Como um “desalinhamento” derrubou a gestão da TAP e três governantes em 13 meses
A saída atribulada de Alexandra Reis teve autorizações por WhatsApp, um conselho de administração deixado às escuras e uma argumentação legal arrasada pela IGF.
Mal imaginaria Christine Ourmières-Widener que a zanga com Alexandra Reis acabaria por lhe custar o cargo 13 meses depois, apesar dos bons resultados da companhia aérea. O azar não bateu só à porta da CEO. Com ela sai o discreto presidente do conselho de administração, Manuel Beja. Antes já tinham tombado três governantes, entre eles o mais falado candidato a sucessor de António Costa. As sociedades de advogados também saem mal na fotografia, num caso que mostrou debilidades no governo da empresa.
A resposta de Manuel Beja à auditoria da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) à renúncia “por acordo” de Alexandra Reis, fechada a 4 de fevereiro de 2022, dá conta dos desentendimentos que levariam a CEO a querer afastar a sua colega da comissão executiva. Christine Ourmières-Widener queria uma “mudança rápida” da sede — foi negociada a mudança para a antiga sede dos CTT no Parque das Nações, que acabou por não acontecer — e Alexandra Reis pretendia uma renovação dos atuais edifícios.
A frota de carros, que a administração quis mudar para viaturas BMW, a celeridade nos processos de compras e o recrutamento de diretores estrangeiros (vieram vários com a nova CEO) foram também temas de fricção. Alexandra Reis e outro administrador chegaram a votar contra a conversão do empréstimo de 1,2 mil milhões de euros do Estado que levou à diluição dos acionistas minoritários, incluindo trabalhadores. Desentendimentos que traduziam um “desalinhamento” com a restante equipa relativamente ao plano de restruturação.
A CEO, que se queixa de ter sido a única pessoa diretamente envolvida na auditoria que não foi ouvida pessoalmente perante a IGF, considerou que se tratavam de “divergências profissionais irreconciliáveis na comissão executiva que punham em causa o seu funcionamento”. E assim foram postos em marcha os acontecimentos que culminariam na sua demissão e do chairman, anunciada pelo ministro das Finanças esta segunda-feira.
Talvez nada disto se soubesse não fosse a divulgação do valor da indemnização na véspera de Natal paga a Alexandra Reis, com os 500 mil euros a contrastarem com os pesados cortes salariais impostos aos trabalhadores. A par da imoralidade do pagamento elevado, apontada pelo Presidente da República, sindicatos e partidos, a forma displicente como o processo foi conduzido também terá concorrido para o desfecho.
A CEO da TAP pediu a substituição de Alexandra Reis ao então ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, numa reunião virtual via Teams, no dia 4 de janeiro. Proposta que foi formalizada por email no dia 18. Christine Ourmières-Widener alega também que a colega da comissão executiva não tinha a experiência necessária para o cargo de Chief Strategy Officer (responsável pela estratégia) que queria criar. O secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, responde que fica a aguardar nomes de potenciais substitutos.
Com a diretora jurídica de licença, cargo à altura desempenhado pela mulher de Fernando Medina, que saiu em março com a sua nomeação para ministro, a TAP contratou a assessoria jurídica da SRS Advogados, sociedade liderada por Pedro Rebelo de Sousa, para aconselhar a companhia aérea. Alexandra Reis recorreu à Morais Leitão. A primeira proposta dos advogados da administradora, com um valor de indemnização de 1,48 milhões de euros, seguiu por email para Hugo Mendes a 31 de janeiro, que respondeu por WhatsApp.
Só depois de nova negociação entre advogados, e já com uma proposta final, é que o presidente do conselho de administração Manuel Beja, foi posto ao corrente. Era dia 2 de fevereiro, o mesmo em que os termos e condições do acordo foram enviados por email para o secretário de Estado, que mais uma vez responde por WhatsApp, dando luz verde. A mesma rede social usada por Pedro Nuno Santos para anuir ao pagamento. Uma admissão do ministro que só chegaria a posteriori, depois de rever a fita do tempo no âmbito da audição da CEO da TAP no Parlamento.
Foi já com as mensagens de WhatsApp de Hugo Mendes que Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja assinaram o acordo de cessação, que segundo a CEO não foi discutido em nenhuma reunião do conselho de administração nem da comissão executiva, apesar de se tratar da saída de um membro de ambas. Na conferência de imprensa de apresentação das conclusões do relatório, o ministro das Finanças frisou a “justificada incompreensão quanto a falhas evidentes nas práticas de gestão e de governo societário”. Num comunicado divulgado ao início da noite, o chairman demitido diz que a saída de Alexandra Reis, que tentou “sem sucesso, evitar, reflete problemas de governança na empresa”.
No dia 4 de fevereiro é emitido um comunicado ao mercado, através da CMVM, a dar conta da “renúncia” da administradora executiva, que o regulador obrigou a corrigir e avalia agora as consequêcias legais. É a deixa para o trabalho dos advogados envolvidos no processo, que a IGF deita por terra.
A TAP passou a ser uma empresa pública quando a Atlantic Gateway saiu do capital em outubro de 2020, passando o Estado a deter mais de metade do capital: 72,5%. O que significa que, com algumas exceções, passou a aplicar-se à TAP o Estatuto do Gestor Público (EGP). O acordo negociado entre a SRS e a Morais Leitão parte, no entanto, do princípio de que este podia ser realizada à luz do Código das Sociedades Comerciais (SSC), com o argumento de que o EGP “não contempla expressamente o acordo como possível forma de cessação de funções de administração, mas também não a veda”. Não estando especificado, podia usar-se a remissão legal prevista no CSC, que permite a existência de um acordo.
Uma argumentação que não convenceu a IGF. O relatório divulgado esta segunda-feira conclui que o EGP “não prevê a existência da figura formalmente utilizada para o efeito, i.e. a renúncia ‘por acordo’. E a renúncia prevista no artigo 27.º do EGP não confere direito a qualquer compensação financeira, pelo que tal compensação encontra-se desprovida de enquadramento legal. Mesmo se fosse considerada uma demissão por mera conveniência, prevista no EGP, ela teria de ser aprovada em assembleia geral das sociedades do grupo TAP onde Alexandra Reis exercia funções, o que não aconteceu. Mesmo que isso tivesse sucedido, a administradora teria de ocupar o mandato há mais de 12 meses para receber uma indemnização, o que também não era o caso.
Em suma, o acordo celebrado entre a TAP e Alexandra Reis, negociado com o apoio jurídico da SRS e da Morais Leitão, é considerado “nulo” pela IGF, exepto na parte relativa à cessação do contrato de trabalho com a companhia aérea. Daí que a antiga gestora só possa ficar com cerca de 50 mil dos 500 mil euros que recebeu. Cabe à transportadora diligenciar a devolução do montante, que Alexandra Reis se disponibilizou para entregar, embora discordando da interpretação.
O ano passado não foi fácil para a CEO. Os atrasos e cancelamentos no verão, conflitos com os sindicatos, e algumas polémicas, como a frota de BMW (entretanto suspensa) ou a contratação de uma amiga pela TAP, criaram desgaste. Mas o forte crescimento do tráfego, o regresso aos lucros no período entre julho e setembro e um resultado operacional recorde mostravam uma gestão a mais do que cumprir as metas do plano de reestruturação. Ou seja, a entregar na principal missão para a qual tinha sido escolhida.
A 2 de dezembro, exatamente um mês depois da apresentação das contas da companhia aérea, Alexandra Reis, entretanto a presidir à NAV Portugal, foi nomeada por Fernando Medina para secretária de Estado do Tesouro. A 24 de dezembro o Correio da Manhã noticia a indemnização de 500 mil euros e os acontecimentos do início do ano, aparentemente inocentes, abrem a mais grave crise política no Governo. Primeiro com a demissão de Alexandra Reis e depois de Hugo Mendes e Pedro Nuno Santos. O relatório iliba as Finanças, escrevendo que não há registo de qualquer comunicação que indique o conhecimento do processo ou da indemnização.
A CEO da TAP apresentou, na quinta-feira passada, novas rotas e novos menus da classe executiva num evento na feira de Turismo BTL. Questionada pelos jornalistas, disse que aguardava as conclusões da IGF para tirar elações, mas a forma como falou da missão que tinha à frente da companhia permitia intuir que não contava com o desfecho que o caso teve. A forma como responde à IGF, garantindo que teve a autorização da tutela competente e seguiu estritamente o conselho dos advogados, aponta no mesmo sentido.
O Governo entendeu que era necessário “um virar de página na gestão da empresa”, que permitisse restabelecer “a confiança dos portugueses na companhia aérea”. Uma demissão por “justa causa”, sem direito a indemnização e com o risco de o Tribunal de Contas, a quem as Finanças remeteram o relatório, determinar ainda o pagamento de sanções financeiras pelos gestores.
Luís Rodrigues é o CEO que se segue. Sai da SATA, também em processo de reestruturação e com a privatização a arrancar, para fazer a venda do capital da TAP.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Como um “desalinhamento” derrubou a gestão da TAP e três governantes em 13 meses
{{ noCommentsLabel }}