Exclusivo Grupo que contratou Rita Marques recebe apoios de 30 milhões para o WoW
Além da isenção fiscal no despacho, o principal ativo turístico que a ex-secretária de Estado vai gerir já beneficiou de ajudas milionárias. Governo e empresa em silêncio sobre devolução de verbas.
O World of Wine (WoW), maior projeto de investimento concretizado nos últimos anos pelo grupo empresarial que acaba de contratar Rita Marques, ex-secretária de Estado do Turismo, beneficiou de apoios públicos num valor superior a 30 milhões de euros, de acordo com as informações recolhidas pelo ECO.
Além do polémico despacho, assinado a 21 de janeiro de 2022 pela então governante, que concede o estatuto de utilidade turística definitiva ao WoW até ao final de 2025 – em 2020 e 2021 rendeu benefícios fiscais de 266 mil euros, em sede de IMI, noticiou o Observador, além de isentar a proprietária e exploradora do empreendimento das taxas à Inspeção-Geral das Atividades Culturais –, há um apoio público de quase 5,4 milhões de euros no Portugal2020, aprovado igualmente quando Rita Marques fazia parte do Governo liderado por António Costa.
Através do Compete, este complexo recebeu um incentivo de 5,36 milhões de euros para ajudar à realização de um investimento total de 102,85 milhões, sendo que apenas 19,51 milhões eram elegíveis para apoio comunitário. A candidatura a apoios europeus foi submetida em 2017, mas a “luz verde” chegou a 27 de dezembro de 2019, ou seja, já depois de Rita Marques ser colocada aos comandos da pasta do turismo nacional.
No entanto, apesar de o Compete estar sob a tutela do Ministério da Economia e também de a aprovação do apoio a este projeto de âmbito turístico só ter sido conferida no final de dezembro de 2019, quando Rita Marques já era secretária de Estado do Turismo, o dossiê foi conduzido pela AICEP, e não pelo Turismo de Portugal, confirmou ao ECO fonte oficial do Compete.
“Nem é uma questão de opinião de conduta ética, é uma claríssima violação da lei”, como disse ao ECO João Paulo Batalha, vice-presidente da Frente Cívica e ex-presidente da Associação Transparência e Integridade. A lei das incompatibilidades prevê no artigo 10.º que “os titulares de cargos políticos de natureza executiva não podem exercer, pelo período de três anos (…) funções em empresas privadas que prossigam atividades no setor por eles diretamente tutelado e que, no período daquele mandato, tenham sido objeto de operações de privatização, tenham beneficiado de incentivos financeiros ou de sistemas de incentivos e benefícios fiscais de natureza contratual, ou relativamente às quais se tenha verificado uma intervenção direta do titular de cargo político”.
Avaliado em mais de 100 milhões de euros e inaugurado a 31 de julho de 2020, este quarteirão cultural localizado no centro histórico de Vila Nova de Gaia, que engloba seis museus temáticos, lojas e restaurantes, foi ainda o empreendimento que ficou com a maior fatia de investimento público no programa de apoio à reabilitação e regeneração urbana IFRRU, criado no âmbito do Portugal2020. Através da sociedade Hilodi – Historic Lodges & Discoveries, entre 2018 e 2019, o grupo liderado por Adrian Bridge recebeu um total de 26 milhões de euros, divididos por quatro candidaturas para diferentes espaços, como mostra a lista de operações contratadas até ao primeiro semestre do ano passado. Em causa estão empréstimos em condições mais vantajosas do que as praticadas no mercado e não apoios a fundos perdido.
Este mega projeto turístico ocupa os três hectares dos antigos armazéns de envelhecimento da Croft e da Taylor’s (duas das principais marcas de vinho do Porto detidas pela Fladgate, a par da Fonseca) é precisamente o principal ativo que Rita Marques — afastada do Governo pelo ministro António Costa Silva na sequência de divergências públicas sobre a descida do IRC –, passará a gerir a partir de 16 de janeiro. É esta a data em que está previsto que inicie funções como membro do conselho de administração do grupo, com a responsabilidade sobre a divisão dos hotéis e do turismo.
A cargo de Rita Marques vão ficar ainda as caves da Taylor’s e da Fonseca, os hotéis The Yeatman (Gaia) — que já tinham sido apoiado pelo quadro comunitário anterior, o QREN, com 4,93 milhões de euros, com a AICEP a ser o organismo intermédio encarregue deste projeto –, Vintage House, no Pinhão, que teve um apoio de 547,2 mil euros do QREN, em 2008, sendo a decisão do Turismo de Portugal; Hotel da Estrela e Palacete Chafariz d’El Rei (ambos em Lisboa), o Museu do Vitral, o ferryboat que liga as margens ribeirinhas do Douro, os 20 restaurantes do grupo e as lojas que tem na Baixa do Porto.
À carteira vão-se juntar em breve dois espaços comerciais no renovado mercado do Bolhão para a venda de vinhos e chocolates, e realizar provas de vinho do Porto; e ainda um novo hotel de luxo com 85 quartos que vai ocupar os terrenos dos antigos armazéns da Fonseca, em Gaia. Um investimento que poderá ascender a 30 milhões de euros, anunciado após vender o histórico hotel Infante Sagres, no centro da Invicta, ao grupo de investidores asiáticos Gaw Capital, que controla o InterContinental Palácio das Cardosas, ao fundo da Avenida dos Aliados.
Governo e empresa em silêncio sobre devolução do dinheiro
Perante a “sanção inútil” e “punição fictícia” prevista na legislação para estes casos, isto é, a inibição de exercer cargos políticos durante três anos, a associação Frente Cívica avançou já com um pedido formal ao ministro da Economia, António Costa Silva, para que retire o estatuto de utilidade turística dado pela ex-secretária de Estado ao WoW, anulando aquele despacho que concede isenções de taxas e benefícios fiscais ao projeto.
“Se é certo que não pode ser assacada ao Governo a responsabilidade por uma decisão individual tomada pela Dra. Rita Marques após ter cessado as suas funções públicas, não pode o Ministério da Economia e do Mar permitir que a vantagem concedida ao empreendimento World of Wine produza efeitos. Isso significaria que o Estado Português se resignaria face à violação“, lê-se na carta assinada pelos presidente e vice-presidente da Frente Cívica, Paulo de Morais e João Paulo Batalha.
Contactado pelo ECO, o Ministério da Economia recusou fazer qualquer comentário sobre este caso. Também o grupo Fladgate, que em 2021 faturou 117 milhões de euros, dos quais 20 milhões no setor do turismo, optou pelo silêncio quando questionado sobre se tinha conhecimento deste enquadramento legal relativo às incompatibilidades de ex-governantes; sobre se mantinha a intenção de nomear Rita Marques, apesar da violação da lei; e ainda sobre a disponibilidade para abdicar dos apoios públicos aprovados ou devolver os incentivos financeiros e fiscais de que já beneficiou.
Esta segunda-feira, o Chega perguntou ao Ministério Público se está a investigar a situação da ex-secretária de Estado do Turismo e a pedir que, “caso não o tenha feito por qualquer motivo ou qualquer razão procedimental, [esta exposição] valha como denúncia para que seja averiguada a legalidade desta situação”. “Não é apenas um caso de imoralidade ou de violação de deveres éticos, é um caso de clara violação da lei”, referiu André Ventura.
“Voltar ao privado”? Currículo mostra empregos no Estado
Nas reações às notícias sobre este caso, Rita Marques tem repetido que está “absolutamente segura das decisões tomadas enquanto secretária de Estado” e também “das que toma na esfera privada desde que deixou o Governo”, classificando mesmo aquilo que designa como um regresso ao setor privado como “legítimo”. “Tendo desenvolvido toda a minha atividade profissional no setor privado, era para mim evidente que esta exoneração implicava o regresso ao mundo empresarial”, disse, citada pelo Observador.
No entanto, o currículo da antiga secretária de Estado, nascida em 1975 no Porto, onde se licenciou em 1998 em Engenharia Eletrotécnica e de Computadores pela FEUP, mostra um percurso profissional quase todo cumprido em instituições públicas ou ligadas ao Estado. A exceção é um curto período, entre 2006 e 2007, em que foi consultora na Microsoft. Antes disso, logo após completar o curso, foi “especialista” no regulador das comunicações (ANACOM) e gestora de mercado Ásia-Pacífico e dos setores de tecnologias e de turismo na Agência Portuguesa para o Investimento (API), foi reestruturada em conjunto com o ICEP para dar origem à atual AICEP.
Entre 2008 e 2018 trabalhou para a Universidade do Porto, onde entrou como coordenadora da Unidade de Projetos e nos últimos dois esteve como diretora executiva da Porto Business School para área de MBA e pós-graduações. E de abril de 2018 a outubro de 2019, antes de ser convidada para o Governo, foi CEO da Portugal Ventures, a sociedade de capital de risco de caráter público que está atualmente nas mãos do Banco Português de Fomento.
O ECO questionou Rita Marques para obter esclarecimentos adicionais sobre a violação da lei das incompatibilidades e também sobre o seu currículo, mas a ex-governante não respondeu aos contactos do ECO até à hora de publicação deste artigo.
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