Entusiasmado por “ver a juventude beber vinho”, Pedro Silva Reis critica a fraca “visibilidade” dos vinhos portugueses e a venda a preços “abaixo do limiar do aceitável” nos mercados internacionais.
O presidente da Real Companhia Velha (RCV) lamenta que “o vinho português ainda não [tenha] visibilidade nos principais mercados mundiais” e questiona os méritos da relação qualidade-preço como argumento de venda no exterior. Denuncia o preço do vinho do Porto “abaixo do limiar do aceitável” em alguns mercados e, num ano em que a produção caiu 40%, prefere pensar que “uma má vindima não acaba com uma região”.
Em entrevista ao ECO, Pedro Silva Reis, que lidera há 20 anos aquela que é considerada a mais antiga empresa de vinhos do país, nunca pensou “ver a juventude beber vinho com orgulho e satisfação”. Destaca, por outro lado, o “fascínio” que os consumidores começam a ter por produtores mais pequenos e reclama que a proliferação de marcas, tantas vezes criticada, “é um fenómeno imparável”.
Como encara atualmente o setor do vinho em Portugal?
Com grande otimismo. Acho que o melhor ainda está para vir [para os vinhos portugueses]. Portugal teve uma evolução extraordinária no campo da enologia, da viticultura e no mercado de vinhos. O Douro, em particular, sendo hoje o grande protagonista em termos de imagem no exterior. Nunca pensei nos meus dias ver a juventude a beber vinho com orgulho e satisfação. Na minha geração os jovens não bebiam vinho, mas cerveja e bebidas espirituosas. Hoje vemos jovens de 18, 20, 20 e poucos anos a apreciar vinhos, o vinho a ser consumido em ambientes noturnos, a proliferação do consumo de vinho a copo nos restaurantes, a experimentação, a sofisticação das cartas de vinhos e do mundo sommelier. É uma evolução extraordinária em relação ao que havia quando comecei a trabalhar.
Há 30 ou 40 anos consumia-se mais vinho em Portugal, tínhamos um consumo de 90 litros per capita, mas uma grande parte do consumo era feito por camionistas, nas bermas das estradas, nas paragens das refeições, no mundo agrícola. O vinho fazia parte de um consumo que não era tão saudável e que se retraiu, já com um nível de qualidade distinto. Ou seja, consome-se muito menos vinho, mas melhor.
E quais os problemas e desafios que o setor enfrenta em Portugal?
Temos sido maltratados em termos de fiscalidade. O IVA do vinho nos restaurantes a 13% é uma promessa incumprida pelo nosso primeiro-ministro. Somos um país turístico, de matriz mediterrânica, em que à hotelaria e restauração devia ser dada mais competitividade a nível fiscal. Devia-se olhar para o setor com ‘menos taxas para mais imposto’.
Mas no comparativo com outros produtores de vinho, o que falta para Portugal jogar no campeonato de outros países?
Temos um défice de imagem internacional e temos dificuldade em compreender porquê. Porque a crítica valoriza muito a qualidade dos vinhos, a sua relação qualidade-preço como sendo uma das melhores do mundo. Mas a exportação ainda não disparou, ainda não temos visibilidade nos principais mercados mundiais, como nos EUA, Reino Unido ou na Europa central, ao nível das cartas de vinhos… estamos presentes nas lojas, mas temos uma debilidade no on trade, em comparação com países que conseguiram penetrar. Estamos a estudar como havemos de resolver isso, paulatinamente.
Mas desconfiam que será porquê?
Por causa da imagem do país junto do consumidor. Pode ter um produto de qualidade, mas se na cabeça do consumidor ele não se lembra dele ou não lhe reconhece qualidade, de nada adianta.
O que pode o setor fazer para entrar na mente do consumidor?
Trabalhar o mercado, divulgar, fazer o que temos vindo a fazer. Há quem o faça com menor esforço e consiga alcançar melhores objetivos. Nós estamos em passo lento, mas lá vamos andando.
A proliferação de marcas, que muitas vezes se aponta como exagerada, é uma realidade comum a todos os países produtores. É enorme mesmo no Uruguai, um país pequeníssimo em termos vitícolas e que está a começar a aparecer no mundo. Esse é um fenómeno imparável.
Falou da relação qualidade-preço, que é sempre uma virtude apontada na comparação com outros países produtores. Mas também há quem diga que isso apenas significa que estamos a vender barato. Como pode aumentar o valor?
Com qualidade. Com mudança de posicionamento. Teremos de ser mais ousados. A estratégia de sermos mais baratos se calhar não funciona. Mas para isso também temos de ter um mercado interno sólido, consistente, para nos criar a base. Porque a exportação é sempre um mercado conquistado com avanços e recuos.
O único mercado que é verdadeiramente nosso, onde temos um acesso direto, é o mercado português. Portanto, a competitividade da fileira no mercado português é muito importante. No caso do vinho DOC Douro são dois terços das vendas. Precisamos de uma base sólida aqui para ter lastro e capacidade de investir no estrangeiro. No vinho do Porto, mais de 80% é exportação, mas há uma grande diferença no perfil da comercialização desse produto, que foi sempre de exportação.
Temos marcas a mais em Portugal, estamos demasiados dispersos em temos de produtores e de marcas? Uma maior consolidação pode ajudar nessa afirmação do vinho português no estrangeiro?
A área de vinha é o que é, todo o viticultor tem o direito intrínseco a ter o seu vinho e a sua marca. Essa proliferação, que muitas vezes se aponta como exagerada, é uma realidade comum a todos os países produtores. É enorme mesmo no Uruguai, que é um país pequeníssimo em termos vitícolas e que está a começar a aparecer no mundo. Esse é um fenómeno imparável. Aliás, o Uruguai é um novo ator que por vezes nos envergonha porque chega a determinadas praças e já tem presença, quando Portugal não tem.
E o que é que o vinho do Porto devia fazer de diferente para fazer recrudescer a sua importância em termos de negócio, que tem vindo a cair nos últimos anos?
O Douro tem de se organizar melhor, de pensar na sua estratégia de sustentabilidade. O negócio do vinho do Porto exige um permanente repensar. Somos uma categoria de sucesso no contexto mundial dentro de uma categoria que está a sofrer bastante em termos comerciais, que é o segmento dos vinhos doces fortificados. É um segmento difícil, que está a perder em todo o mundo, e o vinho do Porto tem-se aguentado. Sofreu um pouco nos últimos 20 anos, com pequenos decréscimos, mas tem-se aguentado notavelmente.
O que deve ser feito para evitar uma quebra tão grande?
Temos de ter cuidado com a forma como valorizamos o produto, que em alguns mercados está abaixo do limiar do aceitável. É nefasto para a imagem do vinho do Porto, como um todo. Carece de algumas correções para que, mesmo num ambiente de stress comercial, pelo menos a imagem e a reputação do produto nos ajude a valorizá-lo.
Portugal tem dificuldades em ter marcas fortes e reconhecidas a nível mundial, excetuando algumas do vinho do Porto…
Fazer uma marca mundial hoje já é uma missão impossível, com a segmentação dos mercados. O consumidor começa a ter mais fascínio por pequenos produtores do que por grandes produtores. O setor do vinho é fascinante porque oferece tantas oportunidades a uma empresa minúscula de muito prestígio como a um gigante que tenha uma marca internacional.
O seu reconhecimento pode ser quase identificável aos olhos do consumidor, sem ele se aperceber que a dimensão é absolutamente díspar. E há o mundo da crítica que pode projetar uma pequeníssima produção para o estrelato mundial, num ápice. Há empresas pequeníssimas, que produzem 20 mil garrafas, que têm uma reputação mundial brutal e que são capazes de vender o seu vinho a 1.000 euros, como se fosse um gigante.
Outro problema de que se fala há muitos anos é o da falta de mão-de-obra no Douro.
É um dos grandes desafios da região, quer para a viticultura, quer para o enoturismo. Só tem uma forma de o combater: pagando mais para continuar a atrair pessoas e para as reter. Traz uma inflação muito grande aos custos de produção, mas o Douro tem de ser capaz de os repercutir depois no mercado. É um problema que afeta muitíssimo a nossa atividade.
Falta de mão-de-obra? Só tem uma forma de o combater: pagando mais para continuar a atrair pessoas e para as reter. Traz uma inflação muito grande aos custos de produção, mas o Douro tem de ser capaz de os repercutir depois no mercado.
De que forma é que os impactos das alterações climáticas já são visíveis no Douro?
O clima no Douro tem um histórico cíclico, que pode sobrepor-se às alterações climáticas e confundir-nos entre o que é uma coisa e outra. O Douro dos anos 1920, 1930 e 1940 era extraordinariamente seco; o Douro dos anos 1970, 1980, 1990 era surpreendentemente verde; e agora está a ficar outra vez mais seco. Este ano mudou o paradigma.
As alterações climáticas estão bem patentes na evolução da temperatura média – esse é um dado preocupante. Seca a vinha, mata plantas, afeta as produções e o equilíbrio da planta, afeta a qualidade. Este é um ano atípico. Não sabemos quantos anos a vindima de 2022 vai ficar nos anais do Douro por temperaturas extremas e por dificuldades enormes na vinha, na produção. Será que isso se vai repetir num ciclo curto, num ciclo largo, vai passar a ser todos os anos assim? São perguntas a que ninguém sabe responder.
No caso da Real Companhia Velha, qual foi a quebra de produção?
Supera os 40% em relação ao ano passado. Quando apurarmos os custos, veremos como é que se encaixa isto. Naturalmente, o setor tem stocks para trás, não há um efeito absolutamente imediato dessa proporção. Há aqui um fator de diluição, à medida que as produções vão entrando na comercialização. Mas não augura nada de bom.
Mas teme que este nível se mantenha baixo, que este seja o novo normal?
Não quero acreditar nisso. Na gestão temos de assumir sempre um otimismo, ainda que moderado, e pensar que uma má vindima não acaba com uma região. Já tivemos no passado, faz parte. Na agricultura isso não é tão incomum quanto se possa pensar.
O que podem fazer as empresas?
Há práticas de agricultura que temos de implementar, temos provavelmente de mudar os sistemas de condução da vinha, de reduzir as zonas muito expostas a sol, de proteger as vinhas. Há na ciência da viticultura uma série de respostas que se podem ajustar a um ciclo de clima mais seco. Mas há regiões mais secas e quentes que o Douro, que têm essas práticas. Temos de olhar um bocado à nossa volta e ver que estratégia seguir.
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“Estratégia portuguesa de ter os vinhos mais baratos se calhar não funciona”, diz presidente da Real Companhia Velha
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