Exclusivo Carrefour processa Sonae por dívidas dos supermercados no Brasil
Retalhista francesa avança com ação judicial milionária contra a Sonae para reclamar pagamento de condenações laborais e fiscais relativas aos supermercados no Brasil, vendidos em 2005 à Walmart.
O gigante retalhista Carrefour decidiu avançar com uma ação na Justiça contra a Sonae para tentar que o grupo português pague um conjunto de condenações a que foi sujeito em processos judiciais (civis, laborais e fiscais), que estavam pendentes à data da venda da operação no Brasil, em dezembro de 2005. De acordo com o processo que deu entrada no Juízo Central Cível de Lisboa, a que o ECO teve acesso, em causa está um valor superior a 8,8 milhões de euros, acrescido de juros.
Foi há quase 18 anos que o grupo liderado por Cláudia Azevedo decidiu sair do setor da distribuição no Brasil, onde possuía cerca de 140 lojas na região sul do país, através da venda dos seus ativos à americana Walmart por cerca de 635 milhões de euros. Uma posição que foi, entretanto, vendida a outras empresas do setor, até que em março de 2021 a retalhista francesa pagou 1,1 mil milhões de euros ao grupo BIG Brasil, que pertencia à Walmart e à Advent International, para ficar com os antigos supermercados da Sonae do outro lado do Atlântico.
Ora, no contrato de compra e venda (SPA), assinado em dezembro de 2005, ficou acordado que a Modelo Investimento Brasil, veículo local através do qual a Sonae operava no Brasil, reembolsaria a compradora por todas as perdas e custos incorridos em processos pendentes à data da transação ou relativos a factos anteriores ou contemporâneos a essa venda. Uma cláusula habitual neste tipo de aquisições, para que a vendedora continue a ser responsável pelos litígios existentes com trabalhadores, fornecedores ou entidades públicas, anteriores à venda da companhia.
Em paralelo, também a 13 de dezembro de 2005, a Sonae MC SGPS (então denominada Modelo Continente SGPS) assinou uma carta de conforto a favor da Walmart, com a holding sediada na Maia a comprometer-se em pagar todas as obrigações que o veículo brasileiro assumiu nesta transação. Esta binding comfort letter é também comum em operações deste género, uma vez que a empresa local, após vender os ativos, deixa de ter bens no Brasil. Logo, para que a compradora possa obter pagamento dos seus créditos, caso não haja pagamento voluntário – como é o caso –, pode dirigir-se à casa mãe e, caso esta não responda, obter decisão e executar o seu património, neste caso em Portugal.
“Apesar de várias vezes instada para cumprir, a vendedora incumpriu várias das obrigações de reembolso a que se obrigou, não reembolsando a compradora, como era devido nos termos do contrato. Esta circunstância conferiu à autora o direito de agir contra a ora ré ao abrigo da carta de conforto. Assim, procedeu em agosto de 2021 à notificação judicial avulsa da ré, mas sem qualquer resposta ou resultado. Em consequência, a compradora vem, através desta ação, exigir o reembolso de quantias que suportou ao abrigo de diversos processos judiciais, que ascendem ao valor de 8.820.437,21 euros, acrescido de juros vencidos e vincendos”, lê-se na petição inicial, que deu entrada em janeiro de 2022.
Em causa neste primeiro processo estão dez condenações judiciais, cujo valor vai desde os 11,4 mil euros pagos a um funcionário numa ação indemnizatória por danos morais, até ao mais valioso de quase 3,1 milhões de euros, relativo a um litígio fiscal por “alegado aproveitamento indevido, por parte da então vendedora, de um crédito de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços nos períodos compreendidos entre março de 2004 a dezembro de 2005”. No entanto, há ainda largas dezenas de processos a correr nos tribunais brasileiros, que nos próximos anos vão engrossar este litígio na Justiça, por iniciativa da gigante retalhista de origem francesa.
Contactada pelo ECO, a advogada que representa a Carrefour neste processo em Portugal, explicou que a Sonae deixou de pagar há pouco mais de dois anos e que este primeiro processo é apenas um acumulado de uma dezena de condenações que foram liquidadas. “Como é um volume muito grande, a gestão vai-se fazendo assim de uma forma parcelar. (…) Mas a contingência poderá ser muito superior, pois há ainda valores em discussão entre as partes em montantes muito relevantes e que, com muita probabilidade, podem levar o Carrefour a iniciar mais ações com o mesmo objetivo”, indica Mariana França Gouveia.
A contingência poderá ser muito superior, pois há ainda valores em discussão entre as partes em montantes muito relevantes e que, com muita probabilidade, podem levar o Carrefour a iniciar mais ações com o mesmo objetivo. (…) Estamos a falar neste momento de um valor em ponderação à volta de 20 milhões de euros, a acrescentar ao valor [deste primeiro processo].
Questionada sobre os valores que podem estar em cima da mesa, a advogada reconheceu ser difícil contabilizar ao certo, pois “são muitas contingências”. Porém, adiantou que, não sendo este o montante final, estão “a falar neste momento de um valor em ponderação à volta de 20 milhões de euros, a acrescentar ao valor” deste primeiro processo. Mariana França Gouveia sublinhou que “a estratégia é preparar novas ações à medida que vai havendo volume que o justifique, sempre num tribunal português”. Quanto a esta primeira, as partes já trocaram articulados, mas estão ainda a aguardar que a juíza marque uma audiência prévia ou decida que o tribunal não é competente.
Fonte oficial da MC, a empresa da Sonae que detém o Continente e em 2022 subiu as vendas em 11,5%, para 5.978 milhões, comentou apenas ao ECO que se trata de “uma ação judicial em curso, no contexto da qual apresentou a sua defesa”. “A MC aguarda com tranquilidade e segurança o desfecho positivo deste processo, pois atua sempre ciente das suas obrigações legais e contratuais e de acordo com princípios de boa-fé, honestidade e integridade”, acrescentou a retalhista, em reação a este processo do Carrefour.
A MC aguarda com tranquilidade e segurança o desfecho positivo deste processo, pois atua sempre ciente das suas obrigações legais e contratuais e de acordo com princípios de boa-fé, honestidade e integridade.
No relatório anual da MC relativo às contas de 2022, num capítulo sobre os passivos contingentes relacionados com subsidiárias alienadas no Brasil, a MC detalha que “o montante reclamado pela Administração Tributária Brasileira dos processos fiscais em curso, que os advogados da empresa qualificam como tendo uma probabilidade de perda provável, acrescidos dos montantes pagos [de] 18,3 milhões de euros, nomeadamente no âmbito de programas das autoridades brasileiras competentes de recuperação de impostos estaduais ou federais, [ascendia] em 31 de dezembro de 2022 a 17 milhões de euros”, acima dos 15,2 milhões no final do ano anterior.
“Adicionalmente, existem outros processos fiscais com prognóstico de perda possível no valor global de 85,3 milhões de euros (76,2 milhões de euros em 31 de dezembro de 2021) para os quais o conselho de administração, baseado no parecer dos advogados, entende que da sua resolução é possível, mas não provável a existência de perdas para aquela antiga subsidiária”, contabilizou no mesmo documento a empresa liderada por Luís Moutinho, que lidera o mercado do retalho alimentar em Portugal.
Trocas de argumentos em tribunal
Na contestação apresentada no Juízo Central Cível de Lisboa, a Sonae alega que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para analisar este litígio. Argumenta, por um lado, que o contrato de compra e venda contém um pacto de jurisdição que atribui a competência para julgar quaisquer litígios que dele resultem aos tribunais brasileiros, concretamente o Foro Central da Cidade de São Paulo; e, por outro, que a carta de conforto não prevalece sobre o contrato para efeitos de determinação do foro competente.
O advogado Bruno Tomaz Bernardes sustenta que a carta de conforto “tem uma natureza meramente complementar, constituindo uma garantia adicional para pagamento imediato e integral das obrigações e responsabilidades da vendedora, quando devido à luz do SPA”. No mesmo documento, consultado pelo ECO, a defesa refere que ambos foram celebrados no Brasil e “a obrigação que [a Sonae] alegadamente assume na carta de conforto advém de factos com um claro elemento de conexão ao Brasil”.
“A presente ação é fundada na carta de conforto e não no contrato. Como resulta da petição inicial, a ré é demandada pelas obrigações que assumiu nos termos e ao abrigo única e exclusivamente da carta de conforto [que] contém um pacto de jurisdição que atribui competência exclusiva aos tribunais portugueses, o qual, conforme se verá, sobrepõe-se e prevalece sobre o pacto atributivo de jurisdição constante do contrato”, contrapõe o Carrefour, recordando que as partes “livre e conscientemente decidiram adotar foros diferentes para os litígios decorrentes de diferentes relações jurídicas”.
“Em face da existência de um pacto de jurisdição válido na carta de conforto, se a presente ação fosse proposta no Brasil, os tribunais brasileiros considerar-se-iam incompetentes para a sua apreciação. Assim, caso os tribunais portugueses se considerem incompetentes — o que não se concede —, estaria criada uma situação de denegação de Justiça para a autora, que se veria impossibilitada de exercer [judicialmente] os seus direitos resultantes da carta de conforto”, conclui a retalhista francesa.
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