João Cadete de Matos já completou os seis anos de mandato como presidente da Anacom e espera agora ser substituído. É tempo de fazer o balanço, mas dificilmente se vai encontrar consenso.
João Cadete de Matos, 64 anos, completa a 15 de agosto seis anos como presidente da Anacom, o que significa que o mandato está a chegar ao fim. Já confessou que preferia sair agora, para regressar ao Banco de Portugal, mas a lei prevê que continue em funções indefinidamente, até que o ministro da tutela o substitua. João Galamba ainda não revelou quem vai nomear para o cargo, mas quer um regulador “dialogante”, para que a Anacom seja “fonte de estabilidade”.
Em 2017, quando se tornou general do regulador das comunicações, Cadete de Matos reconheceu que “ia para uma zona de guerra”. Em retrospetiva, não podia estar mais certo: agitando a bandeira da defesa dos consumidores, esteve, desde a primeira hora, em confronto quase permanente com as operadoras de telecomunicações — um setor que vale mais de 1,4% do PIB.
Trabalhou com três ministros das Infraestruturas (por pouco não foram quatro), atravessou a pandemia e conduziu um muito polémico leilão de frequências 5G, que, apesar de ter angariado 567 milhões de euros para os cofres do Estado, lhe mereceu uma dura reprimenda do primeiro-ministro no Parlamento. António Costa disse que era o “pior modelo de leilão possível”, e, apesar de o presidente da Anacom ocupar um cargo praticamente inamovível, uma operadora até exigiu do Governo a sua demissão. A fase principal do leilão teve 1.727 rondas. No final, o valor angariado foi mais do dobro do preço de reserva.
Natural de Lisboa mas de origens ribatejanas — a mãe é de Mouriscas e o pai de Penhascoso –, Cadete de Matos deixa uma Anacom a dar lucros recorde.
Ao longo do mandato, Cadete de Matos somou várias vitórias e algumas derrotas. Distinguir entre umas e outras varia muito consoante os pontos de vista. Apesar de toda a polémica, o certo é que conseguiu concluir com sucesso o leilão do 5G, que está a avançar a todo o gás no terreno. Mas, por pouco, Portugal ia sendo o último da União Europeia a lançar ao público esta tecnologia (só o fez primeiro do que a Lituânia).
Também conseguiu o que há muito queria, nomeadamente, que aparecessem novos prestadores com vontade de concorrer no mercado das comunicações móveis, para agitar as águas no setor e forçar a descida dos preços. Só que uma das duas, a Nowo, pode vir a ser absorvida pela Vodafone depois do verão, enquanto a outra, a Digi, só deverá começar a operar, na melhor das hipóteses, em 2024. E as concorrentes duvidam que fique por cá muito tempo.
Onde João Cadete de Matos não conseguiu prevalecer foi no tema das fidelizações. O ainda presidente da Anacom não é nada adepto das cláusulas que vinculam os clientes aos contratos e que os obrigam, quase sempre, a um casamento forçado com uma só empresa pelo prazo de dois anos. Já em 2023, numa derradeira tentativa, enviou para o Governo uma proposta para voltar a mudar a lei e limitar as fidelizações a seis meses, ao invés dos atuais 24. O ministro Galamba, que já por várias vezes se queixou de que o regulador não deve definir políticas públicas, atirou diplomaticamente a sugestão para a gaveta. Seria politicamente difícil não o fazer: alguns meses antes, o Parlamento tinha concluído uma revisão alargada dessa mesma lei.
Natural de Lisboa mas de origens ribatejanas — a mãe é de Mouriscas e o pai de Penhascoso –, deixa uma Anacom a dar lucros recorde. O resultado líquido de 2022 foi de quase 50 milhões de euros, que compara com os 32,5 milhões do ano anterior, uma subida de 51% que justificou com o “aumento do valor faturado relativo às taxas de utilização de frequências e às taxas de atividade das comunicações eletrónicas”. As operadoras, por sua vez, alegam que a Anacom constitui “provisões judiciais” para fazer face aos processos que interpõem, repassando depois esse custo para as mesmas. Em maio, a Apritel, associação que representa empresas como Meo, Nos e Vodafone, estimava que o Estado poderá ser obrigado a devolver mais de 100 milhões de euros às operadoras por causa dessa “violação do direito do acesso à justiça”.
Deco recorda Anacom dialogante
Para a Deco, a maior associação de defesa dos consumidores do país, o Conselho de Administração presidido por Cadete de Matos reforçou o papel da Anacom enquanto “garante dos direitos dos consumidores”. Para a Apritel, a associação que zela pelos interesses das operadoras, foram seis anos de “ataque sistemático às empresas de comunicações”.
Paulo Fonseca é coordenador do departamento jurídico e económico da Deco e diz que, “ao longo dos anos”, atravessando várias administrações, a Anacom foi olhando cada vez mais para os consumidores. Tal resulta muito da crescente maturidade do setor das comunicações: “No início, um regulador deve garantir que o setor possa crescer e consolidar-se.” Agora que “está consolidado”, é garantir o equilíbrio e a defesa do consumidor, que é elo mais fraco da cadeia, explica.
Das “práticas comerciais desleais” à “dificuldade do consumidor em rescindir contrato”, o representante da Deco admite que a organização tem “verificado nos últimos anos uma preocupação muito elevada com estas garantias”. “Começamos a ouvir cada vez mais falar de sanções que são aplicadas às empresas por violações das regras relacionadas com os direitos dos consumidores. Nos últimos anos, temos ouvido falar mais do que anteriormente”, admite.
"Não temos feedback de que não tenha existido diálogo da Anacom.”
Na perspetiva da Deco, a preocupação da Anacom com a proteção dos consumidores atingiu o auge com a proposta que apresentou em 2020 no âmbito da transposição do Código Europeu das Comunicações Eletrónicas (CECE). “Apresentou uma proposta legislativa daquilo que devia ser uma correta transposição e a Deco reconheceu que a proposta da Anacom era mais meritória do que a que foi aprovada [no Parlamento] e até do que a apresentada pelo próprio Governo”, defende Paulo Fonseca. “Temos pena que não tenha sido aprovada”, desabafa.
Todavia, o coordenador da Deco também reconhece que “não existem entidades reguladoras perfeitas” e que houve “situações” em que a associação “gostaria que a Anacom tivesse tido um papel maior na defesa dos consumidores”. A organização defende que deveria ter sido criado um Conselho Consultivo “com representantes da sociedade civil, do consumidor e das empresas”. “Teria sido muito positivo. Era uma forma de a sociedade civil participar na decisão e de permitir um maior controlo do trabalho desenvolvido pela entidade reguladora”, explica Paulo Fonseca. Reconhece, ainda assim, que a Anacom tem sido dialogante, pelo menos com a Deco: “A Anacom tem o cuidado de colocar [as decisões] em consulta pública e contacta-nos para que possa recolher os contributos”, revela.
Como tal, a Deco parece discordar da visão do ministro das Infraestruturas e das empresas do setor de que a administração liderada por Cadete de Matos se fechou sobre si própria. “Não temos feedback de que não tenha existido diálogo da Anacom. Solicitámos reuniões e tivemos reuniões”, afirma. “Esperamos que [a Anacom] continue a ter essa capacidade de diálogo e cooperação”, conclui Paulo Fonseca, num desejo sobre o virar de página no regulador.
Apritel critica “objetivos populistas”
Mas para as empresas de telecomunicações, que têm uma visão diametralmente oposta à da Deco, os últimos seis anos foram um autêntico martírio.
“A avaliação é globalmente negativa”, começa por dizer Pedro Mota Soares, secretário-geral da Apritel. “Foi um mandato com objetivos populistas e de curto prazo e com um ataque sistemático às empresas de comunicações que fazem de Portugal, reconhecidamente por todos os dados europeus, uma referência de redes, inovação, serviço, qualidade e preço. Fica também a impossibilidade de ter um diálogo efetivo e uma real compreensão dos problemas por parte do regulador”, acusa o ex-ministro e ex-deputado.
Num balanço escrito enviado ao ECO, o porta-voz das empresas de telecomunicações defende que foi isso que levou ao “atraso no leilão do 5G”, o qual atribui diretamente à “falta de capacidade do presidente” da Anacom em “identificar o tema como uma prioridade”. Mas também um “atraso por falta de capacidade de diálogo, tendo seguido um caminho que conduziu a grande litigância”, entende Mota Soares.
O secretário-geral da Apritel também aponta para o processo de transposição do tal código europeu, “onde novamente a falta de diálogo do regulador conduziu a que o grupo de trabalho dinamizado pelo Governo não conseguisse produzir uma proposta representativa dos diferentes stakeholders“. Isso conduziu a “atrasos consecutivos do processo de transposição que se arrastaram por mais de um ano”, assegura o representante das operadoras.
"Desde que o atual presidente assumiu funções verifica-se uma degradação na transparência do plano de atividades do regulador.”
Mota Soares vai mais além nas críticas e diz que, “desde que o atual presidente assumiu funções”, verifica-se “uma degradação na transparência do plano de atividades do regulador, reduzindo de forma efetiva a capacidade do escrutínio da atividade da Anacom, seja pelo setor seja pela própria Assembleia da República”.
“Ao mesmo tempo, as decisões do regulador há muito que, de acordo com a lei, devem ter por base uma análise de impacto regulatório. No entanto, nunca a Anacom, ao contrário de outros reguladores europeus, optou por publicar uma metodologia coerente e transparente para essa avaliação”, atira o responsável, uma crítica que foi feita muitas vezes pelas empresas de telecomunicações ao longo do mandato de Cadete de Matos.
Mas o maior crítico de Cadete de Matos foi mesmo o anterior presidente executivo da Altice Portugal, Alexandre Fonseca. À semelhança das concorrentes, a empresa que controla a Meo nunca concordou com a forma como a Anacom conduziu o leilão do 5G sob o pressuposto de que há falta de concorrência no setor. O gestor, que foi quem pediu a demissão do presidente da Anacom, responsabilizou Cadete de Matos pelos dramas do setor, acusando-o de passar “o tempo entretido a encontrar artefactos para puxar o setor para baixo”.
Os ataques só viriam a subir de tom ano após ano. “Alguém à frente do regulador está chateado com a vida. É completamente autista. Estamos perante um regulador que não tem visão estratégica”, afirmou Alexandre Fonseca em 2019, durante um debate entre os líderes das operadoras, inserido no congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC). Um ano depois, a Altice Portugal anunciava oficialmente estar de costas voltadas com a Anacom: “Sentimo-nos completamente legitimados em suspender, a partir de agora, qualquer relacionamento institucional com a Anacom, que não o que obriga a lei”, atirou a Altice Portugal num comunicado.
Não se sabe como é que Cadete de Matos tem estado a assistir aos últimos desenvolvimentos em torno da empresa. Em julho, Alexandre Fonseca foi alvo de buscas do Ministério Público, apanhado na investigação da chamada Operação Picoas, que envolve suspeitas de corrupção na Altice. No ano passado, tinha sido promovido a co-CEO da Altice a nível internacional, e chairman da Altice Portugal, mas suspendeu funções em julho.
Anacom aposta em concursos internos
Cadete de Matos chega ao fim do mandato com perto de 400 efetivos na Anacom, praticamente o mesmo número observado no final de 2016, antes de assumir a liderança.
Mas houve muitas mudanças internas, a começar pela digitalização de processos (confessou, no início, ter ficado surpreendido com as pilhas de papel que existiam na Anacom) até à tentativa de rejuvenescimento do pessoal. Aliás, Cadete de Matos definiu desde cedo esse objetivo, mas, no último relatório e contas da Anacom, o envelhecimento dos quadros ainda era visto como um problema: “A elevada média etária do quadro de pessoal da Anacom continua a ser um fator com relevância na definição da sua estratégia de gestão de recursos humanos”, lê-se no documento. Percebe-se porquê: mesmo com os esforços da administração, a média etária dos trabalhadores da Anacom subiu de 49 para 51 anos entre 2017 e o presente, segundo dados cedidos ao ECO pelo regulador. Mas a média etária dos diretores encolheu em nove anos, passando para 49.
Além disso, o ainda presidente defendeu um “sistema de evolução por mérito” dentro da instituição e reorganizou internamente a estrutura de funcionamento do regulador: “Na anterior estrutura, mais verticalizada, existiam 60 unidades: dez direções, 27 divisões, sete áreas e 16 núcleos. A nova estrutura organizacional, que entrou em vigor em 2020, é composta por 12 unidades: quatro direções-gerais, cinco gabinetes e três delegações (Porto, Açores e Madeira)”, diz fonte oficial da Anacom. Esta reorganização “procurou simplificar o modelo anterior, reduzindo os níveis de decisão, de modo a tornar a organização mais ágil, mais integrada, multidisciplinar e mais eficiente”, justifica a mesma fonte.
No ano passado, segundo o relatório e contas da Anacom, os coordenadores responsáveis pela gestão intermédia das equipas das chamadas “Unidades Orgânicas” passaram a ser escolhidos num “procedimento concursal interno”, tendo sido escolhidos 22 no total. Porém, se só dependesse do atual presidente, até se iria mais longe. Cadete de Matos defendeu em diversas ocasiões que os presidentes das entidades reguladoras em Portugal deveriam ser designados por concurso público internacional, para a escolha não se limitar às pessoas do círculo próximo dos ministros que as tutelam. Chegou mesmo a defender que os atuais trabalhadores da Anacom deveriam ter a oportunidade de se candidatarem a cargos no Conselho de Administração. Incluindo, claro, o de presidente.
Não se sabe ao certo quando é que Cadete de Matos vai deixar de ser presidente da Anacom nem quem será a sua substituta. O Governo ainda precisa de obter a aprovação da CReSAP à pessoa escolhida, que terá de ser uma mulher, por causa da alternância de género prevista na lei. Além disso, a pessoa indigitada será ouvida no Parlamento, cuja comissão permanente de economia terá de emitir um parecer não vinculativo, mas bastante influente. Só depois de cumpridos estes passos é que a nova liderança poderá ser definida por determinação do Conselho de Ministros. Até lá, Cadete de Matos deverá continuar aos comandos do regulador, ainda que as operadoras anseiem pela sua saída.
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A despedida do Cadete que se fez general da Anacom
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