Empreitada do Governo para habitação não convence especialistas
Marina Gonçalves revela grande plano para resolver um dos maiores problemas de Portugal na atualidade: casas compatíveis com os rendimentos das famílias.
A ministra Marina Gonçalves vai vestir o colete e pôr o capacete para apresentar a grande empreitada do seu mandato. O Governo revela esta quinta-feira a estratégia para a habitação. A nova estratégia pretende resolver o problema da habitação em todas as divisões, desde os que querem arrendar ou comprar uma casa até às famílias que pretendem continuar no seu lar mas sem serem sufocadas pela prestação do banco. Os especialistas contactados pelo ECO, no entanto, temem que o executivo não seja suficientemente ambicioso nesta matéria.
O ponto de partida para a empreiteira Marina Gonçalves é o facto de em 2018 terem sido identificadas cerca de 26 mil famílias a viverem em casas sem condições e que necessitavam de um lar urgentemente. “Passados cinco anos, para essas famílias, pouco ou nada mudou”, lamenta Gonçalo Antunes. Mesmo que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) tenha avançado com a solução Primeiro Direito “ninguém nos garante que os objetivos vão ser realmente alcançados”, receia o especialista em Habitação da Faculdade de Ciências da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-Nova).
As famílias estão expostas à boa vontade dos bancos num momento de particular fragilidade, em que o seu poder de negociação é quase inexistente
Entretanto, a lista de pessoas em casas sem condições cresceu para praticamente o dobro. Em março de 2022, estavam a ser definidas soluções para mais de 46 mil famílias, através das estratégias locais de habitação, segundo dados adiantados ao ECO pelo então Ministério das Infraestruturas e da Habitação. “Não se sabe que soluções vão ser adotadas nem que verbas vão ser alocadas”, critica o investigador da FCSH-Nova.
A estes problemas podem-se acrescentar os “problemas qualitativos da habitação”, em que 25% das famílias vivem em situação de pobreza energética e outros 16% têm dificuldade em manter a residência aquecida, acrescenta Paulo Conceição, da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP).
Se há muitas famílias em casas sem condições, há tantas outras que procuram “o lugar ideal para morar” mas que não têm rendimentos para isso. O aumento do valor mediano do metro quadrado é exemplo disso, tendo atingido os 1.492 euros no terceiro trimestre do ano. A situação afeta sobretudo as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e ainda a região do Algarve. A situação “tem colocado em causa a mobilidade habitacional e o acesso à habitação para a classe média, de forma genérica, e, em particular, para as novas gerações, que estão agora a iniciar a vida profissional e procuram por habitação”.
Existe um desfasamento prolongado entre a evolução dos rendimentos das pessoas e das famílias e a evolução dos preços da habitação
Corroborando o diagnóstico, o especialista da FEUP refere-se a um “desfasamento prolongado entre a evolução dos rendimentos das pessoas e das famílias e a evolução dos preços da habitação”. O problema “não é exclusivo” de Portugal mas é mais intenso em solo nacional.
Vera Gouveia Barros propõe que seja feito um verdadeiro diagnóstico sobre o problema da habitação. “Não há boas políticas públicas sem um bom diagnóstico”, sustenta a economista especialista nesta área. Defende que é necessário “estudar melhor” o facto de os jovens saírem cada vez mais tarde da casa dos pais e verificar, por exemplo, “quantas são as pessoas que quiseram arranjar ou mudar de casa e não conseguiram”. A economista considera também como um problema haver “45% da população concentrada nas duas áreas metropolitanas”.
“Estamos perante um problema de extraordinária complexidade, com múltiplas causas, que se interligam e se reforçam mutuamente, pelo que as políticas de habitação devem ter em mente que as questões da habitação não são independentes das da mobilidade, do ambiente, da demografia, da saúde, da educação e do crescimento económico”, sinaliza ainda Vera Gouveia Barros.
Soluções insuficientes
“Disponibilizar mais solos para a construção de habitação”, criar “um forte incentivo à construção de habitação por parte de privados”, apostar em incentivos para os proprietários colocarem as casas no mercado de arrendamento e apoios para os jovens acederem com mais facilidade ao arrendamento das casas foram algumas das medidas anunciadas, no final de janeiro, para este Conselho de Ministros.
No final da semana passada foram acrescentadas mais propostas, como o mecanismo permanente de apoio à renda para famílias com quebras de rendimentos, o fim dos ‘vistos gold‘ – que em novembro já tinham “cumprido a sua função” –, os incentivos para colocar no mercado de arrendamento habitações de alojamento local e casas devolutas e a criação de incentivos à construção ou reabilitação de casas por privados, que depois serão postas no mercado de arrendamento, adiantou o semanário Expresso.
O problema de sobrecarga com as rendas também afeta as famílias que não perderam qualquer rendimento, pois são afetadas pelos valores exigidos pelo mercado, pela subida anual das rendas e pela inflação
Gonçalo Antunes considera que “talvez seja melhor não criar grandes expectativas” porque “o que o Governo fez nos últimos anos ficou muito aquém das necessidades“. Por exemplo, o apoio à renda para famílias que perderam rendimentos “deveria estar em vigor há vários anos” e “trará pouco ou nada de novo” para a conjuntura atual. “O problema de sobrecarga com as rendas também afeta as famílias que não perderam qualquer rendimento, pois são afetadas pelos valores exigidos pelo mercado, pela subida anual das rendas e pela inflação”, salienta o especialista.
Neste domínio, o especialista fala nas medidas para agilizar a renegociação do crédito à habitação como o “grande elefante” no Conselho de Ministros. “São totalmente ineficazes, visto que, em caso de dificuldade, esses créditos já seriam à partida renegociados. As famílias estão expostas à boa vontade dos bancos num momento de particular fragilidade, em que o seu poder de negociação é quase inexistente”.
O fim dos vistos gold “peca por tardio” mas o professor da FSCH-Nova alerta para o caminho “muito ambíguo e contraditório do Governo” relativamente aos estrangeiros, através dos benefícios fiscais para os nómadas digitais. Compreendendo o fim destas autorizações de residência, a especialista Vera Gouveia Barros nota que as compras de habitações por não residentes “representam apenas 6% do número de transações e, destas, a maioria nem corresponde a vistos gold, ou seja, é uma parcela muito pequena do mercado”.
Sobre os apoios para reforçar o mercado de arrendamento “será um grande desafio pô-los a funcionar e que sejam atrativos. Infelizmente, Portugal tem um histórico de medidas relativamente similares que falham em convencer os proprietários em aderir em massa a esse tipo de instrumentos”.
Estamos perante um problema de extraordinária complexidade, com múltiplas causas, que se interligam e se reforçam mutuamente, pelo que as políticas de habitação devem ter em mente que as questões da habitação não são independentes das da mobilidade, do ambiente, da demografia, da saúde, da educação e do crescimento económico
Para Paulo Conceição, “é preciso ligar as políticas de habitação a outras medidas“, porque os problemas foram “agravados devido à diminuição do investimento público”. O professor da FEUP defende ainda que há uma “visão muito simplificada das atuais dinâmicas de mercado”. No caso, “é insuficiente argumentar-se que é necessário, em geral, apenas mais construção ou mais oferta”.
“Sou favorável, por princípio, a que exista uma oferta pública de habitação relevante. À semelhança do que sucede com a educação e com a saúde. No âmbito destes direitos, o Estado tem um papel de provisão. Advogo o mesmo para a Habitação”, defende Vera Gouveia Barros.
Sugestões para o plano
Para dar robustez à empreitada de Marina Gonçalves, o especialista da FCSH-Nova defende maior orçamento e alargamento a todas as faixas etárias do programa Porta 65, que apoia financeiramente o arrendamento para pessoas até aos 35 anos, embora os jovens “possam continuar a ser prioritários nos apoios. Gonçalo Antunes também defende a “diminuição significativa” dos impostos sobre o arrendamento e a propriedade: “Para a maioria das famílias portuguesas, os impostos com o seu imóvel mais não são do que impostos com a sua casa”.
O especialista defende ainda um “mercado de habitação de segmento intermédio, com rendas acessíveis”. As entidades privadas e as cooperativas “podem ser importantes para a construção de habitações com rendas acessíveis, criando um mercado de rendas intermédias que, em Portugal, é praticamente inexistente e uma das razões principais para os graves problemas que enfrentamos no acesso à habitação”.
Sou favorável, por princípio, a que exista uma oferta pública de habitação relevante. À semelhança do que sucede com a educação e com a saúde. No âmbito destes direitos, o Estado tem um papel de provisão. Advogo o mesmo para a Habitação
Paulo Conceição dá conta da importância dos instrumentos de “zonamento inclusivo ou de zonamento de incentivo ou dos previstos Fundos Municipais de Sustentabilidade Ambiental e Urbanística na criação de condições ativas para o desenvolvimento de formas de habitação acessível”. O especialista da FEUP defende ainda a “reflexão sobre a organização das políticas ao nível da administração central e local”.
Vera Gouveia Barros é favorável a “programas de reabilitação nos concelhos vizinhos de Lisboa e do Porto que melhorem o urbanismo dessas áreas e as dotem de infraestruturas, de serviços de qualidade e de um sistema de transportes eficiente, conferindo-lhes uma centralidade que hoje não têm”.
Resta agora a Marina Gonçalves pôr mãos à obra para cumprir a empreitada da habitação para as famílias portuguesas.
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