Regresso ao gás regulado ameaça empresas do mercado livre
A solução encontrada pelo Governo para aliviar os consumidores dos aumentos na fatura do gás pode ditar a saída de empresas do mercado liberalizado.
Face aos preços elevados do gás natural na Europa e aos anúncios de vários comercializadores de que vão aumentar os preços desta energia em outubro – EDP, Goldenergy e Galp confirmaram esses planos –, o Governo decidiu abrir de novo a porta do mercado regulado de gás natural aos consumidores finais em baixa pressão, que até ao momento estava fechada por lei. Esta iniciativa, com o objetivo de aliviar a carteira dos consumidores, tem um reverso: pode levar a que as empresas do mercado livre não tenham condições para continuar a atividade, concordam os especialistas consultados pelo ECO/Capital Verde.
“Este tipo de medidas tende a provocar efeitos indesejáveis. Pode levar, desde logo, a que os comercializadores do mercado livre, caso não consigam aproximar-se do preço do mercado regulado, percam um número significativo de clientes, o que, no limite, poderia desencadear a saída de empresas do mercado livre e desincentivar a entrada de novos operadores”, indica Sara Estima Martins, Sócia da SRS Advogados, no Departamento de Concorrência e União Europeia.
A sócia contratada da Abreu Advogados, Sónia Gemas Donário, atesta que o regresso ao mercado regulado põe “em perigo a manutenção da presença no mercado de alguns comercializadores de energia” e sublinha que o risco recai sobretudo sobre os operadores de menor dimensão. João Confraria, professor auxiliar da Universidade Católica Portuguesa, reforça que pode verificar-se um “impacto imediato nalguns concorrentes” já que estes “podem, ou não, adaptar-se às medidas anunciadas”.
A diminuição de empresas a competirem no mercado regulado e o desincentivo a que novos operadores entrem neste mercado, “no médio/longo prazo, podem acabar por ser contraproducentes e prejudicar a concorrência e os consumidores”, alerta ainda a sócia da SRS Advogados. Confrontadas as empresas energéticas que atuam no setor do gás, apenas a Iberdrola se pronunciou, realçando a mesma desvantagem: “As medidas de controlo dos preços tendem a atuar no curto prazo, muito embora criando desequilíbrios e distorções de médio e longo prazos, com prejuízo frequente para os consumidores”.
A ACEMEL- Associação dos Comercializadores de Energia no Mercado Liberalizado foi contactada, mas não comentou a medida lançada pelo Governo até ao momento do fecho deste artigo.
Apoios e descida do IVA como alternativas
Um auxílio direto aos consumidores, financiado pelo Orçamento de Estado, seria uma alternativa ao regresso ao mercado regulado, aponta João Confraria. No entanto, o professor diz ter dúvidas se os custos que daqui resultassem seriam compensados pelo “dinamismo do mercado e da livre concorrência” nos mercados da energia. “É uma questão em aberto”, assume, alertando que “em qualquer caso, para haver um impacto visível nas famílias, teria consequências significativas na despesa pública, e, provavelmente, sobretudo na dívida pública”. Confraria coloca num plano paralelo os apoios às famílias carenciadas, para os quais defende que deve haver uma adequação das medidas já existentes às atuais condições de mercado.
A Abreu Advogados acrescenta que outros países europeus, como a Áustria, Bélgica, Chipre, República Checa, Itália ou Alemanha, introduziram pacotes energéticos com medidas que incluíram, por exemplo, o aumento dos subsídios de energia para compensar o aumento dos preços do gás e tarifas sociais alargadas, mas também o corte ou redução temporária de impostos, incluindo o IVA. “Em Portugal, também várias entidades têm apelado à redução de impostos nos serviços públicos essenciais de energia e outras medidas, por exemplo, de concessão de subsídios, que tenham menos impacto nos mercados grossista e retalhista da energia”, observa Sónia Gemas Donário.
A extinção do mercado regulado foi decidida por diretiva europeia, que obriga os Estados-membros a fazê-lo até 2025. Portugal criou um regime transitório que permite aos consumidores manterem-se neste mercado, sem possibilitar o seu regresso. Essas restrições são agora levantadas através de uma alteração ao decreto-lei 74 de 2012, que define os regimes de extinção das tarifas reguladas, explicou o Governo, na passada quinta-feira. Esta medida vigorará pelo prazo máximo de 12 meses, a partir de 1 de outubro, e pode abranger até cerca de 1,5 milhões de clientes.
O Governo apresentou a medida depois de a EDP ter anunciado as respetivas faturas do gás natural vão encarecer, em média, 30 euros, durante o último trimestre do ano, e a Galp ter afirmado que também iria aumentar os seus preços – uma intenção que só concretizou esta terça-feira, ao anunciar uma subida média de 8 euros para o escalão mais representativo de clientes. Na segunda-feira desta semana, foi a vez da Goldenergy avisar que vai subir as mesmas faturas, em média, 10 euros – considerando clientes residenciais e pequenos negócios –, uma subida que desce para uma média de seis euros considerados apenas os clientes residenciais.
A diferença de preços entre o mercado regulado e o mercado livre existe, uma vez que neste momento o operador do mercado regulado – a Galp Gás Natural – tem dois contratos de aprovisionamento de longo prazo (take or pay) com a Nigéria, celebrados antes de 2006 e, “no âmbito destes contratos, o custo de fornecimento é mais estável e por conseguinte, no contexto atual, os preços correspondentes são inferiores aos praticados nos mercados de curto prazo, sujeitos às cotações diárias do gás natural nos mercados internacionais”, indica a Entidade Reguladora do Setor Energético, em declarações ao ECO/Capital Verde.
Os preços do mercado regulado também devem subir em outubro, mas numa percentagem de 3,9%, que, nas contas do Governo, compara com o aumento de 150% da EDP, e permite aos consumidores que regressarem ao mercado regulado poupanças na ordem dos 65%.
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