Novembro poderá ser o pior mês dos últimos 44 anos no SNS caso não exista um acordo com médicos. Os sindicatos voltam a reunir hoje com o Governo. Mas, afinal, como chegámos até aqui?
A recusa dos médicos em fazerem mais horas extraordinárias para além das 150 horas anuais obrigatórias está a provocar constrangimentos em várias urgências hospitalares de norte a sul do país. A situação levou o diretor executivo do SNS a alertar que novembro poderá ser “dramático”, caso não seja alcançado um acordo ente os sindicatos e o Ministério da Saúde. O Governo e as estruturas sindicais que representam os médicos – o SIM e a FNAM – voltam a sentar-se esta terça-feira à mesa das negociações, depois de a reunião de domingo se ter arrastado até às duas da manhã sem ter sido possível chegar a um acordo.
A crise no setor público de saúde coincide com o ano em que o Orçamento da Saúde é o maior de sempre, estando previsto um novo reforço para 2024 com as transferências previstas para o SNS a superarem a barreira dos 15 mil milhões de euros. Além das verbas, nos últimos anos tem existido um aumento do número de profissionais de saúde, bem como de alguns indicadores de produção. No entanto, com uma população cada vez mais envelhecida, as longas filas de espera e os constrangimentos quer nos hospitais, quer nos centros de saúde têm “empurrado” os portugueses para o setor privado, numa altura em que há já três milhões com seguro de saúde privado. Mas, afinal, como chegámos até aqui?
“Nos últimos anos, não tem havido grande investimento naquilo que é gestão intermédia dos hospitais” e “se a gestão não está capacitada” isso “tem resultados em termos de eficiência e produtividade“, afirma Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), ao ECO, dando o exemplo de a carreira dos gestores hospitalares não ser revista há cerca de 20 anos, pelo que estes profissionais “não têm objetivos fixados e isso tem consequências”.
Por outro lado, Xavier Barreto realça que é preciso debater se o SNS está a ser financiado na medida das suas necessidades. “Olhando para o OE2024 tem, de facto, um aumento, mas se compramos para o que está previsto executar em 2023 o aumento é de 5%. E se descontarmos daí aquilo que será, à partida, a inflação prevista no cenário macroeconómico do OE estamos a falar de um aumento real de 2%“, aponta, referindo, por isso, ter “dúvidas” de que as verbas alocadas serão suficientes para implementar as mudanças previstas, nomeadamente a criação dos Centros de Responsabilidade Integrada, a criação das Unidades Locais de Saúde (ULS) ou a generalização das USF modelo B, que remuneram os profissionais mediante indicadores de desempenho.
Crise do SNS não se resolve só com atirar dinheiro às cegas para cima dos problemas. Enquanto a perspetiva não mudar vamos ter isto. Anunciamos mais dinheiro, mas não sabemos muito bem onde ele está a ser gasto e continuamos a ter profissionais descontentes.
Já o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF) lembra que o valor orçamentado para a Saúde “nunca corresponde à totalidade do valor investido”, com o país a ter taxas de execução “muito baixas ao longo dos anos”. Nessa linha, também o bastonário da Ordem dos Médicos sustenta que o “SNS tem sido subinvestido durante décadas”, estando durante vários anos “muito abaixo da média da OCDE” no que toca à despesa em saúde em percentagem do PIB. “Portugal atingiu agora os 6% do PIB, mas esteve sempre muito abaixo”, adianta Carlos Cortes, sublinhando que “isto não se recupera de um ano para o outro” e, por isso, é “preciso continuar a investir mais”.
Ainda nesta linha, o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP) assinala que o Orçamento do Estado (OE) para a Saúde “tem aumentado porque há mais despesas”. “São quase 14 mil milhões de euros este ano e que são maioritariamente para gastar em medicações, dívidas que existem do SNS, em pagamento de horas suplementares a empresas e a tarefeiros”. Só entre janeiro e agosto deste ano os médicos já fizeram mais de quatro milhões de horas extra e “não existe uma valorização do trabalho dos profissionais de saúde” que trabalham para o sistema criado pelo socialista António Arnaut, defende Gustavo Tato Borges, ao ECO.
De notar que a dívida do SNS a fornecedores externos aumentou pelo segundo ano consecutivo e, no final do ano passado, mantinha-se acima dos 1,5 mil milhões de euros, de acordo o último relatório do Conselho de Finanças Públicas (CFP), que teceu críticas ao facto de apesar de haver injeções de capital acumulado desde 2017 não estar a ser possível reduzir estruturalmente a dívida do SNS. Por outro lado, tem havido uma descida dos pagamentos em atraso desde 2018, que atingiram os 19 milhões de euros em 2022. Ainda assim, o prazo médio de pagamento das entidades do SNS ascendia a 109 dias.
Problema do SNS “não é só financeiro, é de organização”
Neste contexto, e tal como foi dito pelo ministro das Finanças, as personalidades ligadas ao setor da Saúde ouvidas pelo ECO são unânimes: o problema do SNS “não é só financeiro, é de organização”, pelo que “é preciso fazer as apostas certas”, quer seja ao nível da valorização das condições de trabalho e de remuneração dos profissionais, quer ao nível das infraestruturas e equipamentos.
“Olhamos hoje para o SNS, para hospitais ou centros de saúde e em termos de horários de funcionamento, o privado está a anos-luz à nossa frente. No SNS só se fazem consultas de especialidade de manhã e só durante a semana. As pessoas vão à urgência porque têm uma acessibilidade menor nos centros de saúde e isto impacta diretamente a qualidade e segurança dos cuidados que são prestados às pessoas”, exemplifica a bastonário da Ordem dos Enfermeiros.
Por outro lado, o bastonário da Ordem dos Médicos destaca que o sistema público de saúde “não acompanhou a evolução tecnológica”, com o país a ter “um parque de equipamentos muito envelhecido” a deixar para trás a renovação das infraestruturas. Já o ANMSP diz que é necessária uma aposta numa “verdadeira interligação dos cuidados de saúde”, com “sistemas de informação que funcionem” e que permitam que os processos clínicos ” interajam uns com os outros” de modo a que os profissionais de saúde possam consultar a informação do doente, independente do lugar em que são seguidos.
Médicos defendem melhoria na progressão da carreira e aposta no salário base
Mas, tal como os sindicatos médicos, os responsáveis ouvidos pelo ECO colocam no cerne da questão a falta de atratividade e difícil progressão da carreira dos profissionais de saúde. “O Governo continua a insistir nos suplementos, nos incentivos, nos acréscimos remuneratórios, nas horas extra e tudo isso, tal como o nome indica, é extraordinário”, aponta o presidente da APMGF, fazendo alusão ao facto de o Ministério da Saúde ter proposto um suplemento de 500 euros mensais para os médicos que realizam serviço de urgência, defendendo que a aposta deve passar por uma “remuneração base justa”.
Por outro lado, o presidente da APAH lembra que a crise atual do SNS está relacionada com as escusa dos médicos em fazer mais hora extraordinárias, que, por sua vez, “está essencialmente relacionado com condições salariais”, mas realça que este é um problema transversal a toda a Administração Pública, dado que os aumentos salariais não foram suficientes para compensar a perda de poder de comprar na sequência da inflação, que no ano passado tocou máximos de 30 anos. “Olhando para os últimos 2 ou 3 anos em que os aumentos salariais dos quadros mais qualificados do Estado têm sido residuais”, sinaliza.
Este é, aliás, um dos pontos de discórdia dado que o Governo propõe um aumento de 5% de salário base dos médicos, mas os sindicatos reivindicam um aumento transversal de 30% para todos os médicos, mesmo que seja faseado. Segundo o CFP, em 2022, os médicos ganhavam, em média, 3.973 euros por mês, os enfermeiros 1.838 euros, os técnicos de diagnóstico e terapêutica 1.697 euros e os técnicos superiores de saúde 2.162 euros mensais.
Certo é que, dos sucessivos alertas de que a falta de condições e os baixos salários estão a afastar os médicos do SNS para o privado ou para a emigração, o número de médicos no público tem vindo a aumentar. Se em dezembro de 2015 havia 26.743 médicos no Estado (incluindo todos os vínculos contratuais), em junho do ano passado esse número aumentou para 33.972, segundo os dados da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP). Contas feitas, desde que António Costa assumiu as rédeas do Executivo há mais 7.229 a trabalharem para o SNS. Portugal é, aliás, o país da OCDE com o maior número de médicos por mil habitantes, com o rácio a ser de 5,5 médicos por cada mil habitantes.
No entanto, os responsáveis ouvidos pelo ECO destacam que este aumento de médicos é justificado pelo “aumento do número de vagas para internato médico”, bem como pela “incorporação dos trabalhadores que estavam alocados às parcerias público-privadas”, nomeadamente do Hospital de Braga, que terminou em 2019 e do hospital de Loures, que terminou em 2022.
“A Ordem dos Médicos tem inscritos cerca de 60 mil médicos e o SNS tem 20 mil médicos especialistas“, sublinha Carlos Cortes, acrescentando que, “todos os anos emigram 200 a 300 médicos e muitos deles estão no setor privado“, pelo que “o grande esforço tem de ser tornar o SNS mais atrativo”, de modo a que estes profissionais fiquem no sistema público de saúde e que consiga competir com o setor privado. De notar, que para o ano, o Governo vai abrir 2.242 para formar médicos especialistas, o maior número de sempre.
Nesse sentido, além do salário, os responsáveis dizem que é necessário haver uma maior progressão da carreira e repor as 35 horas semanais para todos os médicos, sendo este último outro dos pontos de discórdia com o Governo, que se compromete-se a repor este horário para os médicos dos serviços de urgência e a reduzir progressivamente o horário naquela atividade, mas adverte que tal não pode prejudicar o acesso a cuidados de saúde. Se for aceite, a medida abrangerá de imediato os médicos dos serviços de urgência, sendo depois gradualmente aplicada a todos os outros.
E numa altura em que os sindicatos pedem também a reposição das 12 horas semanais de trabalho no serviço de urgência, o Ministério da Saúde admite também, segundo o documento consultado pela Lusa, indexar a “redução progressiva” de 18 para 12 horas semanais desde que se verifique a “diminuição da dependência do SNS da realização de trabalho em horas extraordinárias e em regime de prestação de serviço”.
É verdade que houve um aumento grande de profissionais de saúde, mas também houve um aumento muito grande de produção”
Uma das grandes diferenças na carreira médica é que é a única carreira da Função Pública que tem 40 horas de trabalho semanal. Depois de acabarem o curso, os médicos são colocados no internato de formação geral (IFG) durante um ano e progridem, depois, para o internato de formação específica (IFE). Contas feitas, demoram, pelo menos, seis anos a tirar a especialidade e a poder, efetivamente, entrar para a carreira. Esta é composta por três categorias: assistente, assistente graduado e assistente graduado sénior, e dentro de cada categoria, os médicos podem progredir subindo de escalões.
Contudo, a progressão é lenta. “Temos uma avaliação pelo SIDAP, mas não tem sido aplicada ou tem sido mal aplicada, o torna a progressão ainda mais lenta. E os concursos mesmo para assistente graduado sénior são demoradíssimos e muitas vezes não abrem vagas”, afirma Nuno Jacinto, em linha com que já tinha sido avançado pelo ECO.
Por outro lado, Gustavo Tato Borges nota ainda que os médicos tem tido “um trabalho cada vez mais exigente e mais escrutinado” e não têm visto “essa valorização por parte do Governo” e considera “negativo” o facto de este grupo profissional ser a única classe da Função Pública a trabalhar 40 horas semanais.
Já Xavier Barreto sinaliza que “é verdade que houve um aumento grande de profissionais mas também houve um aumento muito grande de produção”, numa altura em que a população está cada vez mais envelhecida. Nos primeiros seis meses deste ano, realizaram-se cerca de 6 milhões e 909 mil consultas nos hospitais públicos, um valor recorde e que representa uma crescimento de 6% face a 2022, segundo o Observador.
Já no ano passado, o SNS tinha batido recordes no que toca à atividade assistencial, com 12.770.000 consultas médicas em hospitais públicos e 758.313 cirurgias realizadas. No entanto, a elevada pressão do SNS tem levado a aumentos dos utentes em lista de espera, bem como dos utentes sem médico de família, que em setembro eram cerca de 1,6 milhões, mas chegaram a superar os 1,7 milhões em maio, segundo os dados do portal da transparência do SNS.
Enfermeiros defendem alargamento de competências
A par dos médicos também o número de enfermeiros tem aumentado. Se em dezembro de 2015 havia 42.769 enfermeiros no Estado (incluindo todos os vínculos contratuais), em junho do ano passado esse número aumentou para 54.762, segundo os dados da DGAE. Contas feitas, trata-se de um aumento de quase 12 mil enfermeiros desde a governação de António Costa. Contudo, ao contrário do que sucede com os médicos, Portugal surge entre os dez países da OCDE com menos enfermeiros, apresentando um rácio de 7,1 enfermeiros por mil habitantes.
Em declarações ao ECO, a bastonária da Ordem dos Enfermeiros sinaliza que Portugal “ainda tem que correr muito” para conseguir acompanhar a média da OCDE, lembrando que mais “temos 27.360 enfermeiros emigrados desde 2011”. Não obstante, Ana Rita Cavaco defende que é premente haver uma “alteração na estrutura de organização” e que o SNS “tem de estar centrado nos doentes e não nesta ou naquela classe profissional”. “Temos um Ministério da Saúde, que, infelizmente, desde a Dra Maria de Belém para a frente ficou capturado pela Ordem dos Médicos”.
Por isso, a Ordem defende que os “os médicos devem poder trabalhar por turnos, como fazem os outros profissionais de saúde” e que o país deve deixar de ter “um modelo de prestação de cuidados de saúde essencialmente medicalizado”, dado que outros profissionais de saúde, nomeadamente os enfermeiros, que podem e devem ter um alargamento de competências”. Para tal, a militante do PSD dá o exemplo dos partos, em que Portugal “80% a 90% já são feitos por enfermeiros especialistas” contudo, estes profissionais “depois não podem prescrever exames nem medicamentos”, o que confere uma “fraca acessibilidade” dos utentes face ao que sucede noutros países. A bastonária garante que a ideia não é “retirar poder” aos médicos.
Opinião diferente tem o bastonário da Ordem dos Médicos, que destaca que o setor da saúde “tem um conjunto de profissionais com competências diferentes que estão definidas”, pelo que o “essencial” é “todos trabalharem em conjunto de forma empenhada, sem conflitos absolutamente desnecessários para o bem-estar dos doentes”.
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