“Diferencial entre sistema financeiro e não financeiro em termos de governança é abissal”

Dos escândalos financeiros à corrupção, em entrevista ao Capital Verde, Pitta Ferraz aponta o papel que uma boa governança pode ter para fortalecer as organizações.

Duarte Pitta Ferraz debruça-se diariamente sobre questões ligadas à governança das empresas, quer seja como professor da disciplina, como consultor da área ou como administrador não-executivo de várias entidades. A recente crise energética evidencia a necessidade de trazer os temas da sustentabilidade, nomeadamente da governança, para cima da mesa dos conselhos de administração.

Dos escândalos financeiros à corrupção, em entrevista ao Capital Verde, Pitta Ferraz aponta o papel que uma boa governança pode ter para fortalecer as organizações.

Em que medida é que a governança faz parte do caminho para a sustentabilidade?

A boa governança tem por objetivo garantir a sustentabilidade das instituições, e a sustentabilidade tem vários ângulos. Tem um financeiro — sem capital e sem liquidez não consigo sobreviver — e outro, que é o da sustentabilidade sobre o ponto de vista social e o ponto de vista do ambiente. O chamado ESG [sigla inglesa para Ambiente, Social e Governança]. Com a emergência da pandemia, houve quem pensasse que os temas do ambiente e do social iriam perder a tração. E aconteceu exatamente o contrário, ganharam ainda mais.

A governança é o alicerce do ambiente e o social. Se a governança estiver bem montada, o ambiente e o social vão estar no lugar a que pertencem.

E a governança, onde é que ficou?

Quando olhamos para a sigla do ESG, como a governança é um conjunto de estruturas, de normas e processos onde a cultura está incluída para tomar decisões informadas, o que eu defendo é que a governança é o alicerce do ambiente e o social. Se a governança estiver bem montada, o ambiente e o social vão estar no lugar a que pertencem.

Então, em termos de atenção mediática, a governança fica um pouco escondida, mas sem este vetor os outros dois não existirão?

Não vou sugerir que se mude uma sigla que está tão enraizada já hoje em dia. Porque o talento e as novas gerações têm padrões de exigência bastante mais altos, de uma forma geral, do que a dos baby boomers tinha. Os millennials, mas também a geração X e a geração Z. E isso pôs uma pressão sobre os conselhos de administração para prestarem atenção a temas a que não se prestava antes.

Considera então que o “G” começa a ganhar mais atenção.

Sim. A sustentabilidade tem muito a ver também com o reporte não financeiro. As normas que entraram em vigor a 1 de janeiro de 2023 têm padrões exigentes e o reporte não financeiro é algo que é novo e sobre o qual uma parte substancial dos membros dos conselhos de administração não tem formação suficiente. Por vezes nem sequer entendem, no seu setor em particular, quais os temas e métricas em termos de ESG que se aplicam e, portanto, há empresas a cuidar de assuntos que não são prioritários para eles.

Um desafio grande que os boards têm é que uma parte substancial dos membros dos conselhos de administração não estudou governança na escola.

Os boards precisam de mais formação?

Um desafio grande que os boards têm é que uma parte substancial dos membros dos conselhos de administração não estudou governança na escola. O ESG é uma evolução da governança bastante mais recente, e há uma grande dispersão de normas e de padrões. O objetivo das organizações tem sido o de padronizar o que se entende por ESG, e
mostrar, por setor, quais as prioridades para essas empresas. A matéria requer que os boards se dediquem a olhar para o tema de uma forma estruturada, que desenhem qual é a visão que têm para a organização em termos do ESG (principalmente do E e do S), e que definam a estratégia em termos dos recursos escassos que têm que alocar ao processo para atingirem a visão.

Existem diferentes modelos de governança. Há algum que considere mais eficaz e bem conseguido?

Independentemente do modelo que se adote para uma instituição, há uma coisa que não pode ser posta em causa: a boa governança. Não depende dos modelos. Se eu tiver uma empresa de capital concentrado, que seja de dimensão significativa, provavelmente o modelo dualista é mais adequado. Mas se tiver uma pequena e média empresa, não vou adotar o modelo dualista. Portanto, depende da dimensão da empresa, da complexidade do negócio, da concentração de capital e da melhor forma de alinhar os interesses dos stakeholders.

No sistema não financeiro também há bons exemplos, mas uma parte substancial não tem clara a importância que a boa governança representa para a instituição.

Na composição dos conselhos de administração, que critérios são menos respeitados em Portugal?

A composição dos boards é muito relevante porque o objetivo de uma boa governança é a tomada de decisões informadas e alinhar interesses. O primeiro passo é identificar a matriz de competências necessária, tendo em conta a complexidade do negócio. A segunda preocupação é a diversidade: de género, idade, origem geográfica, experiência profissional, background académico. Se tiver um board só com engenheiros à volta da mesa, ou só com economistas ou gestores, este não vai tomar as melhores decisões. E tenho que ter um membro do conselho de administração que seja um especialista de áreas como cibersegurança ou geopolítica, que depois não contribui para o resto dos temas? A alternativa é ter um consultor que vem falar ao board. Outro tema muito relevante é a preparação do conselho de administração. É importante perceber a organização, perceber o mercado, perceber ao que é que se vai e sobre o que se tem de tomar decisões.

Em Portugal as preocupações de governança estão bem patentes nas empresas?

As preocupações de governança estão tratadas de uma forma mais robusta claramente no sistema financeiro, por imposição das regras que hoje em dia vigoram. No sistema não financeiro também há bons exemplos, mas uma parte substancial não tem clara a importância que a boa governança representa para a instituição, no que respeita à atração de capital, de acionistas, de obrigacionistas e também à atração, motivação e retenção de talento.

Hugo Amaral/ECO

Mas porque é que as instituições financeiras parecem ter uma maior consciência do tema da governança?

A regulação bancária, nomeadamente em termos de governança, alterou-se substancialmente depois da crise financeira. A crise financeira transformou-se numa crise económica que, de uma forma simplista, significa que foram os contribuintes que tiveram que salvar os bancos que tinham uma má governança. O primeiro stakeholder num banco não é o acionista, é o depositante, porque é alguém cuja obrigação de proteção reside no conselho de administração, mais especificamente nos administradores não executivos. Isto implicou que fossem estabelecidas regras obrigatórias impostas simplesmente pelas autoridades de regulação bancária e seguradora. No sistema não financeiro, isso não ocorreu. O que defendo é que as boas práticas do sistema financeiro devem ser, na realidade, replicadas no sistema não financeiro, porque claramente o diferencial que existe entre o sistema financeiro e o sistema não financeiro em termos de governança é abissal. Há muito bons exemplos em Portugal de boa governança, mas a maioria não o são.

E o que é que pode ser a força que motiva essa mudança para lá do setor financeiro?

Um conselho de administração competente.

Diz que a governança nas instituições financeiras é mais sólida. No entanto, continuamos a ver escândalos nas instituições financeiras, agora até mais ao nível de startups. Porque é que, apesar de terem boa governança, há tantos casos?

No setor financeiro o número de casos tem-se reduzido claramente. Quando o Basel II muda para Basel III (que regula em termos prudenciais e comportamentais os bancos), havia duas assunções que se mostraram completamente erradas. A primeira foi que nunca haveria crise, isto é, que as crises seriam relativamente simples de controlar e, portanto, nunca crises. E a segunda foi que os banqueiros interpretariam a lei de forma muito conservadora. Portanto, no sistema financeiro passaram a ser exigidos mínimos de capital em função dos ativos ponderados pelo risco e mínimos de liquidez, algo que era muito soft antigamente. No segundo plano, os bancos passaram a ser supervisionados de um ponto de vista consolidado, independentemente de operarem num país ou em muitos países. E o terceiro é um tema de melhoria da transparência no reporte financeiro e não financeiro, isto é, eu tenho que ser mais transparente para o mercado. Ora, estes três critérios não são aplicados de forma obrigatória às empresas do sistema não financeiro. E aí é onde, reguladores setoriais, não só da banca e seguradoras, também têm que passar a olhar para estes temas. Outro, que também deve ter particulares cuidados sobre esta situação é a CMVM [Comissão do Mercado de Valores Mobiliários], que tem grandes responsabilidades relativamente a emissões no mercado, que no passado não têm corrido muito bem.

O diferencial que existe entre o sistema financeiro e o sistema não financeiro em termos de governança é abissal. Há muito bons exemplos em Portugal de boa governança, mas a maioria não o são.

Sobre as empresas familiares, uma realidade muito presente em Portugal, que aspetos de governança estas empresas devem ter particular atenção?

As empresas familiares constituem um desafio particular, embora haja grupos que têm uma estrutura de governança já bem montada em termos de gerir e de alinhar os interesses dos vários stakeholders. Só para enquadrar: uma empresa familiar tem três fases. A fase do fundador, a dos irmãos e a dos primos. A do fundador é de grande concentração de poder. A responsabilidade dessa pessoa é assegurar-se que os filhos que quiserem continuar o negócio não ficam nem assustados, nem desmotivados pelo grande sucesso do fundador. Na fase dos irmãos, normalmente o tema gere-se razoavelmente bem, mas é preciso planear. Aqui tem de se planear a sucessão para a fase três, a do consórcio de primos. O consórcio de primos tem desafios significativos porque começa-se a dispersar muito o capital, dependendo do número de primos. E há pessoas que nessa fase da vida têm outros interesses. “Eu quero ser diplomata, ser médico e não quero trabalhar na empresa que o meu avô fundou”… É uma coisa normal e que tem que ser respeitada. Portanto, este processo da evolução pelas fases é um processo adicional numa empresa familiar que uma empresa normal não tem. O maior tema que noto nas empresas familiares é que as pessoas, normalmente, acham que o tema se vai resolver por si, e não é o que acontece. É muito difícil uma empresa familiar conseguir fazer isso sozinha, sem a ajuda de consultores. Porque há um elemento emocional familiar de difícil controlo.

Portugal não fica bem nos rankings da corrupção. O que está a falhar? A governança, melhorada, podia prevenir o atual nível de corrupção?

Os índices de corrupção não nos deixam particularmente orgulhosos relativamente ao lugar que ocupamos. O tema da corrupção tem várias formas de ser endereçado. Uma delas é a partir do conselho de administração, ao estarem estabelecidas regras claras. Tenho que decidir a nível do conselho de administração quais são os meus princípios
éticos e que consequências tenho por não os seguir. Em termos de ética eu tenho que sacrificar ganhos imediatos por um ganho futuro, que tem a ver com a sustentabilidade e com a atração de talento na minha organização. Se tiver alguém a trabalhar numa organização a quem é apontado um envolvimento em temas de corrupção, o talento só não sai da organização se não puder. A segunda é que não consigo atrair capital do mercado financeiro ou de obrigacionistas, e mesmo de acionistas, se tiver situações de corrupção identificadas. Qual é o impacto final? O que acontece é que organizações corruptas deixam de ter clientes, porque as pessoas não querem sequer pensar que podem estar envolvidos num esquema semelhante. Mas é uma responsabilidade do board este tema da corrupção, porque é o board que decide se paga ou não paga a alguém. Quando decido ir operar num país, tenho uma lista que me diz quais são os países mais corruptos do mundo. Obviamente, que faz parte do processo de decisão de um conselho de administração operar no país A ou no país B, ou não, tendo em linha de conta que são ambientes de corrupção demasiado pesados.

Mas considera que isso pesa realmente nos critérios das empresas?

Na maioria das empresas pesa.

E os países mais corruptos sentem esse peso?

A única forma de combater a corrupção é fazer-lhes a vida dura dessa maneira. Conheço situações particulares em Portugal em que são pedidos montantes de dinheiro para certas empresas ganharem determinados projetos e essas empresas simplesmente dizem que não. Não os ganham, mas também ficam com a consciência que ficam bem consigo próprias, com o talento que empregam e com os seus acionistas, por não o fazerem, porque se são envolvidos no escândalo, deitarão tudo a perder.

Portugal tem conseguido captar cada vez mais investimento direto estrangeiro e não fica bem nesses rankings. Será que tem realmente impacto?

Tem impacto. Tem impacto na perda de negócio. Claramente, o facto de estarmos a atrair investimento estrangeiro, mas não tanto quanto queríamos, tem muito a ver com esta componente de análise de risco. Corrupção é um elemento que tem de ser considerado na análise de risco quando se faz investimento direto estrangeiro. É um dos
elementos críticos.

Passando ao capítulo das crises. No seu livro fala da crise das dotcom e do subprime. Que lições espera que se retirem desta crise energética, já que houve um reforço dos padrões e exigências em termos de governança na sequência das anteriores crises?

Geopolítica é um tema a que a maioria dos conselhos de administração, a não ser que sejam empresas sofisticadas, presta pouca atenção. É da maior importância quando pensamos na cadeia de fornecimento, por causa das dependências. O custo da energia é muito relevante e os boards normalmente não lhe prestam atenção. Em Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo, os consultores de geopolítica que vão falar aos conselhos de administração provêm das inúmeras empresas que existem nessa área. Em Portugal prestamos muito pouca atenção ao tema da geopolítica. Eu conheço poucos boards que o façam.

Então, que lições espera que se retirem desta crise energética?

Ter boards que olhem mais além, que olhem para a sustentabilidade no longo prazo e que pensem que fatores é que podem afetar a sustentabilidade do seu negócio no longo prazo, pelas dependências que temos, resultantes da globalização.

Mas essas lições já não deviam estar aprendidas de crises anteriores?

Deveriam sempre estar aprendidas de crises anteriores.

No fim do dia, a crise vai atingir o sistema financeiro, porque o sistema financeiro é que financia a indústria e as empresas.

Mas apesar de as lições ainda não estarem aprendidas, considera que este “abre olhos” é suficiente para existirem mudanças mais estruturais?

Neste momento, as pessoas estão na realidade a gerir uma crise, portanto, estão com uma visão focal. Em vez de manterem a visão periférica que, nomeadamente, os não executivos no conselho de administração devem manter. Na realidade, a ou o presidente do conselho de administração tem a obrigação de ter na agenda global do conselho, isto é, aquilo que vamos fazer ao longo do mandato, temas como geopolítica e riscos na cadeia de fornecimento, para se analisar no board. Já há empresas a deixarem de produzir, nomeadamente nos setores que sejam intensivos de energia, e que encerraram ou linhas de produção ou fábricas inteiras. O facto de não terem por exemplo comprado gás por períodos de tempo mais dilatados para aproveitarem o preço baixo em cada momento, está a causar um impacto negativo na sustentabilidade da organização que não tem medida.

Então esta crise difere por não ser tão focada no setor financeiro, mas afeta mais setores e, portanto, poderá ter um efeito mais alargado.

Tem um efeito mais alargado porque, no fim do dia, a crise vai atingir o sistema financeiro, porque o sistema financeiro é que financia a indústria e as empresas. E se as empresas não forem sustentáveis, esse risco vai acabar no sistema financeiro, como quase sempre.

Este artigo, agora atualizado, integra a segunda edição da revista anual do Capital Verde, Yearbook, já disponível nas bancas.

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