De países e mulheres
"A los países, como a las mujeres, hay que conocerlos acabados de levantar.” Gabriel Garcia Marquez, esse mulherengo de bigode, percebia muito de países mas de mulheres, está quieto!
Eu cá quando acordo nem a mim me conheço, quanto mais ao código postal onde ressono. Aliás, a coisa que eu mais gosto de fazer em viagem é dormir. E para dormir, não há como África.
Mas eu percebo. Os sítios são bons de ver quando o sol nasce, sonolentos e mansos. A temperatura é suave, a luz é perfeita, as praias estão desertas e eu sonho com tudo isto embalada pelo refrão da ventoinha. Quando finalmente acordo, já o Malawi tomou banho de chuva, comeu nsima ao pequeno-almoço e já está todo aperaltado a vir do mercado.
O viajante rapidamente percebe que as primeiras impressões enganam. Um sítio à chuva é diferente do mesmo sítio ao sol. Às sete da manhã, eu sou um penhasco mas às onze já estou um borracho. A maior parte das vezes, só temos de esperar uns dias para o maior buraco se tornar numa simpática toca. A paciência é, de longe, a melhor maquilhagem.
Quando saí do Ilala (tiveram que me mandar borda fora, porque eu já me tinha amarrado à cama) e desembarquei em Nkhata Bay, eu queria fugir. Imaginem o cenário dos Les Misérables, uma doca medieval dominada por bêbados que logo se agarraram a mim que nem poetas colombianos. A lama lambia-me as pernas desavergonhadamente, a mochila queria deitar-me ao chão, a chuva quente colava-me a roupa ao pelo e é nesta altura que eu percebo que sou uma misérable também e o meu sonho é acordar numa cama quadrada, limpinha e segura. Mas não dá. Não há! Queres cama, vais ter de lutar para lá chegar.
Passados uns dias, já trato Nkhata Bay por tu. Que sitiozinho mimoso! Aqui come-se um belo frango da semana passada, ali panquecas felizes feitas pelo rasta, acolá mando costurar vestidos em lindas capulanas que aqui se chamam Chitenje, além joga-se Bao (um jogo matemático com sementes que se parecem demasiado a M&Ms, para eu me conseguir concentrar). Há até um cineminha com filmes pirateados que também vende gelados (pensem só nos efeitos dos cortes de eletricidade em coisas congeladas, livra-te!). E os bêbados passam o dia a dormir ressacados, são fáceis de evitar.
Os lodges ficam todos em lindas colinas verdes, à beira do lago. A paisagem é escocesa e o clima também. Não admira que o Livingstone por aqui tenha ficado (há até uma Livingstonia, perdida nas montanhas). Todos os dias acordo com a chinfrineira dos macacos. Todos os dias adormeço com a canção deste mar-lago.
Hoje apanhei um táxi-bicicleta para ir à vila comprar fruta. As crianças, quando me veem, esticam os braços para as fazer girar. De um radiozito, o Simon e o Garfunkel chamam pela Cecília, o rasta conta-me que esta música foi banida há umas décadas pelo presidente Banda, quando o romance com a sua Cecilia deu para o torto (se calhar não a deixava dormir o suficiente). Já tudo me parece seguro, bonito e solar.
Na doca, desembarcam novos viajantes, leio-lhes um certo pânico no olhar. Aproximo-me com um sorriso à mulherengo de bigode e asseguro-lhes:
– Não se preocupem, os países são como as mulheres, há que conhecê-los devagar… Mas preparem-se para se apaixonar.
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Crónicas africanas são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. Durante quatro meses, o ECO vai publicar as melhores histórias da viagem, que pode ir acompanhando também aqui e aqui.
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