“As plataformas vão ter mesmo de se conformar com a lei”

Com uma nova Lei do Trabalho, Miguel Fontes reage às mexidas nas políticas das plataformas digitais. "Seria de muito mau gosto que alguém procurasse de uma forma cínica contornar exigências", diz.

“A pretexto de modelos de negócio inovadores, não é tolerável que tenhamos retrocessos civilizacionais”, considera Miguel Fontes, secretário de Estado do Trabalho, defendendo as mudanças introduzidas com a nova Lei do Trabalho, em vigor desde maio, visando regular a relação laboral entre plataformas e trabalhadores.

Não podemos coabitar com uma situação em que as pessoas não têm direito a férias pagas, a proteção na doença, ao gozo de uma licença de parentalidade, a ter os seus descontos nos devidos termos para uma carreira contributiva para a reforma futura, apenas e só porque, de forma cínica, sublinho de forma cínica, se diz que isto não é uma relação de trabalho“, afirma Miguel Fontes.

“As plataformas vão ter mesmo de se conformar com a lei, porque a questão não é só em Portugal, é internacional, nomeadamente no espaço europeu“, reforça ainda o secretário de Estado que reage ainda às alterações realizadas pelas plataformas nas suas políticas. “Seria de muito mau gosto que alguém procurasse de uma forma cínica contornar exigências que têm mesmo de serem assumidas”.

O governante não se mostra preocupado com um eventual recuo das normas do Código de Trabalho que as confederações patronais consideram ser inconstitucionais. “Sinceramente, é uma questão que não tenho como preocupação. Não sei sequer se chegará ao Tribunal Constitucional. Mas acho que, primeiramente, a matéria não é constitucional, é sermos claros naquilo que queremos”, diz.

 

O novo Código do Trabalho alterou a relação laboral das plataformas digitais com os trabalhadores, visando reduzir a precariedade. Foi notícia de que os trabalhadores pensam avançar para o tribunal para ver reconhecido a sua ligação laboral às plataformas. Como comenta isto? Parece que a Lei não foi assim tão clara.

Já são vários os trabalhadores que, reconhecendo-se a si próprios como trabalhadores, com esta legislação, sentem-se empoderados para ir para o Tribunal de Trabalho fazer valer aquilo que têm como relação de trabalho com essas plataformas, que, em bom rigor, o que deveriam ter era um contrato de trabalho.

Foi isso que a alteração ao Código de Trabalho, com este artigo 12.º – A da presunção de laboralidade, veio fazer: criar um conjunto de indícios que permite, a quem entende que aquilo que tem é uma relação de trabalho não assumida que deveria dar origem a um contrato de trabalho – porque há cumprimento de horários, subordinação hierárquica, um conjunto de situações que configura uma relação de trabalho subordinado –, ir a um Tribunal de Trabalho e fazer valer essa perspetiva.

Aqueles que não se veem a si mesmo como trabalhadores, que se veem como prestadores de serviços em que fazem umas horas em complemento a outras atividades, poderão continuar a fazê-lo, porque não é para eles que a legislação foi criada.

Não podemos coabitar com uma situação em que as pessoas não têm direito a férias pagas, à proteção na doença, ao gozo de uma licença de parentalidade, a ter os seus descontos nos devidos termos para uma carreira contributiva para a reforma futura, apenas e só porque, de forma cínica, sublinho de forma cínica, se diz que isto não é uma relação de trabalho.

A pretexto de modelos de negócio inovadores, não é tolerável que tenhamos retrocessos civilizacionais. Temos de ter direitos para todos, independentemente se são ou não portugueses, mais pobres ou menos pobres, do setor de atividade. Não podemos coabitar com uma situação em que as pessoas não têm direito a férias pagas, à proteção na doença, ao gozo de uma licença de parentalidade, a ter os seus descontos nos devidos termos para uma carreira contributiva para a reforma futura, apenas e só porque, de forma cínica, sublinho de forma cínica, se diz que isto não é uma relação de trabalho.

Se não é, muito bem. Mas se o é tem que ser assumida. E as plataformas, tal como as entidades intermediárias, quem quer que seja que contrate estas pessoas – porque é disso que se trata, de contratação – têm de assumir por inteiro as suas responsabilidades. Enquanto sociedade, tolerar modelos de organização económica que sejam um retrocesso que parece que estamos não no século XXI, mas no século XIX … não queremos isso para nós, não podemos querer para os outros.

É bom que a sociedade portuguesa faça essa reflexão, é muito importante para precisamente termos uma exigência cívica maior relativamente a essas situações. Reuni várias vezes com as plataformas tecnológicas e não tenho nenhum problema com as plataformas tecnológicas, desde que elas não tenham nenhum problema com a Lei.

Essa é que é a questão: elas têm que se conformar ao cumprimento da Lei e poderão estar certas de que a própria legislação prevê um reforço das atribuições da Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) neste domínio, nomeadamente com a possibilidade de deitar mão a uma ação inspetiva no sentido de verificar estas situações. Nada contra a flexibilidade, tudo contra a precariedade. E temos que saber todos distinguir as duas situações.

Não é legítimo sabermos, como todos sabemos, que há pessoas que trabalham oito, dez, 12 horas por dia, todos os dias naqueles serviços e depois dizer que não é uma relação de trabalho, não é aceitável. O trabalho é um valor a ser protegido, preservado e dignificado.

Várias plataformas fizeram alterações às suas políticas para que os utilizadores que trabalham com a aplicação tenham “mais independência e controlo em relação ao seu trabalho”, noticiou o Público. Não acha que, entretanto, a lei e os critérios subjacentes à identificação de uma relação laboral já terão sido, de forma muito rápida, contornados pelas plataformas? Até que ponto estas regras acabam por tornar impossível provar em Tribunal uma relação laboral entre o trabalhador e a plataforma ou o intermediário?

Sinceramente, espero que não, que não seja isso ao que estejamos a assistir. Seria de um cinismo muito significativo verificar uma situação dessas, porque temos de ser todos exigentes no modelo em que vivemos, o modelo social europeu em que, com esforço de muitos, com conquistas de direitos por parte de muitos, com grande sacrifício, evoluímos enquanto sociedade.

Não podemos estar disponíveis para haver um retrocesso relativamente a esses direitos, que são direitos muito importantes e que temos que aspirar que sejam cada vez mais universalizados e não reduzidos.

Há uma questão que é evidente: as plataformas vão ter mesmo de se conformar com a lei, porque a questão não é só em Portugal é internacional, nomeadamente no espaço europeu. Não podemos permitir modelos de negócio que não respeitem o essencial dos direitos dos trabalhadores.

É com muito orgulho que vejo Portugal a liderar uma legislação que, ainda antes de haver uma Diretiva adotada pelos Estados-membros, neste momento ainda em discussão no seio da União Europeia, se antecipou e avançou nesse sentido. O que está a ser discutido a nível europeu é muito parecido com as soluções que adotamos no nosso ordenamento jurídico nacional.

Há uma questão que é evidente: as plataformas vão ter mesmo de se conformar com a lei, porque a questão não é só em Portugal, é internacional, nomeadamente no espaço europeu. Não podemos permitir modelos de negócio que não respeitem o essencial dos direitos dos trabalhadores: ter uma remuneração digna, ter proteção social na doença, na sua velhice através de construção de direitos de reforma, férias pagas. É uma exigência coletiva que todos temos de ter relativamente a esses modelos de negócio.

Não quero diabolizar ninguém, mas espero também que ninguém se preste a ser diabolizado e, portanto, seria de muito mau gosto que alguém procurasse de uma forma cínica contornar exigências que têm mesmo de serem assumidas e perceberem que temos de ter uma sociedade mais inclusiva e onde os direitos de todos sejam devidamente respeitados

A ACT tem uma exigência especial para monitorizar a aplicação da Lei no que toca às plataformas. Já aconteceu alguma coisa? O que está previsto em termos de fiscalização?

A própria legislação criou a obrigação, a meu ver desnecessária–- ACT tem já nas suas atribuições e competências a obrigação de o fazer – mas, para que não houvesse qualquer dúvida, a Assembleia da República, numa proposta que recolheu unanimidade, votou no sentido de que compete à ACT promover, durante o primeiro ano de vigência desta legislação, uma ação fiscalizadora. É precisamente isto que prevê no espaço de um ano.

A legislação entrou em vigor a 1 de maio e, evidentemente, que essas ações fazem parte de um plano que a ACT não deixará de incorporar no seu plano normal. Não descansaremos enquanto não tivermos um mercado de trabalho que seja verdadeiramente respeitador dos direitos, dos deveres, mas também dos direitos para com todos os trabalhadores. E é isso que queremos para os trabalhadores das plataformas, como de outros empregadores. Onde houver uma situação de desconformidade com a lei, a ACT terá de atuar e procurar que termine.

As confederações patronais consideram inconstitucionais algumas normas do novo código, como é o caso da proibição durante um ano do recurso ao outsourcing depois do despedimento coletivo. O Presidente da República quando aprovou o diploma referiu que poderia ter efeitos no mercado de trabalho contrários ao pretendido. Como comenta a posição do PR? E os patrões terão força e argumentos para levar o tema ao Tribunal Constitucional?

Vamos por partes. Registo que o senhor Presidente da República promulgou a legislação de trabalho digno e, por isso, entrou em vigor a 1 de maio. E que esta legislação foi amplamente discutida e mereceu, aliás, uma votação bastante ampla no Parlamento. Ninguém esperaria que uma reforma da legislação laboral com esta ambição, com este alcance, pudesse agradar a todos, com a mesma intensidade, sobre todas as matérias.

Vejo com grande naturalidade que haja entidades representativas de legítimos interesses dos empregadores que aqui e acolá entendem não ser consentâneo com o que defendem. Mas, com a mesma legitimidade, o Governo entende diferente.

O exemplo que deu é um bom exemplo, alguns entenderão que há matéria de inconstitucionalidade – não me compete a mim dizer. Se o tema chegar ao Tribunal Constitucional, será o Tribunal Constitucional a se pronunciar –, na minha opinião, e na do Governo, não há.

O Código de Trabalho não é um conjunto de artigos tecnicamente neutros. Uma lei a cada momento codifica um conjunto de valores, de opções. O que viemos dizer é que não é aceitável que uma empresa num dia proceda a um despedimento coletivo de centenas de trabalhadores e imediatamente esteja a contratar para as mesmas funções trabalhadores em regime de outsourcing de uma empresa de trabalho temporário.

Afasta-se do que deve ser a responsabilidade social de uma empresa. Esta tem como principal objetivo na sua constituição gerar um lucro, com certeza para os seus sócios, para os seus acionistas, mas não está dispensada desta responsabilidade social, hoje tão em voga, felizmente, para tantos empresários.

Dificilmente há opções que gerem aprovação consensual. Mas daí não vem nenhum problema. Temos um excelente diálogo social com todos os parceiros sociais, sejam eles os representantes dos trabalhadores, seja dos empregadores. Ao Governo compete a cada momento interpretar e zelar pelo interesse público.

E nesta matéria, a interpretação que fez do interesse público, considerados todos os interesses em presença, foi consagrar esta norma na legislação laboral, de não tornar possível o recurso ao outsourcing um ano após ao despedimento coletivo, como aliás acontecia nos despedimentos individuais.

Portanto, não receia que, chegando ao TC, que haja um recuo nessas normas?

Sinceramente, é uma questão que não tenho como preocupação. Não sei sequer se chegará ao Tribunal Constitucional. Mas acho que, primeiramente, a matéria não é constitucional, é sermos claros naquilo que queremos. O Governo foi claro em dizer aos portugueses que entende que o trabalho é algo de muito importante, que não se pode confundir com um qualquer outro custo produtivo.

Se o país vê partir aqueles que nos últimos anos andou a formar, investindo recursos públicos muito significativos para corrigir um défice de qualificações quando comparamos com os outros países, agora cometeríamos, coletivamente, um suicídio se nada fizéssemos, não apenas para retermos esses jovens, mas também para atrair outros que se queiram fixar e vir trabalhar.

Quando dizemos que as pessoas estão no centro das organizações, tenho que fazer tudo para as valorizar. Vivemos num espaço europeu de livre circulação. Hoje, o que impede os mais qualificados, com maior capacidade de serem recrutadas noutras geografias, de trabalhar para outro país? Nada. A não ser que façamos tudo o que nos compete para dizer que este país também é para jovens.

É uma questão de competitividade, porque se o país vê partir aqueles que nos últimos anos andou a formar, investindo recursos públicos muito significativos para corrigir um défice de qualificações quando comparamos com os outros países, agora cometeríamos, coletivamente, um suicídio se nada fizéssemos, não apenas para retermos esses jovens, mas também para atrair outros que se queiram fixar e vir trabalhar.

Criar melhores condições de trabalho, termos um direito de trabalho mais amigo dos trabalhadores, não é uma matéria contra a competitividade. Ao contrário, quem tiver as melhores práticas a este nível será mais competitivo, atrairá mais profissionais. Temos de ter esta consciência, se a não tivermos e acharmos que o que temos de fazer é comprimir os custos com o trabalho, em vez de andarmos para a frente, ficamos presos num modelo de desenvolvimento do qual há muito procuramos nos libertar, um círculo vicioso de baixos salários, de más condições de trabalho, sem capacidade de competirmos nas economias globais com produtos e serviços de alto valor acrescentado. E não saímos de um círculo vicioso de pobreza.

Esta é uma matéria que, a meu ver, não diz respeito a uma agenda sindical, aos partidos mais à esquerda versus mais à direita, é um desígnio nacional. Os jovens têm que sentir que este país é para si. Por isso, além destas alterações à legislação laboral, temos um conjunto de instrumentos de política – como a gratuidade das creches, o IRS Jovem – alinhados com o mesmo propósito: dizer aos jovens que vale a pena viver aqui porque serão devidamente valorizados e respeitados. Não perceber isto, é condenar o nosso país a uma situação de periferia e de perda de competitividade.

A taxa de desemprego jovem, apesar de ter baixado, continua acima da Europa. Acaba de dizer que é uma questão de competitividade, um desígnio nacional, fixar os jovens. Portugal até pode ter esse desígnio, mas as condições e o desemprego empurra-os para outros destinos.

Nos últimos 30 anos aumentamos significativamente as qualificações de todos, nomeadamente os mais jovens. As nossas empresas não se conseguiram modificar ao mesmo ritmo. O caminho não é reduzirmos as qualificações, é continuarmos a apostar nas qualificações e procurarmos que o nosso tecido económico avance no sentido de ter condições suficientemente interessantes para jovens promissores.

O programa Avançar tem como objetivo dar um foco de juventude, modernidade, de inovação às nossas empresas. As organizações têm de perceber que têm tudo a ganhar em abrir as portas a estes jovens qualificados. São ganhos que vão experimentar na prática.

O Estado tem que fazer a sua parte, como está a fazer com esta questão da fiscalidade, com políticas públicas, como a gratuitidade das creches, com programas e iniciativas como o Avançar (que arranca em julho). Vamos apoiar de forma muito expressiva as empresas a contratar. Mas numa modalidade suficientemente atrativa para os jovens: sem termo e em que o nível de entrada remuneratória seja, pelo menos, igual ao que o Estado paga a um técnico superior no início de carreira profissional, 1.330 euros.

O programa Avançar tem como objetivo dar um foco de juventude, modernidade, de inovação às nossas empresas. As organizações têm de perceber que têm tudo a ganhar em abrir as portas a estes jovens qualificados. São ganhos que vão experimentar na prática.

O programa Avançar é um sinal claro a quem contrata que o faça, por um valor digno, numa condição de contratação, que os jovens aspiram, com condições de estabilidade. Em cima disto, disponibilizamos uma bolsa de 150 euros mensais durante um ano aos jovens que participem neste programa.

foram emitidos mais de 500 vistos para nómadas digitais e o Governo anunciou um apoio adicional para a fixação desse tipo de trabalhadores no interior. Há algo mais previsto? Sente-se satisfeito com 500 vistos desde outubro?

São mais, até porque só necessitam de visto os trabalhadores não comunitários. Há muitos mais nómadas digitais e muito mais pessoas a trabalhar remotamente, europeus que não necessitam de visto para estarem aqui. O nosso objetivo é aproveitar essa apetência que existe por Portugal para também desenvolvermos dimensões, como a da coesão territorial, procurando canalizar alguns desses jovens para o interior do país.

Sendo-lhes indiferente, pela natureza do trabalho que desenvolvem, o local físico, hoje temos um interior que tem muito para oferecer em termos de qualidade de vida, com uma excelente infraestrutura tecnológica, boas redes viárias, uma qualidade de vida muito diferente e, portanto, temos de fazer essa promoção. É o que fizemos na última revisão do Interior Mais, um programa que ajuda à fixação de pessoas nos territórios de baixa densidade, tornar possível para os nómadas digitais, mesmo que não tenham uma relação de trabalho com nenhuma entidade empregadora em Portugal, se for em território do interior beneficiar desta medida.

Porquê? Ao instalarem-se, seguramente vão trazer com eles a dinamização económica e o desenvolvimento desses territórios, vão gerar desenvolvimento, trazer povoamento, o precisamos para equilibrar o território nacional.

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