“Mascarenhas vai pôr a vereadora a aprovar isso”. Qual foi o papel do autarca da Câmara de Sines neste processo?

Em troca de uma maior celeridade nos procedimentos administrativos em curso na autarquia para a construção do data center, Mascarenhas pediu 5.000 euros para um festival e apoios a equipas de futebol.

Um dos arguidos no caso que acabou a derrubar António Costa é Nuno Mascarenhas, presidente da Câmara Municipal de Sines (CMS). Segundo o despacho de indiciação do DCIAP, a que o ECO teve acesso, em troca de uma maior celeridade nos procedimentos administrativos em curso na autarquia para a construção do data center da Start Campus, o autarca socialista pediu um patrocínio de 5 mil euros para um festival de música e um valor não apurado para equipas de futebol da região.

Mas vamos ao início da história para entender a “entrada” de Nuno Mascarenhas nesta narrativa. Tudo se deve ao data center, um projeto que envolve nove edifícios, apoiado em 495 megawatts (MW) de potência, num investimento global de cerca de 5,7 mil milhões de euros. Este projeto pertence à empresa Start Campus.

A Start Campus, da qual fazem parte dois dos visados e detidos no processo – o advogado e administrador Rui de Oliveira Neves e o CEO Afonso Salema -, tem sede em Sines e dedica-se a energias renováveis e à construção de ecossistemas verdes, tais como a exploração de hidrogénio. A empresa está a finalizar a construção do primeiro edifício alimentados a 100% por energias renováveis a instalar até 2028 em Sines. A Start Campus é controlada pelos fundos Davidson Kempner e Pioneer Point Partners, onde neste último Diogo Lacerda Machado, outro dos arguidos, é consultor.

Afonso Salema, CEO Start CampusHugo Amaral/ECO

Mas o desenvolvimento deste centro de dados estava dependente da Câmara Municipal de Sines, mais concretamente em matérias de licenciamento urbanístico e ordenamento do território, uma vez que está situado na Zona Industrial e Logística de Sines. Ou seja, para a construção eram necessárias algumas licenças que eram concedidas pela autarquia – o licenciamento da obra do data center, o licenciamento da obra em Monte Queimado e outros ainda não identificados.

E quem tinha a competência para dar “luz verde” a estas licenças? Nuno Mascarenhas. O autarca socialista, que está na presidência desde 2013, é responsável por áreas como a gestão financeira, projetos subjacentes a investimentos e a Divisão de Planeamento e Gestão Estratégica.

Foi em 2021 que a Câmara de Sines deu início ao procedimento de revisão do Plano de Urbanização da Zona Industrial e Logística de Sines (PUZILS) e decidiu suspender parcialmente a contrição até que fossem adotadas medidas preventivas.

Em março desse mesmo ano, a Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) “consignou em sede reconhecimento do estatuto de Potencial Interesse Nacional (PIN) da Start Campus que “caso não seja possível assegurar a compatibilidade do projeto com o PUZILS, a autarquia manifestou a sua disponibilidade para iniciar o procedimento de alteração desse instrumento de gestão territorial“”.

Nuno Mascarenhas
O presidente da Câmara Municipal de Sines, Nuno Mascarenhas.ANDRÉ KOSTERS/LUSA

Mais recentemente, em junho deste ano, a autarquia de Sines aprovou uma prorrogação do prazo estabelecido para a revisão do PUZILS pelo período de dois anos.

Todos estes entraves e contratempos levaram o Ministério Público a crer que Afonso Salema e Rui de Oliveira Neves recorreram a Diogo Lacerda Machado para “usar” a sua influência sobre Vítor Escária, outro dos arguidos e ex-chefe de gabinete de Costa. O objetivo era persuadir Nuno Mascarenhas e acelerar todo o processo.

Segundo o despacho de indiciação do DCIAP, desde o início do projeto, Afonso Salema, Rui de Oliveira Neves e Diogo Lacerda Machado, com a ajuda de Vítor Escária, foram contactando pontualmente Nuno Mascarenhas e pressionando-o de forma a darem “andamento” aos seus interesses com o data center.

Vereadora é pressionada por administradores da Start Campus

Cedendo às insistências, o autarca de Sines começou a pressionar internamente na Câmara. “Aproveitando-se das funções exercidas como presidente da CMS, efetivou tal pressão sobre as pessoas e entidades que, na sua dependência, exerciam competências em matéria de ordenamento do território, designadamente as referidas vereadora Filipa Faria e chefe de Divisão Maria de Fátima Matos”, lê-se no despacho.

Mas tanto a vereadora como a chefe de Divisão mantiveram uma conduta de cumprimento das normas aplicáveis à sua atuação. Ou seja, incompatível com os interesses da Start Campus. Assim, tanto Afonso Salema como Rui de Oliveira Neves planearam exercer pressão sobre a vereadora, quer diretamente, quer através de Mascarenhas.

Vários exemplos são dados no despacho do DCIAP. Em janeiro de 2023, antes de uma reunião que iam ter na autarquia, Rui de Oliveira Neves referiu a Afonso Salema que o principal objetivo do encontro era ter o “apoio do município relativamente à parte urbanística”. Já o CEO alertou que era necessário ter cuidado para “não ganhar antipatia da vereadora”.

No mesmo mês, Fabiola Bordino, funcionária da Start Campus e mulher de Salema, em conversa telefónica com o marido, adiantou que “o Mascarenhas não faz nada”, que “não pode ser só Mascarenhas têm que arranjar outro ângulo, tem que ser a Filipa, vai trabalhar a Filipa esta semana, vai marcar um almoço com a Filipa” para “desbloquear o licenciamento“, acrescentando que já percebeu que isto tem que ser com almoços” e ainda que “vai estar com ela e ver se consegue desbloquear isto”.

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Rui Oliveira Neves, sócio da Morais LeitãoHugo Amaral/ECO

Outras das conversas divulgadas revela que Rui de Oliveira Neves disse ao CEO da Start Campus que tinham que “dedicar mais tempo a outras pessoas do município”, que “claramente a vereadora começou crispada connosco” que “não se pode limitar a passar a informação só ao presidente” que “tipos como esta e o Fernando o vereador da educação levantam dúvidas ou se se opõem é o suficiente para termos problemas”.

“No dia 31 de março de 2023, pelas 15h03, o arguido Afonso Salema telefonou para o arguido Rui de Oliveira Neves e disse-lhe, entre o mais, que “também já falou com o Mascarenhas, mais para a frente vai falar com a vereadora para aprovar já assim que se der entrada”. Logo de seguida, o Afonso Salema telefonou para o arguido Diogo Lacerda Machado e referiu-lhe, entre outros assuntos que “vai mudar de diretor de obra Conduril e o Afonso quer a funcionar já segunda-feira e o Mascarenhas vai pôr a Vereadora a aprovar isso”.

Autarca cede perante exigências económicas e reforço partidário

No seguimento de todas estas reuniões e alegadas pressões, em maio de 2023, Nuno Mascarenhas propõe um acordo a Rui de Oliveira Neves, Afonso Salema e a Diogo Lacerda Machado. O autarca comprometeu-se a dar “maior celeridade” a procedimentos administrativos em curso na Câmara, mediante a “entrega de vantagens patrimoniais indevidas”.

Entre essas vantagens está a quantia de 5.000 euros a ser entregues à autarquia a título de patrocínio da Start Campus ao Festival de Músicas do Mundo em Sines e ainda a quantia de valor não apurado mas não inferior a 100 euros às equipas de futebol jovem do Clube de Futebol Vasco da Gama de Sines.

“Por outro lado, no decurso desse contacto e de contactos posteriores, ficou também acordado entre todos esses quatro arguidos que, também como vantagem auferida pela sua atuação favorável à Start Campus, Nuno Mascarenhas iria ver reforçado ou pelo menos mantido o apoio do Partido Socialista em futuras eleições. Bem como que, enquanto presidente da Câmara Municipal, manteria os poderes e competências legalmente previstos em matéria de urbanismo“, lê-se no despacho do DCIAP.

Segundo o Ministério Público, Nuno Mascarenhas, que está no terceiro mandato enquanto líder da Câmara de Sines, pretendia ser eleito a um cargo numa outra autarquia e para tal precisaria do apoio do PS.

Esta última parte do acordo foi firmada tendo em conta que Afonso Salema, Rui de Oliveira Martins e Diogo Lacerda Machado transmitiram a Mascarenhas que, caso este não atuasse de acordo com os interesses da Start Campus, e por efeito da influência exercida por aqueles no Governo, lhe seria retirado o apoio do PS numas futuras eleições e que “seriam aprovadas alterações legislativas no sentido de serem subtraídos ou reduzidos os poderes da CMS em matéria de urbanismo“.

João Galamba, ministro das Infraestruturas,MIGUEL A. LOPES/LUSA 19 Maio, 2023

Também João Galamba, um dos arguidos neste processo, entra em “cena” neste capítulo do caso. No dia 24 de agosto de 2022, através de uma chamada telefónica, “reclama” com Mascarenhas depois de a Câmara de Sines não ter autorizado uma alteração de um parque eólico.

“Epá, não há, ó Nuno, nós vamos ter de marcar, nós vamos ter de marcar uma reunião qualquer convosco. Porque eu neste momento estou a receber queixas sucessivas do Município de Sines como um dos Municípios mais difíceis na relação com renováveis, epá, se vocês querem ser o porto que querem ser, isso não pode ser pá nós estamos, vocês estão-nos a criar imensos problemas Sines pá”, disse na altura Galamba a Mascarenhas.

Mas o autarca de Sines respondeu: “Não, é ao contrário, porque o que é que vocês estão a fazer, estão a fazer uma coisa que para mim é absolutamente irracional, que é autorizar a construção de parques em zonas onde não é possível como é que é possível os promotores chegarem ao pé de nós e dizer assim, ah mas nos temos aqui uma licença para construir um parque, mas aonde, mas como é que vocês se não consultaram o PDM [Plano Diretor Municipal], podem construir um parque naquele local isso é uma coisa um bocadinho absurdo, quer dizer as coisas estão a ser colocadas um pouco ao contrário”, disse.

Uma coisa é certa, segundo revela o Ministério Público, Vítor Escária explicou a Afonso Salema e a Diogo Lacerda Machado que Costa pretendia tirar os poderes do urbanismo à Câmara Municipal de Sines já “há muito tempo”, por considerar que “não são capazes de entregar”. Daí, no acordo firmado, os arguidos terem prometido que Mascarenhas manteria os poderes e competências legalmente previstos em matéria de urbanismo.

Já a 19 de maio de 2023, Afonso Salema avisou Lacerda Machado que a arquiteta da Câmara de Sines já “está a levantar todos os obstáculos”, concretamente em relação à suspensão do PUZILS.

A reunião nas Amoreiras e mais favores

Mas os desentendimentos não ficaram resolvidos. Ainda em maio de 2023, Lacerda Machado avisa Vítor Escária dos atrasos da Câmara de Sines. Assim, decidem agendar uma reunião com Mascarenhas.

Pôr o medo de Deus em cima dele [Mascarenhas] porque a atitude dele não pode ser” ou “se o Escária vai dizer ao Costa que esqueça os sonhos do Data Center porque existe uma arquiteta na Câmara que não quer trabalhar, o que achas que vai acontecer?” foram algumas das intervenções de Salema ao diretor da ZILS Miguel Borralho na manhã que antecede a reunião com o autarca de Sines.

Na reunião na Amoreiras, Lacerda Machado avisou Mascarenhas que atrasos seriam um “desastre” para a Start Campus. Assim, o presidente de Sines comprometeu-se a encurtar prazos, reiterando a contrapartida.

Diogo Lacerda MachadoANDRÉ KOSTERS/LUSA 9 maio, 2023

A 7 de agosto de 2023 os 5.000 euros foram transferidos da Start Campus para a autarquia de Sines, passando a empresa a constar do material publicitário do Festival.

Dias depois, a 24 de agosto, Nuno Mascarenhas volta a pedir uma outra “vantagem patrimonial” a Afonso Salema. Desta vez, era para um programa de ação social, o “programa Escolhas”, que não teria mais financiamento por parte do Governo e ninguém o tinha avisado. O CEO da Start Campus aceita, mas pede para falar com a sua mulher e sublinha que “se não for através de nós [Start Campus] é através dos nossos fornecedores/clientes”.

Os prazos não estavam a acelerar e Afonso Salema e Rui de Oliveira Neves recorreram a Lacerda Machado e Vítor Escária para fazerem mais pressão sobre Mascarenhas. Em chamada telefónica, o CEO da Start Campus revela que estão a ter problemas “sérios” com a vereadora que disse que parte da obra era “ilegal”.

“O arguido Afonso Salema referiu também: “nós estamos a preparar um papel da PLMJ para dizer que ela não tem razão e na terça-feira vou falar com o Mascarenhas e vou deixar bem claro ao Mascarenhas, é por razões destas que se falava em voltar a implementar o gabinete de Sines”, lê-se no despacho.

Face às adversidades, Salema faz pressões obre Rui Pereira, chefe do Gabinete de Apoio à Presidência e Vereação da Câmara de Sines, para acelerar as coisas.

Entre os telefonemas que foram feitos nas semanas subsequentes está um a Miguel Gama, vice-presidente da Comissão Executiva da AICEP. Entre outros assuntos, Salema perguntou qual era o partido da arquiteta de Sines, por forma a “exercer pressão na mesma através da direção desse partido”.

Mas este “ping-pong” nas negociações continuou entre Salema, Mascarenhas, Lacerda Machado, Rui de Oliveira Neves e Vítor Escária.

Crimes em “cima da mesa”

O Ministério Público já fez a lista dos crimes que imputam aos arguidos detidos naquela que já é chamada de “Operação Influencer”. No total, são 28 crimes: prevaricação, tráfico de influência, corrupção ativa e passiva – quanto a titular de cargo político, agravada – e recebimento indevido de vantagens quanto a titular de cargo público, agravado. Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, da Start Campus, estão a ser investigados por seis crimes. Diogo Lacerda Machado por quatro.

Na lista de imputação dos crimes, no final do despacho, não estão referidos crimes relativos a João Galamba, a Nuno Lacasta nem a João Tiago Silveira.

Diogo Lacerda Machado, amigo de Costa, foi detido, tal como o chefe de gabinete de António Costa, Vítor Escária, e ainda Nuno Mascarenhas, autarca de Sines, Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, da Start Campus, numa investigação que visaria os casos dos negócios do lítio, do hidrogénio e do centro de dados em Sines.

Nesse mesmo dia, foram ainda constituídos arguidos o ministro João Galamba e Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). João Tiago Silveira, sócio da Morais Leitão, é também arguido.

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