder a nacionalidade portuguesa, por naturalização, a descendentes de judeus sefarditas (conforme previsto no atual artigo 7.º, n.º 6 da LN). Esta matéria veio a ser objeto de regulamentação mais detalhada com o aditamento do artigo 24.º-A ao Regulamento da Nacionalidade, materializada através do Decreto-Lei n.º 30-A/2015, de 27 de fevereiro.

A introdução deste novo regime de aquisição da nacionalidade portuguesa veio cumprir o objetivo de aprovar, no ordenamento jurídico português, uma Lei de Reparação Histórica, em face da ordem de expulsão, durante o reinado de D. Manuel I, aplicada aos judeus que estavam em Portugal, em 1496.

No ano de 2020, a LN foi objeto de discussão legislativa na Assembleia da República. No âmbito desse processo legislativo, apesar de não se ter procedido a uma alteração legislativa direta ao citado artigo 7.º, n.º 6 da LN, a verdade é que o Parlamento aprovou uma alteração legislativa à LN, através da Lei Orgânica n.º 2/2020, de 10 de novembro. Esta Lei Orgânica veio estabelecer que, em sede de regulamentação a ser aprovada pelo Governo, o artigo 24.º-A do Regulamento deveria ser alterado no sentido de “garantir, no momento do pedido, o cumprimento efetivo de requisitos objetivos comprovados de ligação a Portugal”.

No seguimento do percurso legislativo já traçado, o Governo aprovou uma alteração ao Regulamento da Nacionalidade, através do Decreto-Lei n.º 26/2022, de 18 de março, no qual alterou o regime aplicável à instrução dos processos de nacionalidade de estrangeiros que sejam descendentes de judeus sefarditas portugueses.

Procedendo a uma breve análise da alteração efetuada ao artigo 24.º-A do Regulamento da Nacionalidade, é possível identificar três aspetos que introduzem mudanças estruturais ao regime anterior. De acordo com a nova redação, será exigida a apresentação de uma certidão comprovativa (i) “da titularidade, transmitida mortis causa, de direitos reais sobre imóveis sitos em Portugal, de outros direitos pessoais de gozo ou de participações sociais em sociedades comerciais ou cooperativas sediadas em Portugal”, ou (ii) de “deslocações regulares ao longo da vida do requerente a Portugal”, sendo que se exige (iii) “que tais factos demonstrem uma ligação efetiva e duradoura a Portugal”.

No plano jurídico-constitucional e na vertente respeitante à técnica legislativa, estes três aspetos são suscetíveis da mais veemente crítica.

Em primeiro lugar, não é clara e compreensível qual terá sido a intenção do Governo perante a exigência dirigida aos requerentes da nacionalidade portuguesa para que demonstrem ter herdado um imóvel ou um direito pessoal de gozo. Na realidade, constitui um facto notório que muitos dos judeus expulsos de Portugal viram os seus bens serem confiscados decorrendo deste facto, pois, a impossibilidade lógica de terem herdado qualquer tipo de bem. É por esta razão que deveremos questionar: como é que um descendente de um cidadão judeu sefardita demonstra que um bem foi herdado por um antepassado seu, se esse antepassado deixou de ser proprietário do referido bem em virtude da expropriação do seu património? Não existe uma resposta clarividente e que fundamente esta exigência.

Em segundo lugar, no que concerne à exigência de demonstração da realização de deslocações regulares ao longo da sua vida, impõem-se as seguintes questões: qual o critério quantitativo que está subjacente à contagem das referidas deslocações regulares? Como se afere o número de viagens necessárias para que as mesmas sejam consideradas como “regulares”? Uma vez mais, não se encontram esclarecidas estas questões, nem se vislumbram respostas concretas às mesmas.

Importa salientar que os novos critérios supra mencionados não encontram fundamento, nem correspondência substancial na LN, verificando-se uma oposição clara e inequívoca entre os critérios legais estabelecidos na LN e o novo regime consagrado no Regulamento da Nacionalidade que norteará a instrução dos processos de nacionalidade de descendentes de judeus sefarditas.

De um ponto de vista jurídico-constitucional, é de apontar a circunstância de ter sido aprovada uma regulamentação, através de Decreto-Lei do Governo, de forma apressada e pouco clara, que contraria a letra e o espírito de uma Lei de Reparação Histórica cujos critérios objetivos de ligação a Portugal não podem ser tacitamente alterados ou revogados pelo Governo.

No que concerne à matéria da hierarquia das normas, um Decreto-Lei, que pretenda regulamentar uma Lei emanada pela Assembleia da República, não pode alterar nem derrogar essa mesma Lei. Ora, o que se observa e que decorre do exposto é que, tacitamente, o Decreto-Lei n.º 26/2022 veio alterar os critérios já fixados pela Lei, o que não se afigura constitucionalmente admissível.

Assim, pelo exposto, face a este cenário, seria desejável que esta matéria fosse objeto de análise por parte do Tribunal Constitucional, de modo a garantir a aplicação da lei e a salvaguarda dos direitos dos requerentes de pedidos de cidadania portuguesa.

  • Afonso Leitão
  • Advogado

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