Só portaria de extensão acabaria com polémica nos aumentos salariais dos médicos
Governo fechou acordo sobre salários com os médicos, mas só um dos sindicatos assinou o entendimento. Há dúvidas sobre que profissionais estão incluídos. Advogados avisam que só portaria esclareceria.
Meio mês depois de o Governo ter chegado a acordo com os médicos, ainda não é claro se todos os clínicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) terão ou não acesso aos aumentos salariais aí previstos.
É que esse entendimento foi assinado por apenas uma das estruturas sindicais — o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) –, deixando em dúvida se os reforços remuneratórios também serão aplicados aos médicos com contratos individuais de trabalho não sindicalizados ou filiados noutros sindicados.
Os advogados ouvidos pelo ECO admitem que a questão não é pacífica e avisam que só uma portaria de extensão poria termo à polémica. O Ministério da Saúde ainda não tem uma resposta fechada para dar, e diz que está a avaliar.
Após 36 reuniões e 19 meses de negociação, a 29 de novembro o Governo chegou a acordo com o SIM em várias matérias, nomeadamente no que diz respeito aos aumentos salariais dos médicos. Ficou prevista, por exemplo, uma subida de 14,6% dos ordenados dos assistentes hospitalares com efeitos a partir de janeiro.
Embora só o SIM tenha firmado esse entendimento, o Ministério da Saúde fez questão de frisar, no comunicado divulgado logo nessa data, que o aumento salarial acordado seria aplicado “a todos os médicos, privilegiando as remunerações mais baixas”.
Porém, as dúvidas não tardaram a surgir. Poucas horas depois, o SIM veio indicar que o acordo só abrangeria os sócios deste sindicato.
O acordo irá abranger os médicos com contratos em funções públicas, que são a esmagadora maioria dos que estão nos cuidados primários, e os que têm contratos de trabalho individual sindicalizados no SIM.
“O acordo irá abranger os médicos com contratos em funções públicas, que são a esmagadora maioria dos que estão nos cuidados primários, e os que têm contratos de trabalho individual sindicalizados no SIM“, sublinhou o secretário-geral dessa estrutura sindical.
Estava, pois, a sinalizar que os médicos com contrato de trabalho individual não sindicalizados ou filiados noutros sindicatos não teriam direito a estes aumentos.
A propósito, convém explicar a diferença entre o contrato de trabalho em funções públicas e o contrato individual de trabalho.
Em causa estão dois tipos de vínculos diferentes ao Estado enquanto empregador, sendo que o primeiro tem uma série de direitos (das majorações dos dias de férias à progressão na carreira) que estão vedados aos segundos. Nos hospitais, atualmente, só os médicos mais velhos têm contratos em funções públicas, segundo o SIM.
As referidas declarações do SIM não caíram bem junto da outra estrutura sindical que representa os médicos, e que ficou de fora do referido acordo.
Da parte da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), não demorou a chegar o argumento (apoiado por um parecer jurídico) de que os aumentos seriam para “todos os médicos especialistas e até médicos internos, sindicalizados ou não, que trabalham no SNS“.
Com o SIM de um lado e a FNAM do outro, o Ministério da Saúde foi questionado pelos jornalistas. Mas, em contraste com a assertividade do primeiro comunicado, a tutela sublinhou a 30 de novembro que “ainda estava a ultimar os termos concretos da operacionalização” do acordo.
Esta semana — meio mês depois do início desta polémica –, o Ministério da Saúde, nas declarações que enviou ao ECO a indicar que impacto orçamental terá a revisão salarial acordada com o SIM, aproveitou para dar notar que está a ser avaliada “a tramitação necessária à aplicação do acordo no universo de profissionais médicos, em conformidade com os vínculos laborais e direitos sindicais“.
“Regista-se que o sindicato que não subscreveu o acordo defende que os seus associados tenham direito ao resultado do mesmo”, sublinhou o gabinete de Manuel Pizarro. Ou seja, persistem as dúvidas.
Os advogados ouvidos pelo ECO defendem que estas questões só serão resolvidas se o Governo assinar uma portaria de extensão, isto é, recorrer ao instrumento que legalmente estende os efeitos de um acordo “mesmo a trabalhadores que não estejam sindicalizados, mas que desempenhem as mesmas funções daqueles que optaram por se sindicalizar”, define a advogada Isabel Araújo Costa, da Antas da Cunha ECIJA.
Dois princípios constitucionais em confronto
Ao ECO, a associada sénior da Antas da Cunha ECIJA explica o que está em questão.
De um lado, está o princípio da filiação, que diz que uma convenção coletiva apenas obriga o empregador que a subscreve ou filiado em associação de empregadores celebrante, e os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros de associação sindical celebrante.
Do outro, está o princípio da igualdade, que determina que ao trabalho igual deve corresponde salário igual.
Há, portanto, dois princípios previstos na Constituição em confronto. Assim, Isabel Araújo Costa reconhece: “este acordo de valorização salarial foi celebrado apenas com o Sindicato Independente dos Médicos, pelo que, por um lado, e à luz daquele princípio da filiação, este aumento só seria, em tese, de se aplicar aos médicos filiados no SIM, deixando de fora inúmeros profissionais de saúde”.
Mas ressalva: “Por outro lado, deverá aplicar-se a todos os médicos, independentemente da filiação, sob pena de fazer perigar um outro princípio basilar que é o do trabalho igual, salário igual”.
“A não se estender estas condições a todos os médicos, pode estar a condicionar-se a liberdade sindical e a forçar uma sindicalização dos médicos no SIM só para poderem beneficiar deste aumento. Não podemos olvidar o princípio constitucionalmente consagrado da liberdade sindical.
Aliás, se os aumentos não forem estendidos a todos os médicos, a liberdade sindical poderá estar a ser posta em causa, alerta a advogada, na medida em que se estaria a “forçar uma sindicalização dos médicos no SIM só para poderem beneficiar deste aumento”.
“Não podemos olvidar o princípio constitucionalmente consagrado da liberdade sindical, pois que nenhum trabalhador é obrigado a inscrever-se num sindicato“, assinala a advogada.
Por outro lado, há advogados que discordam da própria natureza do entendimento e, portanto, da capacidade de sequer ser alargado. Tiago de Magalhães, associado sénior de Direito do Trabalho & Fundos de Pensões da CMS Portugal, destaca que o acordo a que o Ministério da Saúde chegou com o SIM é um “acordo intercalar”, e não uma convenção coletiva. “Neste sentido, não se deverão aplicar as regras de incidência subjetiva dos acordos coletivos de trabalho, pelo que, o acordo alcançado apenas se deverá aplicar aos trabalhadores que tenham como empregador o SNS e que estejam filiados no SIM“, entende.
Argumentos à parte, o que está em cima da mesa?
Neste momento, certo é que todos médicos com contratos de trabalho em funções públicas filiados ao SIM têm direito aos aumentos salariais.
E os que não são sindicalizados ou não são filiados ao SIM também deverão ter — esse sindicato não tem contestado, aliás, esse ponto. “Não sendo filiados no SIM, parece resultar que os médicos com contrato de trabalho em funções públicas poderão beneficiar deste aumento“, assegura Isabel Araújo Costa.
“O mesmo não se diga dos médicos não filiados e com contrato individual“, atira a mesma advogada. No caso dos que têm contrato de trabalho individual, a valorização está assegurada, se forem filiados no SIM. Para os demais — “nos hospitais, a maioria dos médicos tem contratos individuais de trabalho“, chegou a adiantar o secretário-geral do SIM –, a questão está em aberto.
“O Governo deverá lançar mão de um instrumento legislativo, como o da portaria de extensão, que alargue o âmbito subjetivo a todos os médicos do Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua filiação e da natureza do seu vínculo“, apela Isabel Araújo Costa.
Vasco Miguel Sabino, advogado da LegalPartners, também reconhece que, nestes casos, a portaria de extensão é a chave para o esclarecimento das dúvidas. “A aplicação dos termos do acordado com o Sindicato Independente dos Médicos aos profissionais com contrato individual de trabalho depende de determinação da publicação de Portaria de Extensão“, afirma.
Lembra, contudo, um Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora que defendeu que “a portaria de extensão não deverá abranger o alargamento de aplicação de uma convenção coletiva aos trabalhadores de um sindicato não signatário do acordo e aos empregadores filiados noutra associação de empregadores”.
Segundo esse advogado, tal acórdão veio, de resto, confirmar “a opinião do falecido professor Pedro Romano Martinez, que justificava que ‘se um determinado sindicato não quis negociar e celebrar aquela convenção coletiva”, é porque tinha alguma objeção.
Vasco Sabino acrescenta ainda que, “admitindo-se que a extensão do instrumento autónomo pode abranger trabalhadores filiados em outra associação sindical, estar-se-ia a pôr em causa a autonomia contratual desse sindicato, cuja liberdade negocial ficaria coartada“.
Há, portanto, argumentos dos dois lados da balança. A bola está agora do lado do Governo.
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