Calçado: o velho setor que se fez novo

Com as exportações em 2016 a crescerem 3,3% para perto dos dois mil milhões de euros, o calçado continua a 'calcorrear' caminho. Os Estados Unidos são agora a porta para continuar a internacionalizar.

A atriz Vitória Guerra dá a cara pela campanha da APICCAPS para a indústria mais sexy da Europa.APICCAPS

Quando uma indústria se autointitula “a mais sexy da Europa”, algo mudou. Luís Onofre ou Carlos Santos são hoje a imagem de um setor de calçado que se soube reinventar e assumir-se “sensual” e atrativa. Ambos, ainda que de gerações diferentes, souberem antever o futuro: criaram a sua própria marca, apostaram no estilismo, no design e na criatividade, e hoje vendem sapatos que rondam o valor do salário mínimo nacional: os quinhentos euros. São a fase mais visível de uma indústria que esteve condenada ao fracasso e que hoje é um caso de sucesso que os políticos nacionais — de todos os quadrantes — gostam de enaltecer.

Os números falam por si. O setor do calçado exportou, em 2016, perto de dois mil milhões de euros, um novo máximo histórico que faz esta indústria afirmar-se como uma das que mais contribui para a balança comercial nacional, e está a crescer há sete anos consecutivos. Relativamente a 2015, as exportações da indústria do calçado cresceram 3,2%. E se é verdade que o crescimento não tem o fulgor de outros anos, este ganha especial relevo quando comparado com o de outros produtores mundiais, como é o caso de Itália que terá decrescido 0,9% e de Espanha, cuja queda é de 7,8%.

Do total produzido em Portugal, 94,8% vai para os mercados externos.

Portuguese Soul – Shoes factories

Fortunato Frederico, presidente da APICCAPS (Associação Portuguesa dos Industriais do Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos) e do grupo Kyaia, que detém a marca Fly London, adianta, em declarações ao ECO, que “o ano de 2016 ficou marcado por um novo marco histórico para as exportações de calçado: ficámos muito perto da meta a que nos tínhamos proposto e que eram os dois mil milhões de euros, mas não a alcançámos”.

A justificação parece simples. “Tivemos fatores externos que vieram perturbar as nossas previsões como, por exemplo, a queda do poder de compra na Europa, as sanções à Rússia e Angola. Diria que foram estes os principais fatores”.

2016 ficou marcado por um novo marco histórico para as exportações de calçado: ficámos muito perto da meta a que nos tínhamos proposto e que eram os dois mil milhões de euros, mas não a alcançámos.

Fortunato Frederico

Presidente da APICCAPS e do grupo Kyaia

O presidente da associação do setor enaltece, contudo, o facto de a “indústria estar a crescer há sete anos consecutivos, alguns dos quais com taxas de crescimento a dois dígitos”. Agora, acrescenta: “Estamos numa fase de consolidação”.

Luís Onofre comunga desta visão de Fortunato Frederico, e garante que “o setor está no bom caminho”. “Não sei como será o futuro, mas hoje há um grande respeito pela indústria nacional e pela nossa mão-de-obra”, explica, em entrevista ao ECO.

Onofre, que criou marca própria e que é hoje um dos nomes sonantes do setor diz que “já não somos vistos como os obreiros de luxo de marca”. Criámos as nossas próprias marcas e, mais importante, em Portugal fazemos todo o tipo de sapatos, de homem, senhora, desportivos”.

Não sei como será o futuro, mas hoje há um grande respeito pela indústria nacional e pela nossa mão-de-obra.

Luís Onofre

Empresário

Fortunato Frederico, por seu turno, diz que estes números são a prova de que temos “que rapidamente diminuir o peso da Europa no nosso setor”. A Europa, segundo o empresário, pesa “80% nas nossas exportações e temos que espalhar-nos ainda mais pelo mundo, de modo a que o mercado europeu — que está em crise — passe a representar qualquer coisa como 50% a 60%”.

Moldes de sapatos usados nas fábricas.

Porquê a Europa?

Há vários fatores que justificam que o principal mercado para as exportações de calçado seja a Europa. Desde logo a proximidade, depois a própria União Europeia — com a inexistência de barreiras alfandegárias — e, finalmente, o facto de a Europa ser vista como um mercado com poder de compra e que sabe valorizar o produto.

Portugal há muito que deixou de ser visto como um mercado mão-de-obra barata. A saída para a Ásia de algumas das grandes multinacionais, sobretudo estrangeiras, no início do século XXI, obriga a uma mudança da paradigma na indústria. Para trás ficavam os tempos em que as exportações do setor assentavam na produção subcontratada e nas vendas a essas grandes indústrias. A flexibilização, ao nível do produto e também das encomendas — por mais pequenas que fossem –, e a rapidez de resposta, passaram a ser a “arma” dos industriais nacionais.

A par disto, o mercado europeu valoriza o produto e tem apetência pela componente da moda e do design, as mesmas que Portugal se viu obrigado a introduzir e que fez com que apresente hoje o segundo maior preço médio de exportação, logo atrás da poderosa Itália.

Números do setor do calçado. Fonte: APICCAPSRaquel Sá Martins

Em 2016, o calçado português aumentou a penetração em quase todos os mercados externos, sendo mesmo relevante que as exportações portuguesas de calçado estejam a aumentar desde 2010, para todos os principais mercados do calçado português, com exceção do Reino Unido.

França, Alemanha, Holanda, Espanha e Reino Unido absorvem mais de 70% das exportações nacionais e sendo o mercado francês o que continua a ser o principal cliente dos sapatos portugueses. Portugal vende 416,8 milhões de euros para França, seguida pela Alemanha, com 341 milhões, Holanda com 271 milhões, Espanha com 191 milhões e Reino Unido com 133 milhões.

Indústria do calçado é uma das mais tradicionais em Portugal.

Fortunato Frederico recorda que “França sempre foi um grande consumidor de sapatos portugueses, mas depois há os países nórdicos que são muito fortes a comprar certo e determinado tipo de sapatos, e ainda a Alemanha”.

As fábricas portuguesas não são fábricas para servir o mundo inteiro, cada um tem de arranjar o seu nicho. Desde que tenha uma fábrica que produza 500 a 1.000 pares de sapatos por dia, não tem problemas.

Fortunato Frederico

APICCAPS

À conquista da América e de Trump

Mas como em tudo na vida, há sempre um mas… a grande concentração num mercado como a Europa acarreta riscos e deixa o setor mais vulnerável às crises. E foi por perceber isso que o setor está em “expansão” pelo mundo.

Ainda que as exportações continuem a concentrar-se nos principais mercados europeus, as maiores taxas de crescimento, durante o ano de 2016, foram registadas em mercados não tradicionais do setor e que apresentam maior oportunidade de diversificação. Segundo dados da APICCAPS, a China terá registado um crescimento de 3108%, os Emirados Árabes Unidos de 608%, os Estados Unidos de 461%, a Austrália de 363% e a Polónia de 295%.

Aliás, para o mercado dos Estados Unidos, o setor registou mesmo vendas de 76,6 milhões de euros, um crescimento de quase 14% face a 2015, mas de perto de 450% quando comparado com 2011. Os Estados Unidos são, de resto, o mercado fora da União Europeia para onde Portugal mais exporta.

Para Fortunato Frederico não há dúvida: as alternativas à Europa terão de ser a Ásia e a América do Norte, nomeadamente Estados Unidos e Canadá. “Países onde, de resto, o grupo Kyaia está a sustentar o seu crescimento e que nos dá perspetivas de um futuro mais promissor”.

Para o presidente da associação do setor, “é importante começar a realizar feiras nos Estados Unidos“. E nem a incerteza relacionada com a presidência de Donald Trump o parece demover: “Trump está apenas a estalar com o verniz que estava posto, a globalização tem de ter outras regras, e penso que é isso que Trump quer dizer”.

A questão da Ásia é mais difícil. Para Fortunato Frederico, “quando se fala na Ásia, as pessoas pensam logo na China. E, para entrar nesse mercado, é preciso uma estrutura muito forte: é um mercado apetecível mas muito difícil e onde tudo funciona muito com base na amizade. É mais fácil entrar em mercados como a Tailândia, Coreia do Sul ou Japão”, assegura.

Mercado francês continua a ser o maior comprador de sapatos produzidos em Portugal.

Uma ideia que vem de encontro ao plano estratégico do setor, desenhado para o período de 2014 a 2020, e que adianta que a Ásia é uma boa alternativa ao mercado europeu, mas alerta para a necessidade de Portugal ter de encontrar e explorar nichos de mercado “com elevado poder de compra”.

Já sobre a América Latina, Fortunato Frederico tem uma opinião muito particular: “É um mercado difícil porque ainda não tem a economia a que estamos habituados na Europa. Na Colômbia, por exemplo, não há estruturas e isso torna o processo mais difícil”.

Mas haverá ainda margem para crescer ao nível das exportações? Fortunato Frederico não tem dúvidas.

"As exportações ainda têm margem para crescer, a indústria é que pode não ter margem para produzir.”

Fortunato Frederico

APICCAPS

“Somos um país relativamente pequeno, empregamos cerca de 39 mil pessoas e não podemos ter a ambição de fazermos o que o têxtil fez há uns anos, que foi sobredimensionar-se. Mais do que a quantidade, temos de crescer pela valorização do produto”.

De destacar que Itália continua a ser, dentro da União Europeia, o maior exportador de calçado, com uma quota de 25%, seguida pela Alemanha com 12%. Já Portugal, segundo dados da APICCAPS relativos a 2014, “tem mantido o seu peso relativamente estável nos últimos cinco anos, assumindo-se como o sétimo maior exportador comunitário, com uma quota de 5,5%”.

Exportações Portuguesas de Calçado. Principais Compradores.
Valores em milhares de euros. Dados: APICCAPS
Raquel Sá Martins

Espanha lidera importações

Dados da APICCAPS demonstram que, em 2016, as importações portuguesas de calçado cifraram-se perto dos 598 milhões de euros, um crescimento de 13,14% face a 2015. Entre os principais mercados a que Portugal compra mais sapatos surge Espanha, com 257 milhões de euros, seguida pela Bélgica com 55,3 milhões de euros, a China com 55,1 milhões, a Holanda com 53,6 milhões de euros, França com 51,7 milhões de euros, e Itália, com 47 milhões de euros.

Emprego

A indústria do calçado emprega atualmente mais de 38 mil pessoas (38.661, segundo estimativas da APICCAPS), sendo que a produção anual ultrapassa os 81.000 pares de sapatos. De 2011 a 2016 (os dados de 2016 são ainda estimativas da APICCAPS), o setor criou 4.157 postos de trabalho, sendo que o perfil de qualificação foi também alterado, com as empresas a empregarem cada vez mais mão-de-obra qualificada.

Em termos do número de empresas, a indústria fechou 2016 com 1.473 empresas, menos duas que no ano anterior. Para Fortunato Frederico, o setor começa a sentir falta de mão-de-obra. “Na Kyaia já demos emprego a pessoas com 50 e poucos anos. Até aos 65 anos ainda estão bem para trabalhar, mas gostava de meter jovens porque daí podem fazer-se bons quadros. E o que me preocupa é que, se não aparecerem agora jovens para formarmos daqui a uns anos, não temos bons quadros”.

O presidente do grupo Kyaia diz que “nas grandes cidades ainda vão aparecendo mas no interior já não há. Isto tem a ver com existir menos desemprego mas também com o facto de a taxa de natalidade estar a descer. Sem segurança, as pessoas não têm filhos”.

Made in Portugal

O novo paradigma do setor: deixar de produzir em série para dar resposta a encomendas, por mais pequenas que sejam, implica um trabalho contínuo, quer ao nível da política comercial, quer ao nível da internacionalização. E apesar de Portugal ostentar o segundo preço médio mais caro da indústria, logo atrás de Itália, o “made in Portugal” ainda sente a sombra de Itália.

“A Itália faz sombra ao calçado português não pelo produto em si, mas pela imagem do país. Nós nunca tivemos um Leonardo da Vinci nem um Umberto Eco. No produto, penso que os nossos sapatos estão 10% abaixo do preço de Itália mas, em termos de imagem do país, estaremos muito mais abaixo”, considera Fortunato Frederico.

Quanto ao preço, o presidente da APICCAPS frisa: “No global, a grande diferença resulta da imagem que o país tem. Eventualmente, daqui a uns anos, com o turismo a crescer como esta, a imagem de Portugal melhora, mas isto é um processo lento. Claro que os italianos também têm muita qualidade nos sapatos e inovam muito”.

E em Portugal, é fácil vender sapatos… portugueses? “Penso que os portugueses ainda não valorizam muito o sapato português, valorizam muito mais um sapato italiano. Hoje fazem-se sapatos muito bons em Portugal, mas ainda encontramos muitas marcas espanholas e italianas que gozam de muita reputação entre nós. Mas é um caminho que estamos a trilhar e daqui a meia dúzia de anos…”, refere o empresário.

Daqui a cinco anos gostava de ver o calçado português a ser vendido ao mesmo preço que o calçado italiano. Essa era a minha alegria.

Fortunato Frederico

Presidente da APICCAPS

O regresso das multinacionais

Algumas das multinacionais que outrora deslocalizaram a sua produção de Portugal para a Ásia estão a encetar o movimento contrário. Fortunato Frederico diz que é o “fenómeno da globalização”. “Numa dada altura é bom para as empresas saírem e, a dada altura, pode ser bom regressarem. A insegurança no mundo é um fator importante para esse regresso. Portugal tem uma imagem segura: para além de não existirem fenómenos climatéricos naturais adversos tem estado também a salvo de ataques terroristas, e tudo isso conta e é um fator competitivo para Portugal”.

E o presidente da associação do calçado dá mesmo alguns exemplos. “A ECCO regressou, a Gabor — que é uma grande empresa e muito bem organizada — está a reforçar, a Memphisto está a investir seis milhões em Viana do Castelo para reforçar a sua capacidade produtiva. E outras poderão vir”.

Vantagens do setor do calçado

  • Base industrial diversificada, com capacidade manufatureira reconhecida, assente na flexibilidade e rapidez de resposta
  • Know-how relativo à atuação nos mercado
  • Crescente reputação internacional de Portugal como origem de produtos de moda e design

Riscos do setor do calçado

  • Uma indústria tão exposta internacionalmente tem sempre associado o risco de um abrandamento económico nas economias mais desenvolvidas
  • Volatilidade do preço da matéria-prima e eventual aparecimento de alternativas com melhores performances e menor custo
  • Outros países procuram emular a estratégia de Portugal

(Fonte: Plano estratégico 2014-2020 da APICCAPS)

 

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