Do hidrogénio à autoestrada, isto é tudo o que se sabe sobre o caso que derrubou Costa
Duas concessões de lítio, um projeto de hidrogénio em Sines e um projeto de centro de dados de Sines da Start Campus estão na mira da justiça portuguesa.
Já passava das 9 horas quando, na terça-feira, nos media soavam os primeiros alertas das buscas à residência oficial do primeiro-ministro e de diversas buscas e detenções de ex e atuais membros do Governo levadas a cabo pela PSP. Em causa estão negócios relacionados com a área de energia. Apesar de pouco se saber, relativamente à prova indiciada, estes passos da justiça portuguesa provocou um “terramoto” político em Portugal e culminou no pedido de demissão do primeiro-ministro de António Costa.
As suspeitas do Ministério Público (MP) neste processo recaem sobre atuais membros do Governo – como João Galamba -, mas também sobre antigos governantes e não só. Em causa estarão alegadas “irregularidades” em investimentos em projetos de exploração do lítio, hidrogénio e da construção de um data center, que podem ter superado os 1.000 milhões de euros.
Mas vamos por partes. Existem três frentes sobre as quais incidem esta investigação: duas concessões de lítio – um das minas do Romano, em Montalegre, e outra na mina do Barroso, em Boticas; um projeto de hidrogénio, em Sines e um projeto de centro de dados de Sines da Start Campus.
Reuniões secretas e almoços pagos pela Start Campus
Reuniões informais, almoços e jantares, foram alguns dos encontros que despertaram a atenção do Ministério Público. Os protagonistas? Esses são vários, mas entre os principais e únicos detidos, até agora, estão Diogo Lacerda Machado, um grande amigo de Costa, Vítor Escária, chefe de gabinete do primeiro-ministro, Nuno Mascarenhas, presidente da Câmara de Sines, Afonso Salema e Rui de Oliveira Neves, respetivamente CEO e administrador da Start Campus. João Galamba, ministro das Infraestruturas, não foi detido mas é arguido no processo.
Para o MP, entre Diogo Lacerda Machado e Vítor Escária existiram diversas “reuniões suspeitas” na residência oficial do primeiro-ministro. Mas não só. Segundo o mandado de detenção, a que o ECO teve acesso, estas reuniões, ou “encontros”, também eram marcados nos escritórios da Start Campus, em Lisboa, ou em momentos esporádicos, como jantares e almoços, que eram pagos por Afonso Salema e/ou Rui de Oliveira Neves, da Start Campus e sócio da Morais Leitão. Nestes encontros também estavam presentes Galamba e Nuno Lacasta, presidente da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que, segundo o DCIAP, “almoçavam e jantavam sem pagar nada”.
A Start Campus, da qual fazem parte da administração dois dos visados e detidos no processo, tem sede em Sines e dedica-se a energias renováveis e à construção de ecossistemas verdes, tais como a exploração de hidrogénio. A empresa está a finalizar a construção do primeiro de nove edifícios alimentados a 100% por energias renováveis a instalar até 2028 em Sines. A Start Campus é controlada pelos fundos Davidson Kempner e Pioneer Point Partners, onde neste último Diogo Lacerda Machado é consultor.
Ou seja, o MP acredita que o amigo de Costa foi contratado pelos investidores da Start Campus e depois diretamente pela empresa, através do CEO Afonso Salema, para “aproveitar” a relação que tinha como o primeiro-ministro e com Vítor Escária. O objetivo era pressionar o Governo e entidades como o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas e o autarca de Sines para acelerar e dar seguimento a assuntos de interesse da Start Campus, como o megaprojeto para a construção de um grande centro de armazenamento de dados digitais.
O projeto Sines 4.0 é um dos quatro negócios ligados ao setor da energia investigados neste inquérito. Ligado a ele está a exploração das duas minas de lítio e o projeto de hidrogénio em Sines.
Os negócios investigados
Eram as “estrelas” da transição energética do Governo, mas acabaram por se tornar uma grande “dor de cabeça”. Estamos a falar do dois projetos de lítio, um de hidrogénio e outro de um centro de dados, os negócios que estão sob a mira da justiça portuguesa.
Concessões de lítio
Um dos projetos em causa é da autoria da empresa Lusorecursos, que se propõe a explorar a mina do Romano, em Montalegre, da qual pretende extrair lítio, mas não só. O projeto mais alargado prevê a construção de uma refinaria de lítio no local e de uma fábrica de reciclagem de baterias, a qual poderia extrair lítio usado e voltar a refiná-lo. Além disso, sendo que a extração de lítio implica também a extrações de outros materiais usados na indústria cerâmica, a Lusorecursos vê espaço para a criação de uma fábrica de cerâmica.
Com o lítio avaliado em 30.000 dólares por tonelada, uma estimativa que a Lusorecursos considera conservadora, o projeto da empresa deverá atingir os 510 milhões de dólares de volume de negócio ao longo dos 10 anos previstos para a exploração, o que se traduz em cerca de 200 milhões de dólares de lucro, ou seja, o equivalente a 182 milhões de euros, indicou a empresa ao ECO.
A empresa é liderada por Ricardo Pinheiro e fechou um contrato de concessão de exploração com o Estado em 2019. É na assinatura deste contrato de concessão que reside a polémica. João Matos Fernandes e João Galamba, que ocupavam, respetivamente, os cargos de ministro do Ambiente e secretário de Estado da Energia em 2019, defenderam que, apesar da contestação das populações e de polémica na estrutura acionista da empresa (que foi criada três dias antes da assinatura deste contrato), a decisão do Governo limitou-se a cumprir a lei.
“Nós fomos obrigados a dar a concessão [da exploração de lítio em Montalegre à Lusorecursos]“, afirmou Galamba no programa Prós e Contras, emitido pela RTP em novembro de 2019. O então secretário de Estado remeteu para o Decreto-lei 88/90, que determina que “a empresa detentora de prospeção e pesquisa tem o direito de requerer a exploração”, seguindo-se a avaliação ambiental.
João Matos Fernandes defendeu que, no que diz respeito a Montalegre, “tudo aquilo que foi feito foi cristalino”. “Começou por ser atribuída uma licença para a prospeção [em 2012], a prospeção foi feita, foi feita de acordo com a lei que o Governo da direita fez, que diz que a seguir à prospeção há direito à exploração”, referiu Matos Fernandes, citado em novembro de 2019 pela Lusa.
A população tem vindo a contestar o projeto, alegando que não só põe em causa o bem-estar, tendo em conta o ruído e a possível contaminação das águas, como também a paisagem e portanto os projetos turísticos na região. Ambientalmente, a maior preocupação tem sido o lobo ibérico, uma espécie protegida que tem o espaço da mina como habitat.
Desde a assinatura do contrato de concessão, o projeto tem sido alvo de avaliações ambientais, e recebeu, no passado mês de setembro, uma Declaração de Impacte Ambiental favorável condicionada, que permite à mina ir para a frente se cumpridas as condições determinadas pela APA.
Este foi o segundo projeto a ter luz verde da APA em Portugal. O primeiro é promovido pela Savannah Resources, que se propõe a explorar a mina em Boticas e também está sob investigação. A 31 de maio deste ano, este projeto obteve uma Declaração de Impacte Ambiental favorável da parte da APA, também condicionada ao cumprimento de determinadas condições.
O projeto baseia-se num contrato de concessão mineiro de 30 anos (concedido em 2006), e pretende extrair lítio suficiente para suportar a produção de meio milhão de baterias para veículos elétricos por ano.
Numa entrevista recente ao ECO/Capital Verde, Diogo da Silveira, administrador não executivo da Savannah, indicou que o projeto prevê um investimento de 110 milhões na construção de infraestruturas e a criação de 215 empregos diretos e 2000 indiretos. Além disso, revelou que a empresa abriu um processo para avaliar possíveis parcerias (para a compra e exploração do lítio) que já conta com 60 candidaturas.
Relativamente a esta mina, suspeita-se de alegados vícios, como o favorecimento da Galp por parte de uma atuação alegadamente concertada de Matos Fernandes, Galamba e Rui Oliveira Neves, na altura administrador da Galp. Segundo avançou o Observador, os investidores internacionais que dominavam o acionista maioritário Savannah Lithium Lda tiveram de aceitar a entrada da Galp na participação do capital daquela sociedade e firmar uma parceria entre a Northvolt e Galp.
Também sob Galamba recaem outras suspeitas sobre os negócios envoltos desta mina. Segundo o Observador, o então secretário de Estado terá alegadamente interferido indevidamente junto de diversas entidades do Ministério do Ambiente para que aprovassem documentos estruturantes da concessão em causa.
Projeto do hidrogénio
Por outro lado, temos os negócios ligados ao hidrogénio verde, que entrou na agenda mediática e económica em 2020, ano em que foi anunciado um megainvestimento de 1,5 mil milhões de euros nesta área, no âmbito do projeto H2Sines. O objetivo era “implementar um cluster industrial de produção de hidrogénio verde, com base em Sines” e “vocação exportadora”, escrevia na altura a EDP, em comunicado, no qual anunciava avançar em parceria com a Galp, a Martifer, a REN, a Vestas e diversos parceiros europeus.
Este foi um dos projetos selecionados pelo Governo para candidatar ao estatuto de IPCEI (’Important Project of Common European Interest’, ou Projeto Importante de Interesse Comum Europeu), tal como avançou na altura o Expresso.
Foi ainda em novembro desse ano que a revista Sábado noticiou que o projeto H2Sines estaria sob “forte escrutínio” do Ministério Público, e que as autoridades estariam a debruçar-se sobre “as relações entre membros do Governo e elementos de grandes empresas privadas do consórcio integrado pela EDP, Galp, REN, Martifer e Vestas”.
No mesmo artigo, apontava-se que estaria a ser investigado o então ministro de Estado, da Economia e da Transição Digital, Pedro Siza Vieira, e o secretário de Estado Adjunto e da Energia, João Galamba. “Ambos os governantes estão sob apertada vigilância das autoridades judiciais e policiais porque fazem parte do grupo de alvos principais num inquérito-crime que averigua indícios de tráfico de influência e de corrupção, entre outros crimes económico-financeiros“. Ambos os governantes rejeitaram as acusações.
Em junho de 2021, a EDP e a Galp decidiram abandonar o consórcio H2Sines, que ficou reduzido às empresas REN, Martifer, Vestas e Engie. Na altura, a EDP afirmou que, apesar de cortar laços com o consórcio, se manteria ativa na área do hidrogénio verde, mantendo “20 projetos sob análise”. A petrolífera justificou a decisão dizendo que queria “ir mais rápido” e, numa primeira fase, produzir hidrogénio para consumo próprio, e não para vender aos holandeses, como era desígnio do Governo.
Meses depois, em novembro de 2021, surge um projeto renovado: o GreenH2Atlantic, apoiado com 30 milhões de euros no âmbito do Horizonte 2020. Na ex-central termoelétrica de Sines da EDP Produção, a EDP, Galp, Engie, Bondalti, Martifer, Vestas, McPhy e Efacec são algumas das entidades que sustentam este projeto, um dos maiores em Sines. Terá uma capacidade de 100 megawatts (MW), um investimento superior a 150 milhões de euros e tem entrada prevista em operação no final de 2025. Não havendo registo de qualquer candidatura ao estatuto de IPCEI, este novo projeto não deverá estar sob a mira do Ministério Público.
Segundo avança o Observador, os procuradores entendem que existe prova de que o promotor holandês Marc Rechter, através do Resilient Group, terá sido prejudicado pelo então ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, e Galamba. O MP considera que os membros do Governo terão imposto a Marc Rechter a integração da REN, EDP e Galp no seu consórcio denominado de Green Flamingo. A justificação de Matos Fernandes e Galamba para a exclusão da lista de projetos elegíveis para ser um IPCEI foi o alegado fundamento de que o consórcio Green Flamingo estaria identificado com o projeto da REN, EDO e Galp denominado H2 Sines.
Para além disto, e segundo o Observador, entre as desconfianças do MP está também a passagem de Matos Fernandes do Governo para a sociedade Copenhagen Infrasctrutures Partner, onde a Vestas investiu no final de 2020, e a contratação do ex-ministro do Ambiente por parte da Abreu Advogados, uma vez que presta serviços à Copenhagen Infrasctrutures Partner. Depois da publicação da notícia, a Copenhagen Infrastructure Partners desmentiu “categoricamente que tenha existido qualquer relação de trabalho direta com JPMF, e recusa qualquer intencionalidade na contratação de serviços de trabalho com ex-governantes.”
Centro de dados em Sines
Também em Sines nasceu o centro de dados Start Campus, igualmente contemplado nas investigações que agora decorrem. Um complexo de nove edifícios, apoiado em 495 megawatts (MW) de potência, num investimento global de cerca de 5,7 mil milhões de euros. Uma das últimas comunicações presentes no site da empresa, dá conta que o primeiro edifício da Start Campus deveria começa a “operar parcialmente” em outubro, estando a decorrer o licenciamento para a segunda fase do projeto.
Envolta do data center estão suspeitas da alegada prática dos crimes de corrupção ativa e passiva de titular de cargo político, prevaricação, recebimento indevido de vantagem, entre outros.
Segundo o Observador, o favorecimento no centro de dados está ligado com a dispensa de procedimento de uma Análise de Impacto Ambiental relativamente à primeira fase do projeto, bem como em relação à Declaração de Impacto Ambiental favorável com condições. Para o MP, estes procedimentos não cumpriram a lei. Alegadamente, Galamba, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente, e Lacasta fizeram um favor à Start Campus.
Também sobre Nuno Mascarenhas recaem suspeitas de que tenha alegadamente favorecido a empresa em diversos projetos urbanísticos relacionados com o data center.
A estrada prometida por Galamba
O atual ministro das Infraestruturas, João Galamba, também foi alvo de buscas na passada terça-feira e foi constituído arguido nos autos. Segundo o Expresso, o MP suspeita que o ministro tenha intervindo em quase todas as matérias objeto de investigação.
O MP suspeita ainda que Galamba tenha ajudado a convencer a Câmara Municipal de Boticas a não se opôr à exploração do lítio. Em contrapartida, financiaria a autarquia com uma estrada no valor de cerca de 20 milhões de euros. Ou seja, um possível acordo feito com o presidente da APA. Também sobre Duarte Cordeiro recaem suspeita que tenha intercedido a favor de Lacerda Machado, mas não foi constituído arguido.
Sobre Galamba recai também suspeitas que utilizava os motoristas que estavam ao seu serviço no seu gabinete de secretário de Estado para deslocações pessoais, como transporte das filhas e compra de garrafas de vinho.
Já o Público, avançou também que o atual ministro das Infraestruturas é suspeito de ter levado a Conselho de Ministros diplomas que foram produzidos por advogados pagos pela Start Campus. Os diplomas em causa favoreciam o projeto que a empresa estava a desenvolver em Sines, nomeadamente a criação do data center.
O autarca de Sines
Nuno Mascarenhas já esteve de braços dados com a justiça portuguesa. O presidente da Câmara Municipal de Sines, desde 2013, foi condenado em junho pelo Tribunal de Contas num processo relacionado com a nomeação ilegal de cinco dirigentes para a autarquia. Na altura, Mascarenhas afirmou que estava convicto de que estas nomeações eram legais.
O autarca socialista teve de pagar uma multa de 2.300 euros por ter cometido uma infração financeira negligente, uma vez que o Tribunal não aceitou os argumentos invocados por Nuno Mascarenhas.
O presidente da Câmara de Sines está ao serviço da autarquia desde 1998, estando atualmente no seu terceiro mandato na presidência, onde é responsável por áreas como a gestão financeira, projetos subjacentes a investimentos e a Divisão de Planeamento e Gestão Estratégica.
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