Granel nem sempre é a opção mais barata, mas ajuda a poupar e a planear consumos em tempos de crise

Março é o Mês do Granel. Iniciativa nascida em França, chega agora a Portugal com a missão de promover este tipo de consumo. Setor quer flexibilização da regulação para impulsionar crescimento.

A produção e o consumo sustentável constituem um dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) que constam na Agenda para 2030 das Nações Unidas. O granel surge como uma das soluções para acelerar este reduto, uma vez que vai somando benefícios, não só para o consumidor mas também para o ambiente.

Além de potenciar o consumo responsável, pois incentiva o consumidor a fazer um planeamento antes de sair de casa e a identificar os alimentos de que realmente precisa (esquivando-se das distrações ou promoções que vão surgindo pelos corredores das lojas e que podem tornar a ida às compras mais cara), o granel permite que o consumidor compre as quantidades dos alimentos de que realmente precisa.

Acresce ainda que esta metodologia procura anular o desperdício alimentar que ocorre na compra de alimentos em quantidades em excesso. No mundo, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que cerca de um terço (1,3 mil milhões de toneladas) de todos os alimentos produzidos para consumo humano sejam desperdiçados, anualmente. A nível nacional, as perdas e o desperdício alimentar, ascenderam, em 2020, a 1,89 milhões de toneladas de alimento. Cada português desperdiçou, em média, 183,6 quilos de alimentos, naquele ano, revelam os dados do Instituto Nacional de Estatística.

Estes três destaques são particularmente importantes numa altura em que o preço do cabaz de alimentos não para de subir e o orçamento de muitas famílias não tem sido capaz de cobrir essas despesas. Perante esta realidade, o Governo anunciou medidas como o “IVA zero” no cabaz de bens essenciais, procurando manter estáveis os preços dos alimentos.

“Estamos numa altura sensível. As pessoas estão a enfrentar de forma geral um aumento exponencial do custo de vida, inflação e da incerteza. Não só os consumidores têm dificuldades em fazer as suas compras, como o comércio tradicional e local também se ressente“, aponta Eunice Maia ao Capital Verde, a cofundadora da primeira loja de alimentos biológicos 100% a granel em Portugal, a Maria Granel.

Reportagem granel - 16MAR23
Hugo Amaral/ECO

Acho que assistimos, por força destas circunstâncias, a uma preocupação maior com essa planificação. Mas é um hábito que precisa de ser trabalhado. Ainda não é assim tão óbvio, nem está tão presente no dia-a-dia do consumidor”, diz a responsável

Mas segundo as contas da Deco Proteste, esta opção, embora permita planear melhorar a gestão das despesas, nem sempre é a mais barata. Num recente estudo, a entidade de apoio ao consumidor estima que, atualmente, os ultracongelados são a opção mais barata da maioria das que estão disponíveis para consumo num supermercado ou mercearia.

Para chegar a esta conclusão, a Deco Proteste comparou o preço de alimentos disponíveis em embalagens grandes face às pequenas (o cálculo considerou um quilo de produto). E, verificou também outras hipóteses, considerando diferentes opções: produtos frescos e ultracongelados ou em conserva, embalados, face ao granel.

Na maioria dos casos, como nos espinafres, brócolos, ervilhas ou outros vegetais frescos, a opção ultracongelada confere maiores poupanças para os consumidores. Mas o granel também traz ganhos. Por exemplo, no consumo de frutos secos com casca, como as nozes, onde a poupança pode chegar aos 26% face ao miolo vendido em metades embalado, ou nos vegetais como as cenouras, em que a poupança sobe para os 63%, quando comparadas com a versão embalada, estima a Deco Proteste.

Erica Aguiar, funcionária da Maria Granel em Campo de Ourique, em Lisboa, admite que até trabalhar para a loja não consumia a granel. “Era muito raro”, contou ao Capital Verde. Mas há um ano, quando entrou para a equipa, apercebeu-se dos benefícios.

“Por exemplo, eu não uso muita farinha, mas às vezes preciso então comprava sempre pacotes grandes que acabavam por ficar na despensa. Por vezes, iam para o lixo”, revela. Para a jovem, este tipo de consumo permite reduzir o desperdício e adquirir produtos de melhor qualidade. “Já convenci os meus pais a fazerem o mesmo”, partilha.

“Se fica mais barato? Acho que é ela por ela, mas incentiva-nos a consumir melhor e a fazer diferente”, explica.

Mas as vantagens ambientais não se ficam por aqui. O granel também permite reduzir o número de embalagens descartáveis, que, muitas vezes, são à base de plástico, incentivando o consumidor a levar os seus próprios recipientes. Os produtos vendidos desta forma nunca trazem embalagens, sacos ou outros materiais de conservação: o consumidor paga só o preço do produto que leva.

Segundo um estudo da Reseau Vrác, uma associação francesa que representa o setor do granel em França, estima-se que este tipo de comércio permite evitar que sejam desperdiçadas, em média, uma tonelada embalagens descartáveis, por ano e por loja, em toda a Europa. Em 2023, e perante o crescimento do setor, o total desperdiçado, todos os anos, por loja, poderá chegar às 5.500 toneladas.

“Os benefícios do granel são maiores quando as pessoas reutilizam as suas próprias embalagens e recipientes. Se assim não for, podemos estar perante situações onde podemos estar a desperdiçar mais material de embalagem, do que se fossemos adquirir um produto pré-embalado”, aponta Susana Fonseca, vice-presidente da associação ambientalista Zero ao Capital Verde.

Natália Correia, que trabalha na loja da Maria Granel desde 2019, partilha da mesma opinião. Ao Capital Verde, a jovem funcionária admite que já tinha adotado a prática de reduzir o recurso aos plásticos descartáveis nas compras de frutas ou vegetais avulsos quando ia ao supermercado, mesmo antes de começar a trabalhar na loja.

“Era uma luta constante com as senhoras do supermercado porque insistiam que eu usasse os sacos de plástico. Por exemplo, quando comprava uma beringela e uma courgete, colocava tudo dentro do mesmo saco e depois na caixa separava para [os funcionários] passarem os produtos, em separado. No final, voltava a colocar tudo junto, mas implicavam comigo. Diziam que não podia”, afirma, recordando uma realidade de há quatro anos. “Agora já começam a aceitar mais, e até existem sacos alternativos”.

Se fica mais barato? Acho que é ela por ela, mas incentiva-nos a consumir melhor e a fazer diferente.

Erica Aguiar, funcionária na loja Maria Granel, em Campo de Ourique

Além de permitir planificar os consumos, reduzir os desperdícios e o recurso às embalagens descartáveis, o consumo a granel também incentiva o desenvolvimento do comércio local, proporcionando mais oportunidades aos produtores locais e para aqueles em busca de emprego. A Reseau Vrác prevê que este setor tenha a capacidade de criar mais de 10 mil postos de trabalho em toda a Europa, este ano.

“É um trabalho que precisa de ser feito”, refere a dona da Maria Granel, argumentando que este tipo de consumo transforma o circuito agroalimentar “num que é tipicamente longo, para um mais curto” e reduz, desta forma, a emissão de gases poluentes provenientes do transporte de alimentos. As estimativas da associação francesa que representa o setor, apontam que o comércio a granel poderá evitar, este ano, até 28 mil toneladas de emissões de dióxido de carbono (CO2).

Sara Morais Pinto, a cofundadora da Zero Waste Lab, organização que ganhou recentemente o estatuto de Organização Não-Governamental para o Desenvolvimento (ONGD), refere a título de exemplo que as lojas e mercearias de bairro tendem a optar por fornecedores mais próximos e com uma produção biológica, ao passo que uma grande superfície recorre, em alguns casos, à importação de produtos vindos do estrangeiro.

“Se comprar um saco de laranjas de Peniche, estando eu em Lisboa, o impacto vai ser diferente do que se vier do outro lado da América do Sul”, exemplifica a responsável.

Reportagem granel - 16MAR23
Hugo Amaral/ECO

Nas duas lojas da Maria Granel, em Lisboa, os produtos à venda, que variam desde os frutos secos e desidratados, até açúcares, bolachas, massas e leguminosas, são fornecidos por produtores locais. Segundo Natália Correia, é “algo que os clientes da loja valorizam imenso”.

“É um aspeto importante, mas é apenas uma parte. O que é impactante no granel, é conjugar todos os fatores e olhar para isto de forma holística”, sublinha Eunice Maia. E em março, foi essa a missão colocada em curso.

O Mês do Granel nasceu pela primeira vez em França, há dois anos, pelas mãos da associação que representa o setor no país, a Reaseau Vrác. O objetivo era sensibilizar os consumidores para a importância do granel e apoiar todos os intervenientes do setor, desde retalhistas a fornecedores até aos consumidores. Ao longo de 31 dias, realizam-se eventos, workshops, sessões informativas, debates e demonstrações nos vários espaços das lojas e organizações que fazem parte da campanha.

Por cá, a Liga-Ação, iniciativa que promove o lixo zero, a economia circular e o granel, criada em consórcio entre a Zero Waste Lab, a associação Circular Economy Portugal, a Maria Granel e a organização internacional FOE Norway, procurou trazer a iniciativa para Portugal. Baseando-se no modelo francês, e contando com o apoio da Comissão Europeia, da associação Zero e da Deco Proteste, o objetivo é promover este tipo de consumo durante o mês de março. Os intervenientes ambicionam repetir o projeto nos próximos anos.

Reportagem granel - 16MAR23
Hugo Amaral/ECO

“Isto não é só uma iniciativa por ser bonita, é uma ação concertada sobre a importância do granel neste alinhamento do combate às alterações climáticas, ao bem estar e à saúde”, aponta Sara Morais Pinto, ao Capital Verde.

Setor não mostra sinais de abrandamento

Em Portugal, existem cerca de 300 espaços onde são vendidos produtos a granel. Das mercearias às lojas especializadas, o site agranel.pt tem estes espaços identificados por todo o país – a maioria (mais de 100) localizados em Lisboa. Uma realidade que há oito anos não era assim.

“Fomos a primeira loja biológica, 100% a granel, a abrir em Portugal, e em Lisboa, e isso aconteceu em 2015. Foi um ano muito difícil e ainda demorou bastante tempo até este conceito, revolucionário, de incentivar o consumidor a trazer os seus próprios recipientes, “colar”. Mudar de hábitos é difícil”, explica Eunice Maia.

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Hugo Amaral/ECO

Desde a abertura da Maria Granel, conta a dona, “o crescimento do setor tem sido notável”. Tanto em Portugal, como no resto da Europa.

Segundo a Reaseau Vrac, entre 2010 e 2020, observou-se um “forte aumento” das lojas a granel na Europa. E os cenários de crescimento médio sugeriam que, nos três anos seguintes, até 2023, o número destes espaços poderia aumentar em 87% para aproximadamente 5.500 lojas, com um volume de negócios de 514 milhões de euros.

Numa estimativa que classifica como conservadora, a associação prevê que, até 2030, esse valor possa chegar a 1,2 mil milhões de euros, ao passo que no cenário mais otimista a avaliação atinge os 3,9 mil milhões de euros. “Se estas previsões se concretizarem, há um futuro positivo para o setor livre de embalagens na Europa”, lê-se no relatório.

Além do crescimento no negócio, a venda a granel deixou de ser, principalmente, uma opção para os legumes e fruta fresca, ou cereais e frutos secos. Hoje em dia, o portfólio de produtos continua a expandir e, por exemplo, nas duas lojas da Maria Granel, em Lisboa, as opções já incluem produtos de cosmética, higiene feminina, higiene oral e até detergentes.

Grandes superfícies ajudam a promover, mas não recebem convite para a iniciativa

Embora a iniciativa conte com a participação de organizações e do comércio local, o contributo dos supermercados em popularizar este tipo de consumo não passa despercebido. Ainda assim, não foi o suficiente para convencer a organização do Mês do Granel a estender o convite às grandes marcas. Da parte da organização, argumenta-se que as cadeias de valor e propostas de negócio são diferentes e não promovem aquilo que a iniciativa defende.

“Temos uma posição clara sobre os supermercados e não estão nesta campanha por um motivo: o nível de relação entre o consumidor, o supermercado e o produtor não tem nada a ver com as lojas locais”, explica Sara Morais Pinto, enaltecendo o nível de proximidade que existe entre o consumidor e o produtor, através do comércio local.

Reportagem granel - 16MAR23
Hugo Amaral/ECO

Já Eunice Maia, embora reconheça “o papel” das grandes superfícies na promoção do consumo avulso, defende que continua a ser evidente que “as cadeias e propostas de valor são completamente distintas”.

“Acho que do ponto de vista do consumidor, a mudança só acontece quando se generaliza e se massifica. Há uma voz importante a desempenhar nessa área, e sem dúvida que têm um papel. Mas estamos a falar de cadeias e propostas de valor completamente distintas”, lamenta.

Ainda assim, a adesão ao granel nestes espaços é significativa. Da parte da Auchan, verificou-se até à data um crescimento de 22%, face a 2022, neste tipo de consumo.

“Esta modalidade de compra é bem recebida, de forma geral”, sublinha a diretora de responsabilidade corporativa, ambiental e social da marca Auchan, Rita Cruz, ao Capital Verde, referindo que os frutos secos e desidratados e as especiarias são os alimentos com maior procura.

“Além de todas as vantagens identificadas, o facto de aumentarmos cada vez mais a oferta de produtos a granel, nomeadamente dentro da alimentação saudável, ou mesmo o facto de o cliente conseguir encontrar alternativas diferenciadas, tem contribuído de forma positiva para este incremento”, adianta a Rita Cruz.

A realidade é a mesma no Continente que, embora não tenha uma avaliação quantitativa sobre este crescimento por ter aderido ao granel mais recentemente, nota que “é notório o crescente interesse do consumidor com aspetos que vão para além da qualidade ou do preço dos produtos”.

“Estamos a testar e a compreender a adesão dos clientes ao formato, sendo ainda prematuro tirar conclusões”, adianta Mariana Pereira da Silva, diretora de sustentabilidade da MC (dona do Continente), frisando, no entanto, que a “iniciativa assume um espaço central na agenda de sustentabilidade do Continente”.

Questionada sobre se o impacto a nível local será suficiente para promover novos hábitos de consumo, e se isso não poderia ser impulsionado pelas grandes marcas, Sara Morais Pinto rejeita a tese e mantém-se otimista: “Se juntarmos a soma dos locais, como se fossem gotas, fazem um oceano. Aqui as gotas, que são as lojas, fazem uma diferença muito grande“, sublinha.

Setor quer flexibilização da regulação do granel

Depois de 30 dias a promover o recurso ao comércio a avulso e sem embalagens descartáveis, o Mês do Granel culminará com um evento a 30 de março, dia em que as Nações Unidas assinalam, pela primeira vez, o Dia Internacional Lixo Zero. Nesse dia, será realizado, em Lisboa, um debate com a organização da iniciativa, membros da sociedade civil e o ministro do Ambiente da Ação Climática, Duarte Cordeiro. No final, será lançada uma petição para a revisão e flexibilização da regulação do granel para que possa abranger mais alimentos, como o arroz ou alguns tipos de farinha.

“Queremos chamar a atenção dos políticos para poderem transformar a legislação de forma a tornar a venda de produtos a granel mais favorável” Hoje, nem todos podem ser vendidos dessa forma”, revela a co-fundadora da Zero Waste Lab.

Para a dona da Maria Granel, a legislação atual “vai em contraciclo” com a estratégia do Governo e do resto da Europa de querer reduzir o desperdício e cortar na dependência dos plásticos. “Temos esse rumo desenhado, mas a legislação não acompanha. Essa mudança é para ontem”, sublinha.

Já a Zero explica que a revogação da proibição de venda de alguns produtos a granel em território nacional permitirá aproximar a legislação da realidade francesa, “que é bastante mais abrangente”.

Além disso, enumera Susana Fonseca, a estratégia também deve passar por ajudar os novos empreendedores neste setor “a saber exatamente as regras a que estará sujeito”. “Tratando-se muitos de pequenos negócios, ainda se torna mais importante esta componente de enquadramento claro das obrigações de quem investe no setor”.

Para Sara Morais Pinto, o setor, embora tenha “imenso espaço para abrir novas lojas”, não se consegue multiplicar perante a falta de “um contexto favorável económico e político” para essas lojas. “Ainda têm muitas dificuldades“, alerta.

Mas Portugal não é o único. Segundo a francesa Reseau Vrác, “existe uma necessidade de clareza e consistência com respeito às definições regulamentares de vendas a granel e higiene alimentar em lojas livres de embalagens”, e pedem mais investigação sobre a situação da legislação nesta área na União Europeia e nos Estados-membros.

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