BCE sem juros negativos e Itália sem Draghi. Qual o impacto para Portugal?
A crise política num dos maiores e mais vulneráveis países do euro e o fim das taxas negativas do BCE vieram abalar ainda mais as expectativas para os próximos meses.
Um dia depois da crise política em Itália ter vindo colocar pressão adicional sobre os juros da dívida pública, arrastando outros países, o Banco Central Europeu (BCE) juntou-se à luta global contra a inflação com uma subida de 50 pontos base que põe fim a oito anos de juros negativos. Novo contexto deverá significar custos mais altos para o financiamento de Portugal, mas o remédio anticrise aprovado pela autoridade monetária deverá evitar males maiores.
Ao fim de 11 anos o BCE voltou a subir juros. Um novo recorde da taxa de inflação homóloga na Zona Euro em junho, de 8,6%, foi determinante para a decisão consensual de elevar as taxas de referência em 50 e não 25 pontos base como tinha indicado em junho, com a taxa de depósito a subir para 0%, onde não estava desde 11 de junho de 2014.
As taxas de rentabilidade da dívida pública galgaram de imediato no mercado. As obrigações a 10 anos da Alemanha subiram cerca de 12 pontos base para 1,381%, as de Portugal e Espanha cerca de 13 pontos base (2,527% e 2,613%) e as de Itália uns mais amplos 27 pontos base (3,639%). As taxas acabaram, no entanto, por aliviar ou mesmo descer, com a expectativa de que a fasquia final não será muito diferente da que já era esperada, apesar deste primeiro movimento mais agressivo por parte do BCE. Um movimento que é o primeiro de vários.
A presidente do banco central, Christine Lagarde, avisou que a “inflação continuará indesejavelmente alta durante algum tempo“, devido à energia, aos produtos alimentares e às pressões que estes exercem sobre a cadeia de preços. A dimensão das próximas subidas dos juros estará, no entanto, dependente dos dados económicos.
Mas o que significa este contexto para Portugal, que no final do primeiro trimestre tinha uma dívida pública de 127% do PIB (estava em 119% antes da pandemia), uma das mais elevadas do bloco da moeda única?
“A decisão de subida das 3 taxas de referência do banco central europeu em 50 pontos base, ou 0,50%, vai contribuir para aumentar os custos de financiamento de todos os agentes económicos da zona euro. Os novos financiamentos e os financiamentos antigos indexados vão sofrer um agravamento no seu custo”, começa por apontar Mário Carvalho Fernandes, chief investment officer do Banco Carregosa. Um efeito que será, no entanto, mais exacerbado em Portugal.
A postura menos acomodatícia que o banco central tem revelado também tem contribuído para um alargamento dos prémios de risco de crédito, o que também contribui para aumentar o custo de financiamento, em particular de economias periféricas como a portuguesa.
“A postura menos acomodatícia que o banco central tem revelado também tem contribuído para um alargamento dos prémios de risco de crédito, o que também contribui para aumentar o custo de financiamento, em particular de economias periféricas como a portuguesa“, considera o responsável.
Filipe Garcia, economista da IMF, alerta que “juros mais altos colocam os mais endividados numa posição mais delicada”, mas destaca o facto de Christine Lagarde ter afirmado na conferência de imprensa que “subir mais depressa não quer dizer subir mais. Ou seja, que a expectativa da taxa final não se tem de alterar devido à decisão de hoje”. “Neste momento, espera-se que o BCE suba a taxa de depósito até aos 1,5% e a taxa de refinanciamento até 2,0%, o que são subidas moderadas”, assinala.
Há economistas que acreditam, no entanto, que o BCE pode ir mais longe. É o caso de Andrew Kenningham, economista-chefe para a Europa da Capital Economics, que vê a taxa de depósito chegar aos 2% no próximo ano, segundo uma nota divulgada na quinta-feira.
Neste cenário, importa retirar Portugal da zona de perigo, algo que já vinha a ser sublinhado pelo anterior ministro das Finanças, João Leão, e manteve-se com Fernando Medida. “Queremos e vamos conseguir retirar Portugal do grupo das economias com maior dívida pública na Europa“, afirmou no debate sobre o Programa de Estabilidade, em abril. O documento traça como objetivo colocar o rácio em 101,9% do PIB em 2024, bem abaixo de Itália, Bélgica, Espanha e França.
O Orçamento do Estado para 2022 mantém a trajetória de consolidação orçamental iniciado no ano anterior, com um défice de 1,9% do PIB – a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) do Parlamento antecipa que seja ainda mais baixo – e uma dívida pública de 120,7%.
A tarefa poderá, no entanto, ser mais difícil em 2023. “Este ano será muito benigno em termos orçamentais devido ao crescimento económico, menor necessidade de pagar prestações sociais e porque a inflação permite angariar mais impostos, num cenário de juros ainda baixos. Já o ano que vem poderá ser mais desafiante”, considera o economista da IMF. O custo médio da nova dívida emitida já subiu de 0,6% em 2021 para 1,3% este ano, segundo o IGCP.
Ainda que os detalhes da nova ferramenta anunciada pelo BCE (o TPI) sejam escassos, parece haver o comprometimento em não deixar os “spreads” alargarem.
A subida das taxas pelo BCE foi acompanhada da aprovação do Instrumento de Proteção da Transmissão (ITP), através do qual irá comprar obrigações dos países que venham a ficar sob pressão dos investidores, com um alargamento significativo da diferença (spread) em relação os juros exigidos à Alemanha. Uma medida que, para Filipe Garcia, trará alguma proteção. “Ainda que os detalhes sejam escassos, parece haver o comprometimento do BCE em não deixar os spreads alargarem“, realça o economista.
Andrew Kenningham considera que “a determinada altura o Banco Central Europeu terá de recorrer ao novo programa de compra de ativos para evitar uma nova crise da Zona Euro“. Apesar da votação unânime do conselho de governadores para a criação do ITP, o economista “suspeita que haverá divisões” sobre quando usá-lo. Os países terão de cumprir várias condições, como o respeito pelas regras orçamentais da UE, a ausência de desequilíbrios macroeconómicos graves, a garantia de sustentabilidade da dívida pública ou o cumprimento das políticas acordadas no PRR.
Crise política sem crise financeira?
Um dos países que poderá vir a necessitar do remédio anticrise é a Itália. O Presidente, Sergio Mattarella, anunciou na quinta-feira a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições para 25 de setembro, depois de ter recebido novo pedido de demissão do primeiro-ministro. Mario Draghi ainda tentou um segundo voto de confiança no Senado, mas não teve o apoio de três partidos que faziam parte da coligação de unidade nacional: o Movimento Cinco Estrelas de Giuseppe Conte, a Liga de Matteo Salvini e o Forza Italia de Silvio Berlusconi.
A crise política acontece num momento delicado, marcado pela inflação, uma economia em forte travagem e a possibilidade de um corte total do gás russo de que a Itália é muito dependente. Período que terá de ser enfrentado com um Governo em gestão durante os próximos meses e por isso limitado na sua capacidade de ação.
Filipe Garcia assinala que a situação política e orçamental portuguesa é muito distinta. “É verdade que os países mais endividados tendem a ser analisados em conjunto no que às dívidas soberanas diz respeito, o que faz sentido. No entanto, a situação política italiana contrasta com a de Portugal, onde existe uma maioria absoluta“, afirma.
“Mesmo em termos orçamentais, este ano será muito mais positivo para Portugal. Nos últimos meses temos verificado que a evolução da dívida soberana portuguesa está muito mais correlacionada com a de Espanha do que com a de Itália“, observa também. A diferença dos juros dos dois países ibéricos para a Alemanha ronda os 120 pontos base na dívida a dez anos, enquanto no país transalpino está em 224 pontos. Ainda assim, o economista da IMF acredita que Portugal não está imune: “É justo dizer que um mau desempenho da dívida italiana tenderá a contaminar a portuguesa, mas com um impacto consideravelmente menor”.
“Havendo arbitragem entre os preços dos diferentes preços no mercado, os juros da dívida dos países periféricos tende a movimentar-se na mesma direção e, por essa via, é possível que um aumento dos juros italianos se possa evidenciar também no nível dos juros das obrigações portuguesas“, considera também o chief investment officer do Banco Carregosa.
A sustentabilidade a longo prazo da dívida pública de Itália, de quase 150% do PIB, está longe de estar garantida. (…) Por enquanto, temos de nos preparar para crises perturbadoras de ruído, mas não para uma genuína crise do Euro 2.0.
“Contudo, é importante realçar que se trata de um risco específico da economia italiana, pelo que os impactos diretos devem ser sentidos primordialmente nesse mercado, em particular após o compromisso do Banco Central Europeu em relação à mitigação do risco de fragmentação da zona euro”, acrescenta Mário Carvalho Fernandes.
“A julgar por alguns fundamentais de longo prazo, a Itália está lentamente a tornar-se um acidente à espera de acontecer“, aponta Holger Schmieding, economista-chefe do Berenberg Bank, num comentário enviado a clientes. Schmieding salienta três problemas principais: uma tendência de crescimento real do PIB de apenas 0,5% ao ano, uma “demografia sombria” e a “propensão para o teatro político”.
“A sustentabilidade a longo prazo da dívida pública de Itália, de quase 150% do PIB, está longe de estar garantida. No entanto, o risco de que o potencial acidente aconteça em breve ainda parece ser baixo. Por enquanto, temos que nos preparar para crises perturbadoras de ruído, mas não para uma genuína crise do Euro 2.0“.
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