Dívida pública afunda em 2021. Duas pistas explicam mistério

  • Margarida Peixoto
  • 18 Abril 2017

No Programa de Estabilidade, o Governo diz que vai cortar mais de 18 pontos à dívida pública, em apenas cinco anos. O segredo está na gestão da almofada de liquidez e numa medida extraordinária.

No Programa de Estabilidade, há um número que salta à vista: 109,4% do PIB — é o valor do rácio da dívida pública projetado para 2021, o último ano do horizonte apresentado pelo ministro das Finanças, Mário Centeno. Ao contrário do que tem vindo a ser hábito, desta vez o número surpreende por ser pequeno: fica 13,4 pontos percentuais abaixo do que espera o Conselho das Finanças Públicas e 15,9 pontos aquém da projeção do FMI. Seja bem-vindo ao mistério da redução da dívida pública.

A machadada na dívida

Acordamos em 2021. A economia portuguesa está a crescer, tem um superavit orçamental e alguém deu uma machadada na dívida pública: está abaixo dos 110% do PIB. De um ano para o outro encolheu 8,2 pontos percentuais — e isto depois de estar a diminuir a bom ritmo desde 2017. Este é o país que Mário Centeno perspetiva para daqui a quatro anos, no Programa de Estabilidade entregue à Assembleia da República na semana passada.

A projeção do ministro das Finanças é, no mínimo, intrigante. Mário Centeno revê em alta os valores até 2020 (ou seja, face ao que estava planeado na versão do ano passado do Programa de Estabilidade, o Governo assume agora expectativas mais negativas) mas ainda assim chega ao final do horizonte de projeção com um valor ainda mais otimista.

O gráfico seguinte mostra a dimensão da proeza a que Mário Centeno se propõe: o ministro diz que chega a 2021 com a dívida mais baixa da década, um número menor do que o verificado em 2011.

Dívida pública abaixo dos 110% do PIB

Valores de 2017 a 2021 são projeções. Fonte: Banco de Portugal até 2016, Ministério das Finanças para o período entre 2017 e 2021

O cenário

A descida da dívida pública prometida pelo ministro surge num contexto em que o PIB português cresce (em termos nominais, aumenta entre 3% e 4% ao ano) e o défice encolhe — dois fatores que, de facto, concorrem para a melhoria do rácio.

Apesar de melhorias constantes no saldo primário (que desconta os gastos com os encargos da dívida) não há medidas de austeridade claramente identificadas, antes pelo contrário: há uma promessa de continuidade da política de reposição dos rendimentos. Destaca-se o descongelamento das progressões para a função pública, o subsídio para os baixos rendimentos em sede de IRS, a atualização das pensões e, até, a eliminação das taxas contributivas extraordinárias para a banca, energia e farmacêuticas, a partir de 2019.

É certo que há a promessa de reequilibrar o peso dos impostos diretos versus o dos indiretos, mas aqui a meta para o aumento da receita não vai além de 90 milhões de euros por ano, através de “outros impostos sobre a produção e importação”.

Os suspeitos

Para encontrar a explicação para a redução do rácio da dívida há quatro suspeitos:

  1. O PIB: sempre que o valor nominal do PIB aumenta, o peso da dívida diminui;
  2. O saldo primário: sempre que há excedente, este abate à dívida;
  3. Os juros: a diferença entre receita e despesa pública primária até pode ser positiva, mas esse excedente pode ser todo consumido a pagar os juros da dívida, impedindo que esta seja amortizada;
  4. A almofada de liquidez: o Estado mantém uma reserva de dinheiro em depósitos para fazer a gestão diária das administrações públicas, mas não só. Procura também, através da acumulação destes depósitos, diluir a pressão da ida aos mercados para obter financiamento no tempo. Se evitar picos de necessidades de financiamento, fica menos sujeito ao apetite dos investidores pela dívida da República portuguesa.

No Programa de Estabilidade e Crescimento, Mário Centeno explica assim a variação dos 18,4 pontos percentuais do rácio da dívida entre 2017 e 2021: “Para esta trajetória contribui, essencialmente, o efeito do saldo primário, crescente ao longo do período de projeção.”

De facto, de acordo com os números apresentados, o excedente primário obtido será, ano após ano, cada vez maior. Em 2017 dá um contributo de 2,5 pontos percentuais para reduzir o rácio da dívida pública, mas em 2021 esta ajuda já será de 4,9 pontos percentuais.

O ministro das Finanças completa a sua explicação: “O efeito dinâmico, composto pelos efeitos conjugados dos juros e do PIB, torna-se benéfico para a diminuição da dívida a partir de 2018, o que significa que o crescimento da economia portuguesa permite compensar o impacto negativo do peso dos juros.”

Traduzindo, quer dizer que a partir de 2018, inclusive, o rácio da dívida passa a descer não só porque as administrações públicas geram um excedente que abate ao valor nominal da dívida, mas também porque o valor do denominador, o PIB, aumenta em valor suficiente para cobrir a variação dos custos com os juros. Resultado: o peso do endividamento no PIB diminui.

Este “efeito dinâmico” ainda vai penalizar o rácio da dívida este ano em 0,1 pontos percentuais, mas já contribui para a sua redução de 2018 em diante. Em 2021 ajuda em 0,7 pontos.

Por fim, o Programa de Estabilidade soma uma última explicação: “Os outros ajustamentos défice-dívida (stockflow) têm contributos diferenciados ao longo do período, sendo de destacar a maior utilização de depósitos bancários entre 2018 e 2019 e um aumento dos mesmos em 2020, antecipando as amortizações de dívida que irão ocorrer em 2021.”

Esta é a explicação mais hermética, mas está relacionada com o impacto que a almofada de liquidez tem no rácio da dívida. Desde que a dívida superou os 120% do PIB, um patamar importante para os investidores em dívida pública, que os governos passaram a fazer questão de distinguir entre dívida líquida de depósitos da administração central e dívida bruta — a que corresponde ao critério de Maastricht.

Esta distinção também ganhou relevância desde que o valor nominal da dívida e as necessidades de financiamento anuais aumentaram de tal forma que se tornou relevante ter uma almofada de liquidez guardada para diminuir a pressão dos mercados. Quanto maior for esta almofada, mais tempo Portugal aguenta sem pedir financiamento, caso as condições se revelem demasiado adversas.

O Programa de Estabilidade mostra que só este efeito contribui com 2,6 pontos para a redução do rácio da dívida. Mas como é que isto é possível?

Os culpados

Os números deixam poucas dúvidas: para a redução anormal da dívida em 2021, Mário Centeno está a contar de forma determinante com esta ajuda do ajustamento défice-dívida. Repare-se que em 2020, este efeito contribui negativamente para o objetivo de redução do endividamento, provocando um aumento do rácio na ordem dos 2,4 pontos percentuais.

O calendário de amortizações do IGCP ajuda a esclarecer o mistério: as necessidades de financiamento para amortização da dívida em 2021 são enormes: mais de 21 mil milhões de euros. E em 2020 caem abruptamente para cerca de dez mil milhões de euros.

Quando é que Portugal tem de pagar o que deve?

Nota: a maturidade dos empréstimos do MEEF será estendida por um prazo de sete anos em média. A extensão de cada empréstimo será operacionalizada próximo da respetiva data de amortização, não se esperando que Portugal venha a ter de refinanciar qualquer empréstimo do MEEF antes de 2026. Pode anular o MEEF no gráfico, clicando em cima da legenda. Fonte: IGCP

Como explica o gráfico, está prevista a amortização de 4,3 mil milhões de euros de um empréstimo do FMI, e 17 mil milhões de outra dívida de médio e longo prazo. Trata-se de uma linha de obrigações do Tesouro no valor de 13,64 mil milhões de euros que vence em abril desse ano, e das três primeiras Obrigações do Tesouro de Rendimento Variável (OTRV) que vencem em maio, agosto e novembro desse ano. No total são 3,45 mil milhões de euros neste instrumento.

A ideia do Executivo é pré-financiar as necessidades de financiamento de 2021 logo em 2020. Esta estratégia impede que a dívida pública caia tanto em percentagem do PIB como poderia cair, uma vez que o IGCP passará a gerir uma almofada de liquidez superior. Mas em 2021, estes depósitos acumulados são utilizados para amortizar dívida e não será feito o esforço de repor os níveis da almofada de liquidez, uma vez que no ano seguinte se perspetivam necessidades mais baixas, apurou o ECO.

Por fim, há um último trunfo na manga: o contributo do saldo primário — na ordem dos 4,9 pontos percentuais, mais 0,5 pontos do que o esperado para 2020 — conta com uma medida one-off que será totalmente dirigida ao abatimento da dívida. Trata-se do recebimento de 948 milhões de euros de pre-paid margins do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, previsto para esse ano e fundamental para engordar o excedente primário.

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