Costa contra Costa, os dias de confronto

'O Governador' está a agitar os bastidores da política e a economia. Um livro do jornalista Luís Rosa sobre uma década de Carlos Costa que desenterra o passado que poucos querem ver recuperado.

O livro ‘O Governador’ do jornalista Luís Rosa sobre a década de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal está a criar um sismo político no país. Primeiro foi a acusação a António Costa sobre as pressões que terá feito para proteger Isabel dos Santos no BIC, depois o caso Banif e pelo meio histórias da troika que envolvem Durão Barroso e Vítor Constâncio, a falência do BES e o confronto com Mário Centeno no Banco de Portugal. São muitas histórias dentro de um livro, com personagens principais, secundárias e atores de terceira, mas com a força para abalar os bastidores da política, da economia e da alta finança.

Desde o dia em que foi pré-publicado o capítulo sobre o caso das pressões de António Costa, sucederam-se reações, quase todas contra o antigo governador, desde logo do primeiro-ministro e do PS. Várias personalidades surgiram na defesa de António Costa, nomeadamente Centeno e até António Lobo Xavier, advogado e administrador não executivo do BPI, mas há também críticas, como do lado de Luís Marques Mendes, que apresentou o livro e sugeriu que o Ministério Público deveria investigar a resolução do Banif.

Lançamento do livro “O Governador” do jornalista Luís Rosa, com prefácio da presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 15 de novembro de 2022. O livro conta “os bastidores da intervenção da troika e da queda do BES e do Banif, bem como as guerras do antigo governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, com Sócrates, Salgado, Centeno e António Costa”. MIGUELA. LOPES/LUSAMIGUELA. LOPES/LUSA

 

Tudo começou com a pré-publicação de um capítulo do livro “O Governador”, da autoria do jornalista Luís Rosa, no Observador, a 10 de novembro. Nele, citava-se um episódio que remonta a abril de 2016, quando o governador informou Isabel dos Santos, a maior acionista do BIC à data, e Fernando Telles, sócio da filha mais velha do ex-presidente de Angola, que tinham de se afastar do Conselho de Administração do banco, no qual tinham uma participação de 20%. Uma decisão que tinha por objetivo fazer passar aos mercados a certeza de que aquela instituição bancária em nada estava relacionada com os problemas a que estava exposto o BIC Angola.

Isabel dos Santos não aceitou a ideia. Começou por dizer que não havia nada na legislação portuguesa que a impedisse de ser administradora do BIC. E, perante a determinação de Carlos Costa, recorreu, diz o livro, ao primeiro-ministro português, que terá defendido a posição da filha do ex-presidente de Angola. O primeiro-ministro terá dito ao então governador que “não se pode tratar mal a filha do Presidente de um país amigo de Portugal”, acusa Carlos Costa.

Perante estas acusações, António Costa não tardou a reagir e, à entrada para a reunião da Comissão Política do PS, considerou as declarações do ex-governador do Banco de Portugal “ofensivas” da sua honra, bom nome e consideração. O primeiro-ministro avançou ainda que contactou Carlos Costa e que, uma vez que este “não se retratou” nem “pediu desculpas”, constituiu como advogado “Manuel Magalhães e Silva, que adotará os procedimentos adequados contra o doutor Carlos Costa” em sede judicial.

O primeiro-ministro decidiu, assim, processar o ex-governador, sendo que o advogado referido vai “adotar os procedimentos legais adequados contra o Dr. Carlos Costa, tendo em conta as declarações proferidas que são ofensivas do seu bom nome, honra e consideração”, revelou fonte oficial do gabinete do primeiro-ministro ao ECO.

Ao mesmo tempo, na reunião extraordinária do Conselho Nacional do PSD, também surgiram reações da oposição. António Leitão Amaro considerou que as acusações do livro seriam uma “situação demasiado grave” para o país. “O primeiro-ministro tem de responder se e porque interferiu junto a uma instituição independente para manter intocável Isabel dos Santos”, disse o vice-presidente do partido.

Ainda nesse dia a antiga candidata presidencial Ana Gomes comentou o caso no Twitter, apontando que não estava surpreendida. “Recordo que, em outubro de 2019, porque acusei publicamente Isabel dos Santos de usar Eurobic como lavandaria, com cumplicidade nacional, ela me pôs um processo cível. Que perdeu, por decisão judicial 3 dias antes do #LuandaLeaks”, escreveu.

Centeno pede “respeito pelas instituições”

No dia seguinte, chegaram declarações de Mário Centeno, atual governador do BdP. O antigo ministro das Finanças de Costa deixou uma crítica a Carlos Carlos, ainda que de forma indireta, apelando ao “respeito pelas instituições”.

“Não reduzimos a pobreza e desigualdade em democracia se não respeitarmos as instituições, quer quando as servimos, quer quando as deixarmos de servir. (…) Permitam-me que deixe aqui hoje este apelo, um apelo de respeito pelas instituições”, disse Mário Centeno, citado pela TSF. Questionado depois pelos jornalistas, o ex-ministro das Finanças disse que tinha sido “muito claro” no que tinha dito em palco.

Lobo Xavier defende Costa e Francisco Assis cancela apresentação

No domingo, o caso foi abordado no programa “O Princípio da Incerteza”, da CNN. Aí, António Lobo Xavier, antigo deputado do CDS e atual Conselheiro de Estado, veio em defesa de António Costa, admitindo que não sabe se a pressão existiu, mas reiterando que “o problema é que essa conversa, tal como é relatada no livro, não bate certo com uma série de atos que o primeiro-ministro António Costa praticou no sentido totalmente oposto”.

Recordou ainda uma situação que testemunhou, quando o primeiro-ministro “interveio ativamente para desbloquear a situação acionista no BPI em desfavor claro de Isabel dos Santos e contra os interesses de Isabel dos Santos”. “Não tem lógica que tenha feito pressão sobre o antigo governador do BdP a favor dos interesses de Isabel dos Santos, ele que tinha sido lutador nos limites para lá do que poderia esperar contra os direitos de Isabel dos Santos”, argumentou o centrista.

Não tem lógica que tenha feito pressão sobre o antigo governador do BdP a favor dos interesses de Isabel dos Santos, ele que tinha sido lutador nos limites para lá do que poderia esperar contra os direitos de Isabel dos Santos

António Lobo Xavier

O livro, que ainda não tinha saído, já tinha assim provocado bastantes tomadas de posição. Mas antes da apresentação chegaria ainda mais uma: Francisco Assis ia apresentar o livro (em conjunto com Luís Marques Mendes) mas acabou por cancelar a presença no evento, para que não fosse considerada um ato de “hostilidade” para com António Costa.

O SMS de Costa e o lançamento do livro

Chegou finalmente o dia da apresentação do livro, que ocorreu na Fundação Gulbenkian. Na manhã dessa terça-feira surgiram mais notícias: António Costa terá enviado um SMS ao antigo governador onde desmente que tenha dito que não se podia “tratar mal” a filha do Presidente de um “país amigo”, mas que considerava “inoportuno” o afastamento do BIC.

Neste dia chegaram também reações do sócio da angolana Isabel dos Santos, Fernando Telles, que disse que há informação “falsa” sobre si no livro e ameaçou recorrer a todos “os meios” para repor a verdade. Fernando Telles defendeu que “a narrativa de Carlos Costa, no seu livro, de que não foi [ele, empresário] nomeado em 2016 é falsa e, ou se retrata, ou reserva-se no direito de repor a verdade e o seu bom nome por todos os meios que entenda adequado”.

Finalmente na apresentação, foi dada a explicação da ausência de Francisco Assis, através uma mensagem lida no próprio evento. “Não foi uma decisão agradável, mas foi a que se impôs à minha consciência. Tenho uma longa relação do ponto de vista político com o Dr. António Costa e entendi que era meu dever abster-me de participar num ato em que a minha presença seria inevitavelmente interpretada como uma manifestação de hostilidade pessoal com ele”, justificou o presidente do Conselho Económico e Social (CES).

Já Marques Mendes avançou com a participação, onde defendeu que a revelação mais grave do livro se prende com a resolução do Banif no final de 2015 e que o Ministério Público devia abrir um processo de investigação criminal.

“Espero bem que o Ministério Público possa ler os capítulos do livro que têm a ver com o Banif, e se ler não pode deixar de abrir uma investigação criminal. É um caso típico de abuso de poder e favorecimento de uma sociedade. Por muito menos, já vi o Ministério Público abrir inquéritos e constituir arguidos”, reiterou.

O primeiro-ministro enviou-me uma mensagem escrita em que reconhece que me contactou para transmitir a inoportunidade do afastamento de Isabel dos Santos.

Carlos Costa

Já Carlos Costa, na apresentação, não só confirmou que recebeu um telefonema de António Costa em abril de 2016, pedindo para não afastar a angolana Isabel dos Santos do Banco BIC, porque “não se pode tratar mal a filha de um Presidente de um país amigo”, como também acusou o primeiro-ministro, que disse que o vai processar, de “tentativa de intromissão do poder político junto do Banco de Portugal”.

Falou também sobre a mensagem que diz ter recebido: “Esta semana, no mesmo dia em que anunciava um processo judicial, o primeiro-ministro enviou-me uma mensagem escrita em que reconhece que me contactou para transmitir a inoportunidade do afastamento de Isabel dos Santos. Ou seja, é o próprio primeiro-ministro a confirmar uma tentativa de intromissão do poder político junto do Banco de Portugal”.

Caso não está esquecido. Centeno e Carlos César voltam ao ataque

Depois da apresentação do livro, o caso ainda não “morreu”, longe disso. Por um lado, Centeno voltou a criticar Carlos Costa, mas de novo sem se dirigir diretamente ao antecessor. O governador do Banco de Portugal criticou esta quarta-feira o “velho hábito” de quem gosta de “reescrever a história com os dados censurados”, numa farpa implícita a Carlos Costa.

Já Carlos César decidiu também pronunciar-se, mas de forma bastante direta. Numa publicação no Facebook, criticou o ex-governador do Banco de Portugal por ser “desrespeitoso”, reiterando que “há despeito a mais e sentido de Estado a menos”. Além disso, defendeu António Costa, apontando que “não há, nem houve, como todas as pessoas de bem reconhecerão, qualquer espécie de cumplicidade ou sequer permissividade do primeiro-ministro ou do PS face à então acionista do BIC”.

Não há, nem houve, como todas as pessoas de bem reconhecerão, qualquer espécie de cumplicidade ou sequer permissividade do primeiro-ministro ou do PS face à então acionista do BIC

Carlos César

O antigo líder parlamentar do PS salientou “o cuidado que devia ser usado, face à definição de prioridades, naquele momento, no âmbito da melhor solução dos dossiês bancários”, apontando que a sugestão desses cuidados, “se ocorreu, não seria, como é óbvio, nunca considerada como uma intromissão ou uma pressão ilegítima, mas, quando muito, a comunicação de uma perspetiva do governo nos assuntos em causa”.

Apoiou-se também nas declarações de outras figuras apontando que “as razões, aliás, desses cuidados, já foram nestes dias reconhecidas publicamente e contextualizadas por consultores e analistas politicamente insuspeitos e creditados, de que destaco Lobo Xavier e Nogueira Leite”. Carlos César sublinhou que “foi o Governo de António Costa que aprovou um Decreto-lei que permitiu ao BPI libertar-se de Isabel dos Santos”.

Sobre o Banif, o socialista salientou que “o que se sabe é que Portugal tinha assumido o compromisso de descontinuar a atividade do banco no continente até maio de 2015, permitindo à União Europeia que se mantivesse em atividade nas regiões autónomas e nas comunidades portuguesas no exterior”. “Como é sabido, esse compromisso não foi honrado pelo Governo de Passos Coelho e pelo governador Carlos Costa“, atirou.

Banqueiros fogem do passado

Durante a manhã desta quarta-feira, realizou-se uma conferência da banca do futuro, mas o que fica é sobretudo sobre a fuga ao passado. Na conferência do Jornal de Negócios que contou com dois visados no livro ‘O Governador’, os presidentes do BPI e do Santander, respetivamente Oliveira e Costa e Pedro Castro e Almeida, garantiram que não vão ler o livro do jornalista Luís Rosa. “Não estou a ver nenhuma consequência útil para ninguém, não vou perder um segundo com o tema”, comentou o CEO do BPI, enquanto o presidente do Santander, caustico, afirmou que não tem de “ajustar contas” com ninguém. “Não sou político, o que está aqui é uma questão política”, disse o gestor.

Já Miguel Maya, presidente do BCP, banco que tem a Sonangol como acionista de referência, preferiu outra abordagem: “A questão não é se há pressões. É se somos independentes para resistir às pressões. É normal haver opiniões diferentes. Se entendem como pressão ou não, não é o meu problema. Eu sou dono das minhas palavras, silêncios e atuações”, referiu o CEO do BCP, que disse que vai ler a parte do livro que diz respeito ao banco que lidera.

Marcelo Rebelo de Sousa ‘desconversa’

Entretanto, o Presidente da República, que apenas tinha dito que não tinha lido o livro, acabou por tocar no assunto esta quarta-feira à tarde, dizendo que estavam todos (primeiro-ministro, Governo e governador do BdP) de acordo sobre o que era necessário fazer para desbloquear a situação do BPI, que era o que o BCE também defendia. “Acho que em nenhum momento da parte de todos os que intervieram, do lado oficial, em nenhum momento algum dos intervenientes jamais pensou que uma solução fosse, se a Sra. engenheira persistisse em não aceitar acordo, deixar de aplicar a lei que lhe era desfavorável”, reiterou. Mas não falou sobre o caso referido no livro, o do BIC.

Marcelo Rebelo de Sousa, em declarações aos jornalistas, destacou ainda que a situação “complicou” e teve custos nas relações com Angola, nomeadamente até ao final do mandato de José Eduardo dos Santos.

António Costa volta a defender-se: “Cada página é um conjunto de mentiras”

Ainda esta quarta-feira, o primeiro-ministro voltou a defender-se, acusando Carlos Costa de mentiras. “Cada página é um conjunto de mentiras, meias verdades e deturpações”, começou por apontar António Costa, reiterando que “Carlos Costa entendeu que devia montar uma operação política de ataque” ao seu caráter.

“Estou há anos suficientes na política para não admitir quem quer que seja que minta a meu respeito, dos meus atos e intenções”, defende o primeiro-ministro, que acrescenta que a “história esclarecerá tudo” e que confia na justiça, já que “hoje temos meios próprios para esclarecer a verdade nos tribunais”.

António Costa diz ainda que “há factos que são públicos e notórios e facto é que sistema financeiro hoje felizmente não tem nada a ver com o que era em novembro de 2015”. O primeiro-ministro diz-se também orgulhoso do trabalho que desenvolveu, nomeadamente com ministros das Finanças e “com quem se dispor a trabalhar para que o sistema financeiro se pudesse recuperar de forma sólida”. “É com essa tranquilidade quanto ao que fiz na minha vida política que não preciso de andar a fazer polémicas e deixarei para lugar próprio a defensa do meu bem nome”, conclui.

Partidos pedem esclarecimentos

Os partidos também têm comentado o caso, nomeadamente a pedir esclarecimentos. Enquanto o Chega defende a necessidade de investigar o caso, nomeadamente com uma comissão parlamentar de inquérito, o PCP diz ser necessário esclarecer as “eventuais pressões”. Já a Iniciativa Liberal critica o caso, apesar de não ser surpreendente.

Do lado do Bloco de Esquerda ainda poucas reações surgiram. Já o PAN afirma que “evidente que é grave” se as afirmações de Carlos Costa se verificarem e comprovarem.

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