Euro, dívida, banca. O panfleto político

O economista Mário Amorim Lopes escreve uma recensão sobre o "Euro, dívida, banca", um livro do PCP que serve de lançamento para uma campanha de defesa da saída do euro.

A proposta do PCP para “romper com os constrangimentos” e “desenvolver” Portugal está condensada em oitenta e nove páginas de tamanho A5, o que é uma pechincha literária dado o desiderato económico a que se propõe. O livro “Euro, dívida, Banca” remete de imediato para panfletos políticos de igual espécie, como o incontornável Manifesto Comunista. Mas esta parecença é casual, esvanecendo-se logo na primeira página. É que, se Marx e Engels fazem um uso irrepreensível da escrita, construindo uma narrativa que, discordando-se da ideia, é possível seguir com interesse, o livro do PCP é a este respeito sofrível, sendo sofrível o qualificativo a que alguma comiseração obriga.

Numa primeira análise, o panfleto político parece divergir também na escolha do bode expiatório que serve de mote à rogatória comunista. Se no Manifesto de Marx e Engels é a “burguesia”, um conceito sociológico, o alvo do escárnio político, em “Euro, dívida e banca” os visados pela investida são o Euro, a dívida e a banca, conceitos e instituições fundamentalmente económicas. Claro está que estes fenómenos económicos são o resultado, no entendimento do PCP, de uma agenda da “ortodoxia europeia”, que é “neoliberal”, e do “grande capital”, passe o pleonasmo. Temos então que, no fundo, se trata de uma contemporização da “burguesia”, pelo que até aqui o panfleto carece de originalidade. Presume-se que seja essa a ideia.

A solução do PCP assenta essencialmente em três pilares, ou idealmente na destruição destes: no Euro, na dívida (pública) e na banca (privada). Começa, porém, com um enquadramento nacional e internacional fértil em aforismos e em adágios populares, mas parco em contributos sérios. Ao referirem que “o livre comércio é o proteccionismo dos mais fortes” (pp. 19), os autores procuram dar portabilidade a uma ideia simples, mas não se prestam a mais do que a demonstrar que o PCP vive numa realidade paralela (a crítica, não coincidentemente, surge decalcada quase ipsis verbis do Manifesto Comunista).

Desconhecer o contributo que o livre comércio trouxe e traz a países como a Índia, China ou Bangladesh, tendo ajudado a retirar milhões de pessoas da abjecta miséria e a criar uma classe média, é quase tão grave como rejeitar denunciar as barbáries perpetradas pelo regime estalinista (um exercício que até um líder soviético, Nikita Krushchev, fez, deixando a plateia paralisada); quase tão grave como desconfiar que Pyongyang possa ser uma democracia; quase tão grave como ser licenciada em Relações Internacionais e, ainda assim, desconhecer o que possam ser gulags. Ou quase tão grave quanto as palavras de um deputado europeu do PCP, que a 6 de Abril de 2017, não de 1917, exultava os grandes resultados alcançados pelo regime venezuelano. Bem vistas as coisas, ignorar toda a evidência económica é, à luz do que o PCP a nos habituou, uma minudência.

O livro “Euro, dívida, Banca” remete de imediato para panfletos políticos de igual espécie, como o incontornável Manifesto Comunista. Mas esta parecença é casual, esvanecendo-se logo na primeira página. É que, se Marx e Engels fazem um uso irrepreensível da escrita, construindo uma narrativa que, discordando-se da ideia, é possível seguir com interesse, o livro do PCP é a este respeito sofrível, sendo sofrível o qualificativo a que alguma comiseração obriga.

Mário Amorim Lopes

Economista

A cruzada contra o Euro toma particular destaque na obra, sendo este apontado como a causa de todos os males que enfermam o país, tanto daqueles que podem ter que ver com política monetária e cambial, como daqueles que não têm que ver com coisa nenhuma. O Euro, segundo o PCP, “significou endividamento público, descontrolo orçamental e agravamento do défice” em vez de “contas públicas equilibradas” (pp. 35). Fica por explicar como é que a moeda força repetidos governos a gastar compulsivamente, ocorrência que seria mais bem explicada à luz da teoria da escolha pública.

Fica também por explicar porque é que Portugal do pós-25 de Abril, mesmo quando usava o Escudo, nunca conseguiu atingir um orçamento equilibrado, ou, por outro lado, como é que países que também partilham o Euro, como é o caso da Irlanda ou da Espanha, o conseguiram fazer. Fica também por explicar como é que, em 1973, o PIB de Portugal crescia 11.2%, e em 1975 caía para -4.3%. Fica por explicar, mas a explicação é sabida: foi a “valiosa experiência das nacionalizações e do desenvolvimento do sector empresarial financeiro público” (pp. 57). Recordemos, pois, o tempo do PREC: a reforma agrária, as expropriações e as nacionalizações, o colapso económico e, finalmente, a pré-bancarrota em 1976. As ideias do PCP são fundamentalmente desacertadas, mas as suas consequências têm desfecho certo: a miséria e a falência, que o PCP parece querer recuperar.

A colectividade — como não poderia deixar de ser, o livro é escrito e assinado por um colectivo do grémio da Soeiro Pereira Gomes; por colectivo entendamos, à falta de melhor definição, o rol de “intelectuais” que ocupam as fileiras do PCP e cujo ofício, para lá do epíteto, é desconhecido — lamenta também que os países, como é caso de Portugal, “sem moeda própria” e “sem um banco central” não possam “assistir financeiramente o Estado e a banca em situações mais complicadas” (pp. 22). Lamento deles, sorte a nossa, que não figuramos na lista de países que permitem e forçam o banco central a monetizar a despesa — lista que conta com portentos económicos como o Zimbabwe ou a Venezuela.

Não é por acaso que os bancos centrais não podem resgatar Estados em dificuldade — é que no passado isso conduziu à hiperinflação, à falência de muitos sectores da economia, e finalmente à eleição de um qualquer déspota que jurava ter a solução para tudo, pese embora redigida em mais páginas. Ou não fosse a República de Weimar uma memória presente.

Segue-se o segundo constrangimento, a dívida. Urge “renegociar a dívida” e “controlar publicamente a banca” por forma a arranjar “os recursos e os créditos” para financiar “o crescimento económico e o desenvolvimento” (pp. 14). Ou seja, o PCP quer renegociar a dívida para conseguir recursos e créditos. O PCP quer afastar os credores, desta forma aproximando-os. O paradoxo é insanável, como foi a total apatia do PCP perante a escalada do endividamento, promovida por recentes governos. Mais grave ainda quando Portugal não tem os recursos internos, e a baixíssima taxa de poupança atesta-o, para garantir todo o crédito necessário ao investimento. Conclui-se, portanto, que apenas por opção editorial, e não autoral, é que o livro não é uma obra de ficção.

O livro é, todo ele, uma agremiação ou de banalidades, ou de contrassensos. Por um lado, o PCP é contra o Euro e a União Europeia, mas, por outro, considera que se deve “aproveitar integral e criteriosamente os fundos comunitários” (pp. 69). Quer “acolher o investimento estrangeiro” (pp. 69), ao mesmo tempo que propõe aumentar a taxação sobre as empresas e nacionalizar “sectores estratégicos” como a “banca”, medidas conhecidas por gerarem uma corrida ao investimento directo estrangeiro, mas em sentido inverso. Acresce que o livro também é uma ode ao reacionarismo económico, o que não deixa de ser irónico.

A solução do PCP passa por reverter e concentrar a produção no sector primário e secundário, pois “agrava-se a terciarização da economia portuguesa, o aumento do peso dos serviços e comércio” (pp. 27). Enfim, há menos pesca à cana e mais tablets. Esta crítica ao sector dos serviços revela, por um lado, a usual desconfiança marxista perante aquele que era o ofício da burguesia, o comércio. Por outro, a total incompreensão de como se processa a evolução das economias.

À banca (privada) está reservado o capítulo quinto. Coincidentemente, ou talvez não, a quinta medida defendida por Marx e Engels no Manifesto Comunista visa também a banca, onde se defende a “centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com capital de Estado e monopólio exclusivo”. 170 anos volvidos, o PCP recupera a ideia e explana-a, não lhe acrescentando um único exemplo de um país onde a banca exclusivamente pública tenha sequer funcionado, quando mais representado um sucesso. Aliás, não por acaso, as referências à Caixa Geral de Depósitos, sorvedouro de recursos públicos, são escassas. Tirando a nota de que o banco público é “gerido como se fosse mais um banco privado” (pp. 61), o que, presume-se, isenta a CGD de qualquer ónus, nada é dito. Não é referido como a CGD, embora banco público, foi manietada a conceder crédito aos amigos do regime, a prestar favores políticos ou a facilitar negócios. A CGD não é, naturalmente, um caso exclusivo, como o BES, BPP ou BPN bem atestam. Mas é a prova de que a banca pública pouco ou nada resolve, e traz consigo as usuais ineficiências na alocação de crédito e na intermediação bancária.

O livro é, enfim, mais um instrumento panfletário para dar rotatividade às gráficas da edições Avante! e para gerar peças jornalísticas do que uma ferramenta para promover uma discussão séria. Para lá de meia dúzia de gráficos fracamente contextualizados, que procuram conferir uma patine de tecnicidade, o livro não tem densidade suficiente para promover a análise e a discussão dos problemas económicos que efectivamente prejudicam Portugal. Não se prestando a isso, que sirva de pretexto para uma piada soviética. Como é que os soviéticos resolveram a praga de ratos e ratazanas que afectava o Kremlin? Colocaram uma placa a dizer «Quinta comunitária»: metade dos ratos fugiram, a outra metade morreu à fome (segundo o Artigo 58 do Código Penal da URSS, propaganda anti-soviética constituía pena capital). Tudo isto por 8€, que a luta contra o capitalismo tem um preço, e não sai nada em conta.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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