O filho do taxista que é motorista da Uber

João Ferraz é filho de um taxista mas isso não o impede de "trabalhar para a concorrência". É motorista da Uber há três meses. E o pai? O pai não se importa.

Táxis e Ubers não têm de ser como água e azeite. E o caso de João Ferraz é a prova disso mesmo. Com 20 anos, desde agosto que conduz um Citroën C4 Grand Picasso na região de Lisboa. Fá-lo ao serviço da Uber, o polémico serviço de transporte privado no centro de uma disputa com os taxistas. É por causa dele, e de outros como ele, que muitos taxistas portugueses se manifestam esta segunda-feira contra aquilo que consideram ser concorrência desleal.

A história começa em fevereiro deste ano. João Ferraz estava à procura de emprego e encontrou um anúncio a pedir um motorista privado. “Fui à entrevista e, quando lá cheguei, disseram-me que era para a Uber”, conta ao ECO. Aceitou logo, embora soubesse “muito pouco” da empresa. Mas era obrigatório ter pelo menos dois anos de carta de condução — e João Ferraz não os tinha. A oportunidade ficou pendente até agosto, altura em que começou a trabalhar na empresa do anúncio. Uma empresa parceira da Uber que fornece motoristas e viaturas.

As duas primeiras semanas foram “ótimas”. Levava o carro para casa e “começava às horas que queria”, pois o patrão “ainda não estava a trabalhar”, diz. Começou logo a transportar passageiros, sem formação e sem experiência. E essa é uma razão pela qual João Ferraz “teme um bocado pela Uber”: “Eu sei conduzir. Mas alguém com dois anos de carta pode não ter desenvolvido as capacidades para conduzir como um motorista profissional. Estamos equiparados a motoristas profissionais sem ter formação para tal”, admite. Agora já não é bem assim. O carro fica arrumado na empresa e João Ferraz faz o “horário da tarde”, cruzando-se muitas vezes com o pai, José Ferraz, na estrada. O pai é taxista.

João Ferraz é motorista da Uber há três meses. O pai, José Ferraz, é taxistaTelmo Fonseca/ECO

“Fiquei com um pouco de receio”

João Ferraz não vive com o pai. Nunca viveu. Mas sempre se deu bem com ele. “Sempre foi uma relação muito boa”, garante ao ECO. Contudo, quando aceitou conduzir para a Uber, optou por não lhe contar logo. “Na altura fiquei com um pouco de receio, porque eu nunca tinha falado com ele acerca da Uber e não sabia qual ia ser a reação dele ao saber que eu era motorista”, diz. Apesar de José Ferraz, o pai, nunca se ter mostrado contra a empresa, optou por contar primeiro à avó paterna, que já “tinha ouvido falar da Uber na televisão”, conta.

“Numa das viagens que fiz, acabei por ir parar a Odivelas, mesmo muito perto da casa da minha avó. Fui visitá-la e acabei por lhe dizer que estava a trabalhar para a concorrência do meu pai. Ela compreendeu perfeitamente”, recorda. Mas pediu-lhe segredo. “Não contes já ao pai, que eu vou ver qual é a opinião dele para saber como é que lhe hei de contar”, disse-lhe nesse dia. A prece foi em vão. Mal chegou “ao fim da rua”, o pai ligou-lhe: “Então, rapaz? Como é que é? Trabalhas para a concorrência?”

Não quero arranjar qualquer tipo de problema com os taxistas. A minha intenção é ganhar dinheiro, estar a trabalhar.

João Ferraz

Motorista da Uber

“Disse à avó para não contar”, mas a avó contou. Contou tudo. Só que o pai não reagiu mal. Antes pelo contrário. “Não lhe interessava o que é que eu estava a fazer. O que lhe interessava é que eu tinha um trabalho. Ficou extremamente contente e, inclusive, deu-me dicas”, conta. Quais? “Locais bons para apanhar pessoas” e “pontos turísticos da cidade, caso precisasse de mostrar a alguém”, refere. Além disso, deixou-lhe uma advertência: “Não te cruzes com os taxistas, há aí uns que não são boa peça”, revelou.

Para registo, José Ferraz “não é propriamente um taxista de praça”, aponta o filho. Tem “uma carrinha” adaptada a pessoas com deficiência, pelo que costuma ter clientes fixos. Ainda assim, “faz praça” em dias com menos serviço. “É taxista na mesma”, explica João Ferraz. E é uma pessoa “extremamente calma”, acrescenta.

Partilha de clientes

José e João Ferraz são concorrentes. E também são pai e filho, pelo que, segundo o motorista da Uber, o pai até não se importa de lhe passar alguma clientela. “Há pessoas que, para viagens grandes, escolhem os taxistas. Mas por vezes não gostam dos valores. Às vezes, se o meu pai souber que têm a aplicação, acaba por me passar [esses] clientes”, assume João Ferraz.

A estratégia é simples. O passageiro contacta diretamente o motorista da Uber. Este põe-se offline enquanto se desloca até ao local indicado. Depois, “a pessoa entra no carro, coloco-me online, [o passageiro] chama o Uber e automaticamente vai-me calhar a mim, porque já está dentro do carro”, detalha o motorista. É legal nos termos da Uber? “Teoricamente sim”, diz, confirmando ser “uma prática corrente” entre “a maior parte dos motoristas” da aplicação. “Isto para mim não tem qualquer tipo de problema. O que faço é legal. A pessoa usa a aplicação, está a descontar, tem fatura”, defende-se João Ferraz.

Às vezes, se o meu pai souber que têm a aplicação, acaba por me passar clientes.

João Ferraz

Motorista da Uber

No entanto, o motorista vai mais longe e fala de outra situação bem diferente. “O que eu não gosto, e que outros Ubers fazem e eu já vi, é pararem à noite junto a bares e discotecas, [onde] muito do pessoal novo ainda não tem a aplicação ou simplesmente quer apanhar um táxi e está na estrada à procura de um. Já vi Ubers a pararem para essas pessoas entrarem. E eu duvido que [esses passageiros] tenham a aplicação”, denuncia. Como são faturadas essas viagens é um assunto que, para o jovem motorista, exige “mais fiscalização”.

Há motoristas da Uber a transportarem pessoas sem a aplicação, denuncia João Ferraz
Há motoristas da Uber a transportarem pessoas sem a aplicação, denuncia João FerrazTelmo Fonseca/ECO

“O meu pai não vai à manifestação”

Esta segunda-feira, 10 de outubro, João Ferraz não trabalha. Nem ele nem os colegas. É que são esperados cerca de 6000 taxistas numa grande manifestação em Lisboa contra a atividade das plataformas online Uber e Cabify, que consideram estar à margem da lei. Reclamam a paragem imediata destes serviços, mas a opinião não é unânime entre os taxistas. “O meu pai não vai à manifestação. Não é apologista disso nem quer arranjar confusões”, diz João Ferraz.

A empresa para a qual João Ferraz trabalha não será a única parceira da Uber a optar por não sair à rua neste dia. “Tenho falado com outros [motoristas da] Uber e muitos deles não vêm trabalhar”, avança. A justificação é simples: a manifestação “vai causar bastante trânsito nalgumas ruas”, e ninguém se quer envolver “em confusões com taxistas”. Aliás, o próprio José Ferraz aconselhou o filho a não o fazer: “Falei com o meu pai e ele disse que era melhor eu não vir”, conta. Fonte oficial da Uber garantiu ao ECO que a plataforma vai funcionar neste dia, não confirmando uma paragem do serviço em dia de manifestação. No entanto, este domingo, a empresa enviou uma mensagem aos utilizadores, onde admite que “as dificuldades de circulação na cidade e o acréscimo de pedidos de viagem com a Uber poderão limitar a disponibilidade de veículos em certos períodos”.

O meu pai não vai à manifestação. Não é apologista disso. Está na dele, mesmo. Não quer arranjar confusões.

João Ferraz

Motorista da Uber

Gorjeta choruda

É uma memória que o jovem motorista guarda e conta com entusiasmo. Aconteceu “logo no início”, numa das primeiras viagens que fez. Foi chamado por um grupo estrangeiro de cinco pessoas, mas os carros da UberX (que é o serviço mais básico da Uber), por norma, são viaturas para cinco pessoas. Só permitem transportar até quatro passageiros, mais o motorista. Com João Ferraz, a situação é diferente. A carrinha C4 que conduz dá para sete pessoas. “Na altura, tinha os bancos para trás. Iam apenas cinco lugares”, explica. “E perguntaram-me se, sendo cinco pessoas, podiam ir apertadinhas lá atrás. Tudo em inglês”, lembra. “Não é preciso, não há problema nenhum, que isto tem mais dois lugares atrás”, disse-lhes.

“Ficaram radiantes”, conta. Pediram-lhe o número de telemóvel e ele deu. Dar o número era “uma coisa” que ainda não lhe “tinha ocorrido na altura”, refere, mas aceitou. “O meu patrão já me tinha falado que se podia fazer, mas nas minhas primeiras semanas de trabalho, ainda estava a ver como é que era”, salienta. De qualquer forma, facultou o contacto ao grupo, que, mais tarde, o contactou. Queriam que João Ferraz os deixasse num restaurante. A tal estratégia, portanto. E assim fez: “Meia horinha antes coloquei-me offline [na aplicação da Uber], cheguei ao local e apanhei os clientes”, descreve.

Foi quando chegaram ao restaurante que o inesperado aconteceu. Um dos cinco passageiros, um rapaz “que ia supostamente ficar de fora caso não o deixasse entrar”, ficou para o fim, “agradece-me bastante e dá-me 20 euros de gorjeta”, garante. Diz que ficou “a olhar para a nota”, sem reação. Pensou: “A sério que me estás a dar 20 euros?”, mas o rapaz “agradeceu muito e foi embora” para o restaurante. Mais tarde, ainda voltou a transportar o grupo até ao aeroporto. “Compensou mesmo. Fiquei extremamente contente”, diz.

Um grupo já lhe deu 20 euros de gorjeta, conta João FerrazTelmo Fonseca/ECO

Lisboa, um mercado sobre-explorado

O futuro de João Ferraz pode nem sequer passar pela Uber. Gosta de conduzir. Isso é certo. E até tem um tio que, já em fevereiro, o tentou convencer a fundar uma empresa parceira da Uber. Mas o que João Ferraz quer mesmo “é abrir uma loja de animais”. Já lá vamos. Quanto à empresa parceira, pediu ao tio para esperar: “Já que entrei nisto, deixa-me ver como é que é a situação, se compensa ou não compensa. E depois logo pensamos nisso”, disse-lhe. “A minha ideia é outra coisa completamente diferente de ser motorista da Uber”, conta ao ECO. A loja de animais e de produtos para animais, que já se encontra projetada na mente de João Ferraz, “não é [uma loja] normal”. Quer fazer uma coisa “mais moderna, mais inovadora”, explica. Terá de “funcionar bastante online. Porque, no fundo, é o que movimenta mais dinheiro hoje em dia”, recorda.

[Em Lisboa], acabam por ser tantos Ubers para tão poucos clientes que, às vezes, acabamos por estar ali no Príncipe Real meia hora ou mais, parados, à espera que nos chamem. Ainda mais [Ubers] do que táxis do outro lado da praça.

João Ferraz

Motorista da Uber

O próprio futuro da Uber é, aliás, incerto. Indícios de um mercado saturado e sobre-explorado começam, aos poucos, a aparecer. E João Ferraz já os está a sentir na pele. “Lisboa é um ponto turístico com vários clientes da aplicação. Só que os motoristas vêm todos para Lisboa, numa tentativa de ter mais corridas”, explica. “Acabam por ser tantos Ubers para tão poucos clientes que, às vezes, acabamos por estar ali no Príncipe Real meia hora ou mais, parados, à espera que nos chamem. Quatro, cinco, seis Ubers parados, ainda mais do que táxis do outro lado da praça”, revela ao ECO.

Doravante, deixará as estradas de Lisboa e passará a operar na zona de Sintra. “É um modelo diferente. Podem ser menos viagens, mas as distâncias são maiores, o que significa que o valor também será. Aqui do centro de Lisboa, levar uma pessoa ao aeroporto não é a mesma coisa do que levar uma pessoa de Sintra ao aeroporto”, explica. “Compensa muito mais ir para Sintra, porque tem muito menos Ubers e os clientes, apesar de serem poucos, chegam para os Ubers que lá estão”, garante. Resta saber por quanto tempo.

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