Revisão constitucional não rima com rutura constitucional

  • Simão Mendes de Sousa
  • 11 Novembro 2022

Desperdiçar um processo de revisão constitucional a discutir forma de aligeirar restrições a Direitos Fundamentais é ferir de morte o nosso texto Constitucional.

I. Há pré-compreensões que não podemos deixar de lado quando falamos da Constituição, ou de uma eventual revisão Constitucional. Desde logo, não nos podemos esquecer que a Constituição é um texto compromissório, brotando de um conjunto de cedências com vista a vigorar por tempo indeterminado, que se pretende longo. Não nos podemos esquecer, de igual modo, que a Constituição se vai adaptando ao devir do tempo, fruto também da interpretação que se vai fazendo da sua letra, sendo por isso um texto que, apesar de se moldar aos vários momentos históricos, não é imune ao decurso do tempo. Por último, não podemos ignorar que a Constituição é o mais eficiente método de limitação do poder do Estado.

A nossa Constituição necessita, reconhecidamente, de uma revisão de modo a espelhar de forma mais evidente a sociedade em que vivemos, não apagando o tempo histórico em que foi aprovada, nem tão-pouco a ideia material que lhe subjaz. Atendendo à composição da Assembleia da República, a revisão aprovar-se-á pelas cedências que os dois principais partidos com representação parlamentar decidam realizar. À semelhança do Tango, a dança que se fizer entre estes dois partidos, as cedências, mas, acima de tudo, os consensos encontrados entre eles, são essenciais para que o texto responda aos anseios da atualidade e do futuro. É, em tese, o centro político moderado que pode fazer uso dessa moderação na revisão do texto constitucional.

II. Vivemos a ressaca de uma crise histórica – a ideia de uma crise, sempre foi o motor essencial do Direito Público em geral, e do Direito Constitucional em particular – que testou ao limite a Constituição da República Portuguesa. Um pouco por todo o lado, se anotaram os atropelos que da resposta à crise surgiram, mas acima de tudo, se reclamaram inconstitucionalidades, das medidas que foram sendo tomadas. É, por isso, natural que se caia na tentação de aligeirar as exigências da chamada Constituição de emergência.

Se for esse o caminho, assistiremos a um erro histórico. Vejamos: a Constituição de emergência, por definição, visa regular o modo como poderes extraordinários são exercidos os poderes de emergência, no fundo são aquelas normas que especificam a quem pertence o poder de declarar uma emergência e quais os seus poderes, vinculações e limites. Se, a ideia for aligeirar o decretamento de situações excecionais amplificando os poderes executivos de resposta, é uma lógica errada, uma vez que não se vê como não se poderá cair no excesso – constitucionalmente proibido – do exercício de um poder que deve ser tido como excecional.

Mais, os períodos de crise, são aqueles em que a defesa intransigente dos Direitos deve ser mais presente. O problema na resposta pandémica, nunca esteve na Constituição, mas na inércia do Parlamento. O problema nunca residiu na necessidade de decretamento de um estado de exceção para o recurso a determinadas medidas de resposta, mas sim na forma leviana como se extrapolaram regimes administrativos (o chamado Direito Administrativo da Emergência) e se fraudou a Constituição. O problema residiu na impossibilidade dos dois Partidos com maior representação parlamentar terem conseguido encontrar o consenso necessário para o estabelecimento de uma Lei de emergência sanitária que, nos limites Constitucionais, pudesse gizar um sistema que permitisse o respeito pelos Direitos Fundamentais, enquanto protegia os cidadãos dos malefícios de uma pandemia desconhecida, cujos meios de combate e mecanismos de resposta eram amplamente desconhecidos. No fundo, o problema esteve na política, não na Constituição.

III. Não se descortina como se pode aligeirar a proteção que os Direitos fundamentais conferem aos particulares, quando a própria Constituição tem no artigo 16.º, n.º 1 uma cláusula que permite o seu alargamento a Direitos não contidos no catálogo Constitucional, mas decorrentes, nomeadamente, da Carta dos Direitos Fundamentais na União Europeia. Não se descortina, como se ultrapassará o limite material de revisão relativo à eventual redução substancial de direitos, liberdades e garantias, sendo por isso estéril a discussão que assente em permitir o aligeirar das garantias constitucionais nestas matérias.

O mundo encontra-se numa mutação que pode minar o debate acerca de quais as normas que carecem de revisão no nosso texto constitucional e pode perigosamente permitir que, normas decorrentes desse processo atentem de forma grave contra a ideia material de Direito que decorre do texto constitucional. Este é um momento histórico, marcado pela crispação política, pela proliferação de autoritarismos fofinhos e políticas identitárias do bem que atacam, violentamente, o ideal de liberdade e democracia que presidiu à nossa Constituição. A revisão deve centrar-se, sempre, numa lógica personalista da Constituição ao serviço das pessoas e não ao serviço do Estado. Da Constituição que limita o exercício de poder do Estado e amplifica os Direitos, que reconhece novos Direitos e protege os existentes.

A constituição que queremos, pode ser diferente daquela que teremos, mas desperdiçar um processo de revisão constitucional, a discutir forma de aligeirar restrições a Direitos Fundamentais é ferir de morte o nosso texto Constitucional e, contra essa possibilidade, todos seremos poucos.

  • Simão Mendes de Sousa
  • Associado de Direito Público da CMS

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