700 reitores discutiram em Valência os desafios do ensino. Três ideias que vão marcar o futuro da educação

Cerca de 700 reitores, de um total de 14 países incluindo Portugal, reuniram em Valência para discutir os desafios e oportunidades no ensino superior. Um deles é a Inteligência Artificial.

Durante três dias, o futuro do ensino superior discutiu-se na cidade de Valência. Cerca de 700 reitores de 14 países, dos quais cerca de 30 de Portugal, rumaram à cidade espanhola para desenhar o que poderá ser o futuro da formação. Há que encontrar uma resposta aos novos desafios (e riscos) colocados pela inteligência artificial, novas soluções para aprendizagem ao longo da vida e responder à necessidade de adaptar os atuais modelos de ensino, apontaram no V Encontro Internacional de Reitores da rede Universia, na Cidade das Artes e das Ciências.

“Enfrentamos enormes desafios sociais e ambientais que exigem urgentemente soluções criativas, inovadoras e transformadoras. É (na universidade) que se formam os cidadãos que vão liderar as mudanças. Profissionais que necessitam de atualizar continuamente os seus conhecimentos e competências ao longo da vida, de modo a gerir com sucesso ambientes imprevisíveis”, lê-se na “Declaração de Valência sobre Universidade e Sociedade”, apresentada no final do encontro e subscrita por todos os intervenientes.

“Para o efeito, devem complementar as competências tecnológicas com outras disciplinas de ordem superior, como a inteligência emocional, a flexibilidade e o pensamento global. A par de todos estes conhecimentos, a relevância da perspetiva humanista, que fomenta valores como a solidariedade e a ética, é cada vez mais necessária num mundo que aspira a ser justo, equitativo e sustentável.”

Comitiva portuguesa que esteve presente no encontro em Valência.

 

Das várias ideias que emergiram do encontro sobre o futuro da formação, destacamos três.

Aprendizagem ao longo da vida

“Alargar a oferta de aprendizagem às diferentes etapas da vida adulta, ampliando e flexibilizando os formatos educativos das nossas universidades para que se adaptem às diferentes necessidades educativas de públicos numerosos e diversos”. Este foi um dos primeiros compromissos expressos na Declaração de Valência. Num momento em que as novas tecnologias já entraram pelo mercado de trabalho adentro, independente do setor, é fundamental que os profissionais sejam capazes de atualizar-se de forma a acompanhar a transformação do digital. Apostar na formação ao longo da vida, nomeadamente através do upskilling e reskilling, de forma a não deixar ninguém para trás, é uma prioridade, e as instituições do ensino superior devem contribuir mais ativamente para a solução.

“Os trabalhos estão a mudar. Provavelmente 15% dos trabalhos que conhecemos hoje em dia não vão existir, e, provavelmente, os que vão existir, se não formamos, se não fizermos reskilling e upskilling junto dos profissionais, eles não vão estar à altura de desempenhá-los”, defendeu Alexandra Brandão, global head of HR do banco Santander, durante a sua intervenção num dos painéis do evento sobre formar da maneira integral. “Os alunos que entram nas empresas são alunos para a vida”, acrescentou a gestora de pessoas, salientando que, no banco espanhol, uma das primeiras skills que está a a ser pedida ao talento jovem é uma atitude e mentalidade de desenvolvimento, de formação contínua.

Capacidade de questionar, pensamento lateral, empatia, multidisciplinaridade foram algumas das competências que Alexandra Brandão destacou como fundamentais no atual contexto do mercado de trabalho e considerou mesmo que “talvez não sejam assim tão soft skills”, como costumamos defini-las. Ao nível das competências mais técnicas, a global head of HR do Santander salientou que as competências digitais são imprescindíveis e já transversais a qualquer setor.

Qualquer revolução implica uma reorganização do mercado de trabalho, e esta não é exceção.

Nuria Olivier

Diretora de ciência de dados na Data-Pop Alliance, assessora científica principal no Instituto Vodafone e cofundadora e vice-presidente do European Laboratory for Learning and Intelligent Systems

Uma preparação que deve, desde logo, começar nas universidades, mas continuar ao longo da vida. “Como já ouvi aqui, a universidade está longe de ser algo que deveria terminar aos 22 anos”, disse.

“É inevitável. Qualquer revolução implica uma reorganização do mercado de trabalho, e esta não é exceção”, disse, por sua vez, Nuria Olivier, diretora de ciência de dados na Data-Pop Alliance, assessora científica principal no Instituto Vodafone e cofundadora e vice-presidente do European Laboratory for Learning and Intelligent Systems. E relembrou que, ao contrário das revoluções anteriores no mercado laboral, esta está a ter impacto “sobretudo nas profissões mais qualificadas, desde a medicina à advocacia, passando pelas indústrias criativas”.

Sara Harper, por sua vez vez, levantou ainda outra questão. “Os adultos acima dos 40/50 anos têm a inteligência cristalizada, capacidades de liderança, pensamento lateral, capacidade de análise… Não deveríamos estar preocupados em ter uma mão de obra acima dos 40 anos”, defendeu a docente na Universidade de Oxford e especialista em demografia, incentivando a comunidade universitária a abandonar a ideia de que os profissionais acima dos 50 anos não são tão hábeis para as novas tecnologias como as gerações mais jovens.

Universidades “valentes, mas responsáveis”

A ideia de que o modelo mais clássico de formação está ultrapassado, ou pelo menos tem de ser renovado e adaptado às novas necessidades de alunos e ao mercado de trabalho, também ficou clara. “Precisamos de cursos de curta duração, upskilling e reskilling. Adaptar a formação”, afirmou Nuria Olivier. Salas de aula ou anfiteatros, com um modelo de ensino expositivo através de um power point que se apresenta aos alunos, estão a perder terreno, dando lugar a um modelo mais colaborativo e, sobretudo, personalizado.

Para a professora de Oxford, os estudantes serão, cada vez mais, os responsáveis pelo seu percurso educativo, com planos curriculares mais personalizados do que nunca. As universidades, por sua vez, têm de abraçar a interdisciplinaridade. “As universidades têm de mudar para este conceito, em vez de ser cada professor a dar a sua disciplina”, afirmou. Aliás, este foi mesmo um dos compromissos assumidos na Declaração de Valência: “Aumentar a interdisciplinaridade na investigação e promover a transferência e a ampla divulgação dos seus resultados em benefício da sociedade.”

Edward Roekaert Embrechts, reitor da Universidad Peruana de Ciencias Aplicadas (UPC – Peru), concordou que as gerações de hoje pedem cada vez mais uma formação com maior liberdade e poder de escolha, e admitiu ser urgente mudar a forma como as instituições universitárias ensinam hoje em dia. “Até porque começam a aparecer instituições mais ágeis e com programas, muitas vezes, mais pertinentes. Se queremos competir com estas instituições, temos de mudar a forma como operámos até aqui”, considerou.

Tenho de admitir que nem mesmo uma universidade como Oxford está, neste momento, preparada para dar a formação e as competências de que os alunos irão precisar.

Sara Harper

Docente na Universidade de Oxford e especialista em demografia

Uma mudança que parece ser necessária em todas as geografias do globo. “Tenho de admitir que nem mesmo uma universidade como Oxford está, neste momento, preparada para dar a formação e as competências de que os alunos irão precisar. Não é só uma questão técnica, de sabermos usar ferramentas como a Inteligência Artificial, é pensar nas questões éticas que se levantam e como vamos trabalhar lado a lado com algo não humano. As instituições estão a olhar para isso, mas tudo se mantém como se estivéssemos no século XX. Estão um pouco paradas no tempo”, referiu Sarah Harper.

Apesar de todos os avanços e da oportunidade de inovação à nossa frente, uma das ideias mais presentes ao longo deste encontro entre reitores foi sobre a necessidade de regulação da Inteligência Artificial. “Qualquer produto que vamos consumir tem de ser regulado e avaliado previamente, sejam medicamentos, comida… Porque é que os serviços digitais, que até são, muitas vezes, usados por crianças de dois anos, não estão a passar por essa regulamentação?”, questionou Nuria Oliver. “Temos de garantir que esta tecnologia é segura.”

Nem que, para isso, seja preciso avançar mais devagar, acrescentou Pilar Manchón, responsável pela estratégia de pesquisa de IA conversacional no Google AI, que partilhou o painel sobre a contribuição da universidade para a revolução tecnológica com Oliver Nuria. “Estamos a evoluir muito rápido. Não queremos parar, queremos estar sempre à frente. Mas, afinal, o que é que realmente importa? O ser humano. Devemos pensar em ser mais humanos com a IA. Não devemos de deixar de fazer as coisas de forma responsável, mesmo que isso implique ir mais devagar. Devemos ser valentes, mas responsáveis.”

Não temos de travar a investigação, temos é que garantir que o seu uso [das novas tecnologias] é seguro. A sociedade não tem de ser a cobaia.

Pilar Manchón

Responsável pela estratégia de pesquisa de IA conversacional no Google AI

“Neste momento, esta direção não está muito clara. Não temos de travar a investigação, temos é que garantir que o seu uso [das novas tecnologias] é seguro. A sociedade não tem de ser a cobaia”, acrescentou a especialista.

Abraçar todos os eixos da mobilidade

A mobilidade e a internacionalização foram também ideias que vários palestrantes salientaram durante os painéis de debates. E isso ficou expresso na Declaração de Valência, com os reitores a comprometerem-se a “facilitar diferentes formas de mobilidade para os estudantes e académicos das nossas universidades — incluindo a mobilidade geográfica, virtual e intersetorial — a fim de promover o intercâmbio e o enriquecimento cultural, bem como uma educação aberta e inclusiva”.

O reitor da Universidade Nova de Lisboa, João Sàágua, durante a sua intervenção no painel debate “Criando novos marcos e redes para a mobilidade”, admitiu que criar um ambiente internacional é uma prioridade no campus da Nova. “É importante que os estudantes tenham uma visão ampla do mundo, e mais humana. A mobilidade é ótima para isso”, sustentou.

Fernando León García, reitor da CETYS Universidad Mexico, que também fez parte do painel, defendeu a mesma ideia. “Não se pode considerar uma formação completa, se não tem algum tipo de internacionalização”, disse.

Não se pode considerar uma formação completa, se não tem algum tipo de internacionalização.

Fernando León García

Reitor da CETYS Universidad Mexico

Já a presidente da Universidade Santa Cecília (UNISANTA), no Brasil, relembrou ainda, num painel sobre formar de maneira integral, que, além de um público intercultural, as universidades vão conviver cada vez mais com “um público intergeracional”.

*O ECO Trabalho viajou a Valência (Espanha) a convite do Santander

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